press-roomAté que ponto realmente a imprensa está voltada para descobrir a verdade. Nesta semana, a presidente da República disse que não é função da imprensa fazer investigação, e sim divulgar. A crise da mídia propicia debates intensos nesse sentido, até porque ela estaria padecendo de uma “miopia institucional”, vivendo em torno de temas efêmeros e irrelevantes. Mas é inegável a contribuição para exercer o papel de incomodar os governos. Apurando fatos que eles não gostam.

Campanhas eleitorais, como acontece agora no Brasil, são propícias a discutir o que realmente interessa na mídia para ajudar o eleitor a tomar uma decisão. “Quando os políticos se preocupam com a percepção pública de uma decisão mais do que a substância da decisão em si, estamos vivendo em um mundo de ótica”. Este parece ser o dilema do jornalismo também.

Em instigante artigo publicado na revista americana The Nation, Reed Richardson faz uma reflexão sobre como o jornalismo pode estar ameaçando a democracia, ao se afastar cada vez mais da busca da verdade, em benefício da cobertura rápida e superficial, principalmente quando ela entra numa disputa de versões e não dos fatos.   

Da ótica e objetividade: como o jornalismo está falindo nossa democracia

The Nation, artigo de Reed Richardson

Dependemos de jornalistas para nos dizer o que é que eles podem ver que o público não consegue; e dependemos da imprensa para dar o testemunho de que é realmente verdade, mesmo quando os poderosos não querem. Esse é o dever da imprensa livre em nossa democracia. Mas há um importante qualificador nesta relação para que ela funcione: a imprensa tem de estar realmente procurando a verdade, e olhando no lugar certo, para que isso funcione.

Tragicamente, a imprensa parece cada vez mais incapaz de viver essa parte do negócio. Em vez de oferecer perspectivas esclarecedoras, a mídia convencional apresenta cada vez mais uma espécie de miopia institucional, marcada por uma pequena visão superficial e ofegante em assuntos efêmeros, além de fixações periféricas no irrelevante. Mais e mais, estamos vivendo em uma época onde a arte do espetáculo importa tanto ou mais na mídia do que a arte de governar.

Esse fascínio crescente com a "ótica" revela muito sobre como os valores-notícia da nossa imprensa foram comprometidos por aqueles que a cobrem. De volta a 2010, a coluna de Ben Zimmer do New York Times, "On Language", ofereceu uma história etimológica interessante a respeito do termo, que também fala muito sobre a armadilha em que a imprensa caiu.

Quando os políticos se preocupam com a percepção pública de uma decisão mais do que a substância da decisão em si, estamos vivendo em um mundo de ótica. Naturalmente, os funcionários eleitos têm se preocupado com as aparências externas, desde tempos imemoriais, mas o ótica coloca um novo rumo sobre as coisas, dando um ar de brilho científico para as Relações Públicas e para o processo de construção de imagem.

Em outras palavras, a ótica é o antijornalismo. Ela desculpa todos os instintos mais básicos e inerentes à enrolação, ilusão e enganação do público. A ótica envolve a absorção passiva de notícias versus a notificação intrépida de quem a faz. A ótica gera crítica de teatro ao invés de verdadeira prestação de contas.

E, no entanto, a ótica se tornou tão incorporada em nossa cultura de notícia, especialmente na imprensa política, que, aparentemente, não passa um dia sequer sem haver alguém da mídia que se fixe no esplendor (ou na escassez de) dos líderes de nossa nação, muitas vezes à custa de relatar o que eles estão realmente fazendo em nosso nome. Sobre o Media Matters (1), Eric Boehlert (2) faz um grande trabalho ao contar tintim por tintim como funciona essa obsessão da imprensa e como essa "ótica" tem influenciado o Beltway (3) nas últimas semanas. (1)

Mas não é só a imprensa política que está tão aflita. Isso é endêmico nesse momento na mídia. Considere a reação, no início desta semana, ao vídeo do elevador no qual Ray Rice agride violentamente sua então namorada. Lançado na segunda-feira (8/09) pelo site do tablóide TMZ, este novo vídeo rapidamente se tornou viral, acendendo uma longa tempestade midiática de condenação a Rice pelo ataque, e à sua equipe e também à NFL (National Football League), por terem, respectivamente, se empenhado em uma óbvia acusação à vítima e aplicado (ao acusado) um castigo risível.

