A montadora japonesa Toyota conseguiu driblar a crise do ano passado e encerrou 2010 mantendo o posto de líder mundial, com 8,42 milhões de veículos vendidos. Cresceu 8% e superou por pouco a americana GM, que vendeu 8,39 milhões de unidades. Os números foram divulgados esta semana, em Detroit.
Desde o fim de 2009, a Toyota convocou recalls de mais de dez milhões de carros no mundo, em consequência de diversos problemas técnicos, em particular nos pedais de aceleração, que podiam ser bloqueados, e no sistema de freio, que reagia com atraso, em uma da piores crises da história do grupo. A empresa foi lenta em responder à crise, recebeu interpelação do governo e e do congresso dos EUA e relutou em aceitar os erros.
O desafio de administrar uma reputação global
Artigo do especialista Peter Verrengia, publicado no ano passado, na revista japonesa Kohokaigi e reproduzida no site Reputation Point, analisa a crise da Toyota sob o prisma de uma empresa globalizada, com conceito elevado de qualidade dos produtos e que esqueceu um dos ativos mais importantes de qualquer organização: cuidar da reputação.
A seguir, os principais tópicos da análise do jornalista
A percepção das ações de comunicação da Toyota, sem dúvida, são um pouco diferentes nos EUA e no Japão. Infelizmente, a partir de qualquer perspectiva, o que começou como um drama se transformou em uma crise, que se define como um evento ou série de eventos que ameaçam a capacidade da empresa para conduzir sua estratégia de negócios e alcançar seus objetivos.
De uma perspectiva de gestão da reputação, o principal problema da Toyota é que o seu entendimento das obrigações da empresa para o público não estavam alinhados com as percepções do público sobre as obrigações da Toyota. Isso aconteceu como resultado do sucesso da empresa e a aparente facilidade com que ela se tornou o ícone de qualidade.
Mas quando começaram os problemas de arrogância e autossuficiência da Toyota?
Em algum momento na década passada, entre os consumidores, investidores, formuladores de políticas e líderes de negócios influentes e acadêmicos houve uma mudança fundamental. Todos começaram a pensar a Toyota não como uma companhia de carro que faz um produto de qualidade, mas como empresa de qualidade que também fabrica carros. Quando a qualidade se tornou o produto, e sua reputação tornou-se bi-dimensional (qualidade e tamanho), o risco de reputação começou a aumentar. Como a reputação é um elemento frequentemente desvalorizado no valor da empresa, este aumento do risco da reputação de maneira invisível aumentou o perfil de risco global da empresa - justamente o contrário do resultado esperado pelo sucesso da empresa.
O jornalista admite que “nos EUA, o viés cultural do público é para preencher o desconhecido com a suposição de que as empresas sempre agem por interesse próprio a menos que sejam obrigados a proteger os interesses dos consumidores”. Ele admite também que “ a reação do público americano ocorreu porque os riscos dos produtos automotivos estiveram sempre no cerne do movimento consumista da América, 40 anos atrás, e o fracasso das montadoras domésticas tem sido um símbolo do declínio econômico dos EUA”.
Onde a Toyota acertou?
Uma coisa que a Toyota fez bem, nas primeiras semanas da situação, foi controlar a resposta aos questionamentos. Concessionários, fornecedores, executivos da companhia ficaram ligados às mensagens e não abandonaram o posto e defenderam seus próprios interesses. Isso era de se esperar de uma organização disciplinada como a Toyota.
Por que a Toyota se desgastou?
Como em qualquer crise que envolva o público, na maioria das economias ocidentais, os consumidores começaram a administrar a sua crescente percepção do risco, exigindo mais informações. Em resposta, a empresa procurou gerir o seu risco crescente por tentar ser mais segura dos seus fatos, e, portanto, mais lenta e menos proativa com a informação. Neste conflito natural, as fissuras começaram a aparecer - as diferenças internas de opinião, informações de várias fontes dentro ou próximas à empresa já não eram tão controladas.
Em qualquer crise, quando executivos individualmente ou aliados corporativos sentem que a sua própria credibilidade está ameaçada, surgem novas informações (rumores). Inevitavelmente, isto estimula os consumidores e seus defensores para escalar sua busca por certezas sobre o que aconteceu e o que vai ser feito. Ao não encontrar respostas certas, eles se voltam para as autoridades - legisladores e os tribunais - para resolver o problema e evitar recorrências.
