Problemas de gestão e ações judiciais lideraram as crises em 2024
Problemas de gestão lideraram as crises corporativas de 2024, no mundo, diz o Relatório Anual de crises do Institute for Crisis Management-ICM, dos Estados Unidos, liberado dia 30/06/25. Essas crises representaram 21,48% de todos os registros constantes na mídia no ano passado, que, segundo o Relatório, chegaram a 1 milhão 134 mil casos. Segundo o documento, “Esta categoria voltou com força total no relatório deste ano, um número não visto desde 2018". Durante os anos de pandemia de 2020 a 2023, os erros de gestão não apareciam com alta incidência no levantamento anual do ICM, disfarçados ou minimizados pela gravidade dos efeitos da Covid-19. Um dos motivos pelo qual esse índice caiu na pandemia foi porque o ICM considerou a tragédia ocasionada pelo vírus da Covid-19 como ‘catástrofe’, o que elevou sensivelmente o percentual dessa crise."
Crises “latentes”, ou aquelas que dão sinais, antes de acontecer, retomaram a maioria dos eventos negativos do ano, com quase 75% das notícias rastreadas, e a categoria “má gestão” recuperou o título de maior proporção de notícias encontradas. Diversas categorias apresentaram reversões significativas no pós-pandemia, incluindo catástrofes, danos ambientais, aquisições hostis, má gestão, assédio sexual, crimes de colarinho branco e violência no local de trabalho. Sobre catástrofes convém fazer uma ressalva: o ICM considerou, durante os anos da pandemia, 2020 a 2023, incluir em “catástrofes” as crises decorrentes da Covid-19. Isso levou essa categoria a liderar a maior proporção de crises nesses quatro anos.
Segundo o Relatório anual do ICM, “Embora muitas histórias de má gestão envolvam algum tipo de comportamento criminoso, há muitos exemplos de decisões equivocadas e má gestão mesmo que levaram a eventos de crises em 2024. Isso inclui exemplos de falhas de liderança, conformidade, estratégia ou mesmo erros operacionais. A Volkswagen, outra empresa constantemente propensa a crises, enfrentou disputas com sindicatos e críticas sobre sua condução da estratégia de veículos elétricos, causando problemas operacionais e manchetes negativas.”
Ainda segundo o trabalho de pesquisa do ICM “Outro caso emblemático, em 2024, de crise corporativa, envolveu a gigante dos aviões, Boeing. ‘A empresa, já mencionada anteriormente neste relatório, recebeu críticas intensas com o incidente de encalhe de astronautas, com problemas e escrutínio sobre protocolos de engenharia e segurança.” A OpenAI, a criadora do Chat GPT, teve uma porta giratória no escritório do CEO quando o conselho demitiu o fundador Sam Altman e o reintegrou dias depois, destacando fragilidades na governança e nas comunicações da empresa.’
“Apenas para dar um exemplo de má gestão, que decorre de falhas ou soberba do titular da conta. A reação negativa do público e dos reguladores atingiu a Qantas Airlines, citando problemas com falhas no atendimento ao cliente, cancelamentos de voos e remuneração de executivos. A farmacêutica AstraZeneca foi criticada por violações de privacidade de dados e importações não autorizadas de medicamentos. A gigante da contabilidade PwC foi multada em US$ 3,35 milhões por não manter a independência dos auditores, especialmente no que se refere a relacionamentos de consultoria com clientes de auditoria, o que destaca falhas sistêmicas de conformidade e governança.”
A fabricante de motores Cummins Diesel recebeu uma multa de US$ 2 bilhões por manipular dados de emissões de diesel, expondo má gestão de conformidade. É a típica crise criada na mesa da diretoria, porque decisões como essa não teriam sido tomadas, sem anuência do “board” da organização.