Esse “tapinha nas costas” levou, por sinal, até o comissário da NFL, Roger Goodell, a admitir que foi um "erro", mas, mesmo assim, ele não tomou medidas de correção. Até que, na segunda-feira à tarde, o time de Rice o cortou sem cerimônias da liga e, de repente, também decidiu suspendê-lo de jogar, por tempo indeterminado. Justiça, antes tarde do que nunca, certo?

Na verdade não. Não quando se consideram as circunstâncias que precipitaram as ações da NFL. Pense sobre o que tinha, ou, mais precisamente, o que não tinha mudado entre domingo e segunda-feira. Será que o público, a imprensa e a liga agora sabem mais sobre a agressão? Na verdade não. Será que o mais recente vídeo de dentro do elevador apresenta novas provas contundentes? De modo nenhum. (A defesa de Rice afirmou que sua namorada o acertou primeiro, mas isso nunca poderia mudar a realidade de que ela ainda acabou sendo golpeada por ele, até ficar inconsciente). Os fatos que todos conheciam sobre aquela noite não haviam mudado. Em outras palavras, o que mudou foi a ótica.

O fato de que tenha demorado tanto para a NFL agir apropriadamente diz tudo o que você precisa saber sobre as prioridades morais falidas da liga. Mas não vamos deixar a mídia esportiva fora da mira também. Durante meses, repórteres da área mostraram um interesse anêmico na história, apenas repetindo de bom grado pontos de discussão lançados pela liga e pela equipe de Rice.

Quando a liga se emudeceu de repente sobre o segundo vídeo desta semana, alguns dos jornalistas esportivos de elite pareceram patetas. Não importa se havia uma história maior ali - a NFL tem um longo histórico de acomodar agressores domésticos. É claro que, para minimizar a história por tanto tempo, a imprensa praticamente garantiu que vitimizaria Janay Rice antes de seu abusado marido ganhar uma punição mais merecedora.

Não há desculpa para essa traição, mas há uma explicação. A equação da teatralidade da notícia com a própria notícia da imprensa em si começa a fazer sentido quando se considera o contexto da necessidade inflexível de a profissão ser considerada objetiva. Para muitos órgãos noticiosos, ser justo e objetivo nasce do exercício de julgamento das notícias sobre quem está (ou não está) falando a verdade ao tratar o ponto de vista de todos igualmente, deixando isso para o público descobrir por si mesmo.

Como resultado, a aparência de ser justo tornou-se uma muleta útil para a mídia convencional; uma maneira fácil de proclamar a neutralidade e afastar as alegações de parcialidade enquanto estimula argumentos preguiçosos e superficiais, tipo relatos ele-disse, ela disse.

Em outras palavras, a raiz dessa obsessão ótica se origina de dentro. Os jornalistas, particularmente aqueles em posição de mais alto nível, prestam tanta atenção à ótica porque foram treinados para pensar sua própria cobertura dessa maneira. E em nenhum lugar isso se torna mais evidente do que em nossa cobertura política.

Assim, é muito mais fácil encontrar descrições infinitas e fugazes de como o presidente faz um discurso ou o que ele diz em uma entrevista coletiva do que encontrar uma análise incisiva de sua política real. Mas, em Washington e em outros lugares correlatos, a hierarquia do que é considerado interessante e importante tem sido invertida. Há pouca estima profissional a ser adquirida por se ter feito o certo hoje em dia. (Basta perguntar a qualquer pessoa nos meios de comunicação que se opôs à Guerra do Iraque).

Contudo, não há nada de errado em escrever algo espetacularmente equivocado em uma base diária. (Considere cada comentarista neoconservador que apoiou a Guerra do Iraque). Em vez disso, o que é mais recompensado nos dias de hoje são os "temas quentes", servidos 24 horas, sete dias por semana, com a pretensão superficial de prestação de contas.