Após milhões de comentários online e milhares de artigos na mídia, a opinião prevalecente nos EUA é de que o gerenciamento da Toyota deliberadamente escondeu a gravidade dos problemas de qualidade e segurança, para evitar prejuízos financeiros e danos à marca.
O jornalista lembra as considerações do blog do colunista de tecnologia Phil Baker, de San Diego, Califórnia, no ano passado, descrevendo seus argumentos, quando ele se tornou um dos primeiros a declarar publicamente que havia um "encobrimento" dos acidentes com os carros Toyota. É bom lembrar que um dos mais graves acidentes com carros Toyota, em 2009, ocorreu na Califórnia.
"Enquanto eu não tinha nenhuma informação de dentro para tirar essa conclusão ... era óbvio que a Toyota estava sendo falsa. A empresa falhou em fornecer detalhes sobre os testes que havia realizado, e não tornou seus engenheiros disponíveis para discutir as questões. Desde quando minha primeira coluna apareceu, muito mais evidências sairam que têm sustentado estas acusações. . . memorandos internos da Toyota agora mostram que ela se gabava de economizar US$ 100 milhões em recalls pelo êxito das negociações com os reguladores da NHTSA (órgão americano de fiscalização) para limitar suas investigações. "
Segundo o autor do artigo, “A falta de apresentação de informações quando o público as exigiu, e a relutância em colocar peritos disponíveis, eram sinais para o público americano de que a empresa estava escondendo algo. Esta percepção é muito pior do que os próprios problemas dos produtos. Os consumidores americanos perdoarão problemas de qualidade muito mais rapidamente do que eles perdoarão uma omissão, se a intenção foi esconder questões relacionadas ao produto, seja ela verdadeira ou não.
Para Peter Verrengia, a velocidade e gravidade da crise da Toyota foi gerada por outros fatores, muito mais do que pelos aparentes fatos ocorridos com os carros da empresa, nos EUA.
A Toyota teve a infelicidade de ter seus problemas surgidos num momento em que pelo menos quatro fortes correntes estão remodelando ou modificando o ambiente de negócios nos EUA e em boa parte do mundo:
1. Transparência Involuntária
Muito tem sido escrito sobre o impacto do acesso universal e instantâneo a enormes quantidades de informações inéditas, agora disponíveis online para os consumidores e aqueles que os influenciam. Acrescente-se a isso o enorme crescimento das mídias sociais como uma força de formação de opinião e de ganho imediato de acesso individual à experiência e a expectativas de seus pares e especialistas, com a participação ou não das empresas. O resultado é o potencial para a transparência involuntária - a revelação e a disseminação viral de informações sensíveis fora do controle da empresa.
A transparência é sempre um componente crítico da reputação. Mas muitas empresas em todo o mundo sentem que estão fazendo o suficiente, nos momentos bons e nos maus, se elas encontram padrões mínimos de abertura e divulgação da informação às autoridades competentes. Portanto, a demanda supera a oferta de informação. A internet preenche este desequilíbrio, por vezes com informações privilegiadas a partir de fontes não-oficiais. A transparência involuntária cria surpresa e vergonha para muitas organizações.
Empresas norte-americanas tendem a ser mais ativas no ambiente online do que aquelas com sede no Japão, mas a maioria só recentemente começou a usar as mídias sociais nas formas com que as pessoas usam. A maioria das empresas, nos EUA e em outros países, ainda produzem informações às audiências e podem responder a perguntas específicas. De modo geral, elas ainda são a favor de controle de informações mais do que da participação em um diálogo. Esta é uma continuação da estratégia de marca do passado, onde a visibilidade para os produtos era comprada.
Hoje, nos EUA e em outros países, os consumidores muitas vezes rejeitam o ambiente controlado de comunicação corporativa e de marca. Muitas companhias dos EUA se adaptaram ao tratar os consumidores, funcionários, investidores e outros públicos como defensores em potencial, ao invés de componentes potenciais para atingir metas de marketing. Essas empresas agressivamente monitoram as conversas on-line sobre as suas marcas, e dão à comunicação interna e de outros empregados o papel de manter um diálogo permanente com o público externo. Este diálogo é menos formal e mais ágil, como seria num relacionamento pessoal. Há menos senso de autoridade e mais de um sentido de uma solução compartilhada entre a empresa e seus clientes.
Hoje, empresas dos EUA de todos os tamanhos têm vários blogs, sites de grupos de afinidade e participam ativamente nas mídias sociais como Twitter e Facebook. Mesmo algumas das empresas mais conservadoras usam esta comunicação voluntária e interativa para anúncios oficiais, bem como para discussões de rotina.