Catástrofes como desastres naturais
“Esta categoria teve a queda mais significativa, para apenas 2,21% das notícias rastreadas e, na ausência de notícias sobre a COVID, retornou ao nível de 2019. Apesar da reversão, o ano foi marcado por desastres naturais em todo o mundo. De acordo com uma análise do World Weather Attribution Group, as mudanças climáticas causadas pelo homem tornaram as inundações de 2024 duas vezes mais prováveis de ocorrer e 10% mais intensas. Dados da NOAA, EM-DAT e Gallagher Re identificaram o furacão Helene como o sétimo desastre climático mais custoso da história, com US$ 79 bilhões e 219 mortes. Mais dois eventos entraram no ranking: o furacão Milton (nº 17), com US$ 34 bilhões e 32 mortes, e as inundações na China (nº 19), com US$ 31 bilhões e 605 mortes. Ondas de calor na Europa, Arábia Saudita e EUA ficaram entre as 20 piores de todos os tempos, com mais de 13.000 mortes combinadas. Um incêndio florestal no Chile foi classificado como o quinto mais mortal, com 137 mortos.”
Tragédia no sul do Brasil
Não esquecer que, aqui no Brasil, a tragédia que atingiu grande parte do estado do Rio Grande do Sul, em maio e junho de 2024, foi o maior desastre natural no estado da história. O transbordamento de vários rios em boa parte da região central do território gaúcho, incluindo a capital, não tem precedentes no País. Foram contabilizadas 183 mortes e 27 desaparecidos, até agora. Não pairam dúvidas de que a inundação que transformou cidades gaúchas em lagos e pântanos, atingindo a infraestrutura do estado e arrasando cidades ao longo do leito dos rios, supera em extensão, impacto humano e econômico, a tragédia do estado do Rio de Janeiro, que era o pior desastre climático do país, até então, com cerca de 1.000 mortes, em 2011. A Defesa Civil do RGS informou que quase 1,5 milhão de pessoas foram afetadas em razão das fortes chuvas que atingiram o estado durante quase dois meses. A capital, Porto Alegre, não enfrentava uma inundação naquela dimensão, desde 1941.
O clima cada vez pior no mundo todo
Segundo o Relatório do ICM, “A onda de calor mortal na Arábia Saudita atingiu o país durante a peregrinação anual do Hajj, com temperaturas superiores a 50°C. O Supertufão Yagi foi uma das tempestades mais mortais do ano, com 460 mortos em Mianmar e 345 no Vietnã. A tempestade deixou um amplo rastro de destruição nas Filipinas, Tailândia e China, além de milhões de pessoas. Inundações na África, de julho a setembro, ceifaram quase 1.000 vidas. De acordo com o EM-DAT, mais de um quarto dos 30 desastres climáticos mais mortais na África ocorreram desde 2022.”
Incêndios florestais catastróficos no Chile marcaram o pior desastre desde 2010, e grandes inundações no Brasil causaram quase US$ 7 bilhões em danos, desabrigando centenas de milhares de pessoas. Na Espanha, do final de outubro a meados de novembro, um fenômeno atmosférico raro causou inundações fatais, resultando em 126 mortos e US$ 11 bilhões em prejuízos.
Nos EUA, ocorreram 27 desastres climáticos com prejuízos superiores a US$ 1 bilhão cada, incluindo inundações, tempestades severas, furacões, incêndios florestais e tempestades de inverno.
Acidentes com vítimas
Essa categoria representou menos de meio por cento, ou 0,48% das notícias contabilizadas. Tragédias de aviação, embora tenham reduzido em relação a anos recentes, registraram mais de 318 mortes em 11 acidentes civis em todo o mundo, o ano mais mortal para a aviação desde 2018. “Dois dos três acidentes mais mortais ocorreram no final do ano. Coroando mais um ano ruim para a Boeing em crise, um 737-800 da Jeju Air sul-coreana caiu em 29 de dezembro, matando 179 pessoas. No Nepal, um CRJ-200ER caiu, matando 18 dos 19 a bordo. Outros acidentes fatais ocorreram no Canadá, Brasil e Japão.” No Brasil, a maior tragédia ocorreu no interior de S. Paulo na queda do ATR da Voepass, que perdeu sustentação e se precipitou no solo, matando todos os 62 ocupantes.
Acidentes ferroviários e fatalidades ocorrem com muito mais frequência do que acidentes aéreos. Os EUA e o Canadá registraram ligeiras reduções ano a ano, mas as mortes aumentaram. Nos EUA houve 2.252 colisões em cruzamentos de nível, com 263 mortes e 751 feridos. No Canadá, foram registrados 896 incidentes ferroviários, com 69 mortes.