Mas quando a imprensa depende tão fortemente da ótica, as nossas prioridades democráticas podem facilmente ser mexidas e manipuladas. Por exemplo, a violência doméstica assola nossa sociedade e milhões de americanos estão em risco todos os anos. E ainda instituições como a NFL - com o auxílio de uma imprensa complacente - efetivamente normaliza esse tipo de epidemia, cobrindo o assunto com naturalidade, a menos, ou seja, que isso seja um caso de alta visibilidade, passível de tornar o problema, temporariamente, em algo que não pode ser ignorável.

De fato, se há algo que podemos tirar desse caso da NFL com o incidente de Rice é que a mídia pode ser ridicularizada e até ser humilhada por não fazer o seu trabalho.

Ao mesmo tempo, o nosso país está agora pronto para reacender uma guerra contra um grupo terrorista no Oriente Médio, apesar de os funcionários da Segurança Nacional dizerem que eles não representam uma ameaça de ataque aos Estados Unidos. Incontáveis bilhões de dólares serão gastos e incalculáveis vidas iraquianas (e possivelmente sírias) serão perdidas na campanha para "degradar" e "destruir" o ISIS.

E, no entanto, estima-se que 16.800 americanos morrem anualmente de homicídios relacionados à violência doméstica. É claro que não é uma simples questão de fazer um ou outro, mas é o senso de proporção que está fora de sintonia. Uma crise está tão perto, tão penetrante e, portanto, tão comum que a elite da mídia não pode ser incomodada com isso, enquanto a outra é tão longe, tão regionalizada e tão exótica que se torna capaz de sugar todo o oxigênio da mídia.

Mais uma vez, não é difícil encontrar a ótica por trás. O frenesi da imprensa sobre as horríveis decapitações gravadas em vídeo pelo ISIS de dois jornalistas norte-americanos implorou ao presidente para fazer alguma coisa. E a mídia convencional de Washington nunca foi conhecida por se afastar de guerras. Alguns observadores perspicazes notaram que os insultos macabros do ISIS no YouTube são todos uma armadilha para os EUA, uma vez que é de nossa preocupação nacional ver o mal em todos os lugares e dar uma resposta dura diante disso.

Infelizmente, parece que nossos inimigos nos conhecem melhor do que nós mesmos. Graças ao véu do medo, a mídia tem recentemente atraído todo o país e estamos à beira de ter que aprender mais uma vez as mesmas caras e dolorosas verdades que tivemos de experimentar no Iraque. E, em última instância, se derrotamos ou não o ISIS militarmente, provavelmente isso não importará muito para a imprensa do circuito Beltway, em poucos anos, de qualquer modo. Até então, ela terá se entediado e então mudará para o mais recente objeto brilhante, como a eleição presidencial de 2016 ou o próximo grupo de extremistas, ungidos para tomar o lugar de ISIS como a ameaça número um da nossa nação. E assim por diante.

Assim é seguro dizer que este ciclo vicioso, esta cobertura míope juntamente com tamanha prestação de contas à falência não faz uma boa imagem da eficácia do jornalismo objetivo. Má ótica, pode-se mesmo dizer. Mas é improvável ver uma mudança em breve. Não até que percebamos que uma ameaça muito maior à nossa democracia ocorre quando a imprensa passa muito tempo consumida com o pouco que já pode ver e possui muito pouco tempo para tentar buscar muito do que não pode ver.

(1)    Media Matters for America (MMfA) é um grupo de vigilância e crítica da mídia politicamente progressista, voltado principalmente para Washington, que se atribui a função de se dedicar a monitorar, analisar e corrigir distorções na mídia norte-americana.

(2)    Eric Boehlert, escritor americano, autor do livro Bloggers on the Bus: How the Internet Changed Politics and the Press e pesquisador sênior e um dos autores que escrevem para o Media Matters for America. Trabalhou também durante anos para a revista Salon.

(3)     Beltway (referência a uma rodovia – The Capital Beltway - que circunda Washington), termo consagrado pela cobertura jornalística americana de temas que são ou parecem ser importantes, primeiramente, às fontes oficiais do governo; aos contratantes e lobistas e à cobertura que a mídia faz desse público, em detrimento dos interesses e prioridades da população dos Estados Unidos.

Tradução: Jessica Behrens. Edição: João José Forni

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