2. O papel crescente do governo nos negócios
Nos EUA e em muitos outros países ocidentais, o público quer emprego e crescimento econômico, mas não veem o governo como um parceiro de negócios. Ao contrário, é visto como a contrapartida para as empresas. O clamor público sobre a falta de transparência da Toyota e da frustração pública com a incapacidade dos políticos de fazer mais sobre os problemas econômicos do país, criou um ar de frustração, em Washington, que pediu ações rápidas e visíveis da montadora.
Apesar de a Toyota ser responsável por milhares de empregos nos EUA e ter sido parte da economia dos EUA por décadas, nenhuma quantidade de pressão de última hora pode superar o fato de que nenhum político poderia se dar ao luxo de ser olhado como amigo da Toyota, quando a crise atingiu o pico. Isso levou a um interrogatório público de executivos da Toyota, que lembra os bancos e os fundos de hedge se digladiando no auge da crise financeira nos EUA.
3. Complexidade e certeza
Aumentar os produtos e serviços complexos representa um desafio para empresas de engenharia automotiva. Os problemas podem surgir rapidamente e são difíceis de diagnosticar e solucionar. Ao mesmo tempo, os comerciantes querem evitar complexidade e fazer produtos com milhares de peças e processos parecerem simples e super confiáveis.
Assim, surge uma lacuna entre a compreensão dos consumidores dos riscos versus benefícios. Quando os problemas surgem, as empresas que se orgulham de seus processos e da sua engenharia precisam encontrar melhores maneiras de resolver rapidamente os debates internos sobre as causas e soluções. Ou, se possível, fazer os debates mais abertos e públicos, apesar dos riscos de responsabilidade ou vantagem competitiva.
As empresas que operam em vários países e culturas têm desafios especiais na gestão da sua reputação. Isso é especialmente verdade para as empresas complexas que enfrentam as divergências entre normas locais e alta visibilidade pública. Sem um esforço consistente e forte na estrutura da organização, é difícil para as organizações multinacionais manter uma visão consistente da realidade externa entre os membros da equipe sênior de gestão, olhando através de duas dezenas de zonas de tempo (fusos diferentes), múltiplos sistemas políticos e econômicos, e grandes variações de comportamento do consumidor. Como conseqüência, numa crise, pelo menos, 50 por cento do tempo da equipe de administração é tomado pelo debate sobre qual é a arealidade fora dos muros da empresa.
As organizações que têm estruturas rígidas de gestão também enfrentam dificuldades, quando as crises atacam, porque perdem tempo e avaliações honestas podem ser comprometidas, quando os gerentes e executivos de comunicação em mercados distantes são impedidos de uma discussão direta com os tomadores de decisão no topo da organização.
O que podemos aprender com a crise da Toyota
O articulista admite que a Toyota, após essa crise, tem um longo caminho a percorrer. Mas já se podem tirar algumas conclusões específicas sobre o novo ambiente da comunicação que acelerou essa crise e alterou o contexto para todas as reputações corporativas. Da crise da Toyota, é possível também aprender algumas lições específicas para gerenciar reputação e comunicação numa grande empresa global.
Foco renovado nas comunicações: É difícil assistir à luta de uma grande empresa, mas a adversidade pode ser uma boa notícia para a comunicação. Nas principais crises das empresas, o impacto de falhas de comunicação no negócio se torna mais evidente para os executivos sêniores, que não a viam como algo importante. Como resultado, a função da comunicação muitas vezes é parte da culpa, mas também tem a chance de melhorar, recebendo recursos adicionais e mais atenção da gestão. Esta última análise reforça o papel que os profissionais de comunicação podem desempenhar na construção e na proteção da reputação.
Alinhamento das normas internas de sucesso e medidas externas de satisfação: Os valores de uma organização nunca estão mais expostos do que em uma crise. No caso da Toyota, pode ser verdade que as medidas internas de sucesso -- como poupar dinheiro e responsabilidade legal por manter os problemas de produtos escondidos, ou isolando informações entre as partes da organização para proteger os engenheiros e gerentes de críticas -- não foram as que os clientes, os empregados da linha de montagem, acionistas e decisores políticos admitiriam que fossem decisões aceitáveis.
O que define uma grande empresa é a maneira como ela lida bem com os problemas e alcança seus objetivos de negócios, enquanto fornece resultados de uma maneira que seja consistente com os interesses comuns de todos os seus constituintes. A Toyota perdeu sua capacidade de alinhar o controle da qualidade, gestão de riscos financeiros, satisfação dos clientes e cidadania corporativa. Mas não há razão na recuperação da Toyota que não possa definir um novo padrão para o alinhamento dos interesses corporativos e públicos.