Ações coletivas
Essa categoria contempla as crises judiciais que levam empresas a pagar indenizações às vezes bilionárias. O número de casos nesta categoria diminuiu em vários milhares, mas a proporção em relação as demais crises aumentou para 17,90%. “O maior acordo de ação coletiva de 2024, de mais de US$ 10 bilhões, envolveu ações judiciais por contaminação por PFAS contra fabricantes dos chamados "produtos químicos eternos", que foram associados a riscos ambientais e à saúde.”
Os acordos de ações coletivas de valores mobiliários atingiram um recorde de US$ 4,1 bilhões em 2024, liderados por grandes empresas de tecnologia, incluindo Intel, Snowflake e Crowdstrike. Seis dos dez maiores acordos foram no setor de tecnologia.”
Existem ainda aquelas crises intermináveis, quando a empresa acusada posterga ou prolonga o litígio para chegar a um acordo. O litígio em andamento contra a Johnson & Johnson continuou, com 58.000 processos pendentes, sobre um talco, após uma tentativa frustrada de acordo de falência. “Os casos da J&J são particularmente desanimadores, visto que a empresa tem sido considerada o padrão ouro em gestão de crises decorrentes de sua resposta aos envenenamentos por Tylenol em 1982”, diz o Relatório.
Crime Cibernético ou ciberataque
Esta categoria, a terceira pior do levantamento feito pelo ICM, superou o ano anterior, atingindo 13,29% das crises apuradas de 2024. Este é o maior resultado na categoria desde que o ICM começou a monitorá-lo, em 2014. “De acordo com o Centro de Recursos para Roubo de Identidade (ITRC), somente nos EUA, houve mais de 3.100 comprometimentos de dados, um pouco abaixo dos números de 2023, mas com um aumento de 312% no número de notificações às vítimas, que superou o ano anterior, com 1.350.835.988 (sim, bilhões). Cinco mega violações foram responsáveis pela maior parte do aumento significativo. Do total de violações relatadas, 455 foram phishing, 188 ransomware, 48 malware e 29 credential stuffing. Mais de 1.700 não foram especificados.
É bom lembrar que há dois anos o Cyber crime era uma das crises que pontificavam a lista de ameaças ou alertas do Fórum Econômico Mundial de Davos, Suíça, que se realiza anualmente. Recentemente, caiu no ranking internacional das crises, pela incidência cada vez maior de tragédias climáticas. Conclusão: ele ainda é uma grande ameaça às empresas no mundo todo. **
“Em uma das maiores incursões registradas, a Change Healthcare, subsidiária da United Healthcare, nos Estados Unidos, foi atingida por um ataque de ransomware do grupo BlackCat, que paralisou os sistemas de pagamento de planos de saúde, atrasou o atendimento aos pacientes e expôs os dados de quase 200 milhões de pessoas. O ataque custou à gigante dos seguros quase US$ 10 bilhões em custos de resposta e assistência a provedores. O ransomware foi supostamente usado em 95% de todas as violações no setor de saúde.”
Discriminação
A próxima mudança inversa foi identificada nesta categoria, com 11,64% das notícias contabilizadas em 2024. Novamente, o número de notícias diminuiu, mas a parcela da categoria no bolo da crise aumentou significativamente. A discriminação tornou-se mais complexa e persistente, com retrocessos em direitos de gênero, igualdade no local de trabalho e proteção de minorias. Um dos agravantes para essa categoria de crise se manter em alta é o processo migratório ocorrido no mundo, no ano, associado também aos conflitos ocorridos, como Rússia-Ucrânia; Israel x Gaza e em vários países da África.
Segundo o Relatório do ICM, “Durante o ano, a Comissão para a Igualdade de Oportunidades de Emprego (EEOC) dos EUA entrou com 110 ações judiciais em uma série de questões, com foco em preocupações emergentes e comunidades carentes e vulneráveis. A EEOC recebeu 88.500 denúncias de discriminação no local de trabalho em 2024.
“A carga de trabalho da agência durante o ano incluiu inúmeros casos envolvendo assédio sexual, discriminação por deficiência e aplicação dos requisitos de relatório EEO-1. Em agosto, um júri federal em Indiana concedeu mais de US$ 1 milhão a um autor negro que não foi contratado devido à sua raça, em um dos maiores casos de discriminação do ano. Em vários estados, procuradores-gerais entraram com ações judiciais contestando a nova orientação da EEOC que exige que os empregadores reconheçam a identidade de gênero e os pronomes dos trabalhadores.”