A mudança de pensar a marca para a estratégia de reputação: Uma crise que põe em dúvida uma companhia icônica, e toda uma filosofia industrial, como ocorreu com a Toyota, pode ser um divisor de águas para o profissional de comunicação em nível mundial. Os líderes empresariais devem agora perceber que alguns dos fatores que tornaram esta crise tão difícil são verdadeiros para todas as empresas, e estão movendo a economia mundial da era da marca para a era reputação.
Vinte anos atrás, a marca se tornou o foco de criação de valor em muitas indústrias. A idéia então foi usar o crescimento da mídia e maior disponibilidade de renda em todo o mundo como plataformas para a lealdade dos consumidores e tolerância nos preços. Ao reduzir a história de uma marca para alguns atributos diferenciados dos concorrentes, e repetida milhares de vezes, a criação da marca e notoriedade da marca tornaram-se fundamentais para uma abordagem de marketing e comunicação.
Globalizar a gestão da reputação: Enquanto algumas estruturas corporativas e aspectos da cultura empresarial da situação da Toyota podem ser únicas, centenas de empresas, sediadas em outros países, estão igualmente despreparadas para uma situação semelhante.
Empresas com grandes operações, em locais distantes das sedes, precisam adotar princípios básicos, ao invés de uma abordagem centralizada, baseada em regras voltadas para construção de reputação. Elas precisam criar uma estrutura mais rápida e mais flexível para a tomada de decisões de comunicação ao longo de fronteiras, culturas e fusos horários quando os problemas surgem.
Em cada grande mercado, a empresa deve usar consultores, o processo de identificação técnica, social e política de influenciadores e especialistas, e criar a longo prazo um programa futuro de envolvimento pessoal entre os gestores da empresa, e engenheiros e consultores externos. Dessa forma, quando os problemas surgem já existe uma base bem difundida e localizada de entendimento entre os consultores confiáveis, que podem, publicamente e de forma independente, repercutir o compromisso da empresa com os padrões e o desempenho.
Uma parte importante da gestão integrada e globalizada da reputação é um esforço de construção de relacionamento de longo prazo com os líderes dos governos e seus funcionários, órgãos reguladores, organizações não-governamentais e partidos políticos. Isso é mais que lobby para políticas específicas. Mesmo em empresas bem-sucedidas, é comum encontrar relações de governo conduzidas muito separadamente de outros esforços construídos de reputação e relacionamento. Isso pode ser contra-produtivo para a construção de uma reputação clara e com foco, como no caso de uma empresa complexa.
Adoção extensiva de mídias sociais: A evolução da tecnologia da informação não é apenas uma questão de acesso instantâneo a quantidades infinitas de informação. O relacionamento entre as organizações e seus públicos está mudando radicalmente. As empresas não vivem fora da sociedade, e as grandes mudanças sociais devem ser refletidas nas práticas e políticas empresariais.
Para se adaptar, as empresas devem primeiro monitorar ativamente as tendências no conteúdo e o tom do diálogo on-line. Então, elas precisam aprender a responder rapidamente a mudanças na percepção, usando a credibilidade que ganham através do contínuo comprometimento nos relacionamentos ponto a ponto com o público externo. Eles também devem integrar a informação que obtém da análise do conteúdo on-line com outros dados, como pesquisas de comportamento e clima dos funcionários, pesquisas de satisfação do cliente e as avaliações da empresa por ONGs e entidades políticas.
As mídias sociais são construtores da reputação porque reputação é o que os outros dizem sobre você. As empresas não podem mais confiar no que eles dizem sobre si mesmos, através de relatórios de “branding” e corporativos tradicionais, para construir e proteger a reputação. Em geral, as equipes de gestão devem desistir da idéia de que eles podem controlar a forma como a empresa é percebida por controlar a informação. Em vez disso, eles podem estimular e orientar a discussão sobre a organização e explicar o contexto para o sucesso e a filosofia da empresa.
A Toyota enfrenta o difícil desafio de consolidar suas questões de qualidade, de assegurar sua credibilidade e manter sua integração e a função da comunicação global, a fim de reconstruir o seu negócio e sua reputação. Ao aproximar-se rapidamente às práticas e atitudes aqui descritas, a empresa pode construir um forte alicerce para uma recuperação mais rápida.
Tradução: João Paulo Forni
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