“Infelizmente, a discriminação na mídia não se limitou aos Estados Unidos. Em todo o mundo, quase um quarto dos governos relatou uma reação negativa aos direitos das mulheres, com mulheres e meninas enfrentando crescente discriminação, proteções legais mais fracas e menos financiamento para programas de apoio. A ONU Mulheres relatou um aumento preocupante na violência contra mulheres e meninas, incluindo feminicídio, em que uma mulher ou menina foi morta, em média, a cada dez minutos por um parceiro ou membro da família.”
Consumismo/Ativismo
Embora essa categoria tenha sido responsável por apenas 2,05% das crises contabilizadas no ano, houve acordos bilionários que dão uma dimensão do tamanho da crise para a saúde financeira das empresas envolvidas. “Em um caso que integrou diversas categorias, ativistas ambientais e de defesa do consumidor obtiveram uma vitória decisiva em um acordo histórico de US$ 10,3 bilhões contra a 3M, alegando que a empresa contaminou os sistemas de água dos EUA com produtos químicos tóxicos "eternos".
Como foram outras categorias
Diversas categorias apresentaram reversões significativas no pós-pandemia, incluindo catástrofes, danos ambientais, aquisições hostis, má gestão, assédio sexual, crimes de colarinho branco e violência no local de trabalho. Impressionante como o perfil das crises foi mudando, na medida em que a pandemia era reduzida nos países mais afetados. No rol de crises pesquisadas pelo ICM eventos com índices menores em relação ao grupo das grandes crises contemplam as seguintes categorias: Defeitos e recall (2,19); Danos ambientais (0,21%); Demissão de executivos (1,07%); Assédio sexual (2,08%); Crises de denúncia (4,33%); Crimes de colarinho branco (5,32%) e Violência no local de trabalho (4,71%).
Veja a íntegra do Relatório Anual do ICM
Passada a eleição, ainda reverberam nos ouvidos as promessas dos candidatos de um “país melhor e mais justo”. Se 20% das promessas fossem cumpridas, transformariam o Brasil numa Suíça. Mas é hora de cair na real. Chegou a hora de pensar um pouco por que estamos a anos-luz de países adiantados. Alguns, nos últimos anos, enfrentaram crises muito mais graves do que as nossas. Nações que literalmente quebraram, foram parcial ou quase totalmente destruídas, e conseguiram se reerguer.
Jonathan Bernstein*
Todas as organizações são vulneráveis a crises. Você não pode servir a uma população sem ser submetido a situações que envolvam processos, acusações de impropriedade, mudanças bruscas de gestão e outras situações voláteis nas quais seus stakeholders - e os meios de comunicação que lhes servem - muitas vezes se concentram.
"O verdadeiro tesouro do homem é o tesouro dos seus erros, empilhados pedra por pedra por milhares de anos", escreveu o grande filósofo espanhol José Ortega y Gasset em seu livro, "Para uma filosofia da História", no ano de 1941. Embora nos orgulhemos de sempre "querer começar de novo", a civilização exige que nós nunca quebremos a nossa continuidade com o passado. Afinal, a própria memória do que se passou gravemente errado se torna exigência clara para o progresso."
O grande número de crises surgidas todos os dias, cobertas ou não pela mídia, poderia sugerir que elas decorrem de um estado da natureza, como alguns autores defendem. Nesse caso, elas fariam parte da vida das organizações. Seriam eventos negativos, mas normais, contra os quais muito pouco poderia ser feito.
A indústria farmacêutica, que já não tem uma boa reputação, principalmente nos países desenvolvidos, sofreu novo arranhão, na semana passada, com a notícia de que o laboratório britânico GlaxoSmithKline foi multado em cerca de US$ 500 milhões na China, por corrupção. O tribunal chinês considerou o laboratório culpado de suborno.
Até que ponto realmente a imprensa está voltada para descobrir a verdade. Nesta semana, a presidente da República disse que não é função da imprensa fazer investigação, e sim divulgar. A crise da mídia propicia debates intensos nesse sentido, até porque ela estaria padecendo de uma “miopia institucional”, vivendo em torno de temas efêmeros e irrelevantes. Mas é inegável a contribuição para exercer o papel de incomodar os governos. Apurando fatos que eles não gostam.