É certo que a empresa sempre foi alvo de governos e dirigentes inescrupulosos, como bem retrata o livro “Petrobras – Uma história de Orgulho e Vergonha”, da jornalista Roberta Paduan. Criada no segundo governo Getúlio Vargas, em 1953, a Petrobras logo se transformou em orgulho nacional, símbolo da campanha “O Petróleo é nosso”. Mas, vez ou outra, nos diversos governos, a empresa, pelo volume de negócios e a importância estratégica para o país, era usada por algum diretor ou até mesmo o presidente, geralmente indicado político, para benefício próprio, do partido ou de grupos políticos. Não é demais lembrar que a Petrobras, junto com Banco do Brasil, BNDES e Caixa sempre são citadas (e cobiçadas) como as joias da coroa, na hora de lotear cargos de governos.
Mas a “pós-graduação” em corrupção na Petrobras teve curso durante o período dos governos Lula e Dilma. Dilma Roussef praticamente comandou a Petrobras desde 2002, até sofrer o impeachment. Presidente do Conselho de Administração durante o governo Lula e, depois, como presidente da República, era responsável pela indicação dos dirigentes, entre eles pela manutenção do escorregadio e, surpreendemente, impune ex-presidente Sérgio Gabrielli, que assumiu a estatal em julho de 2005 e lá esteve até fevereiro de 2012, por quase sete anos, portanto. Em agosto do ano passado, o TCU havia condenado Gabrielli e o ex-diretor da Área Internacional da Petrobras Nestor Cerveró a pagar US$ 79,89 milhões em conjunto, mais R$ 10 milhões cada em multas, pela compra da Usina de Pasadena, na Califórnia, além de ficar inabilitados para exercer cargo público por oito anos. Mesmo assim, Gabrielli continuou impune durante os últimos anos, como titular da secretaria de Planejamento da Bahia, até dezembro passado. Comparecia a eventos do PT e de campanha de Haddad, como se o rombo da Petrobras nada tivesse a ver com ele.
Foi preciso o país passar por um impeachment, que derrubou Dilma Roussef, para que fosse indicada uma administração não apenas competente, mas também honesta e comprometida em salvar a empresa. Os dirigentes que assumiram, capitaneados pelo ex-ministro do governo FHC, Pedro Parente, e pelo diretor financeiro, Ivan Monteiro, ex-diretor e vice-presidente do Banco do Brasil, devem ter feito uma visita ao “inferno de Dante” antes de conseguir sanear a empresa. Quando chegaram, a Petrobras estava no fundo do poço. Ameaçada até de solvência, pelo alto nível de endividamento, por investimentos mal feitos em projetos que já nasceram fracassados - como o a usina Abreu Lima, em Suape, Pernambuco, a mais cara do mundo; e o Comperj-Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, em Itaboraí - e pelas inúmeras ações judiciais que pipocaram, inclusive do exterior, a Petrobras tinha perdido R$ 160 bilhões em valor de mercado, desde o início da Lava Jato. Nesse período, os brasileiros tiveram que ouvir de militantes que a Lava Jato estava destruindo a estatal; que ela era vítima nesse processo, como se tudo que aconteceu na Petrobras não fosse obra de pessoas, melhor dizendo de uma quadrilha, que se apossou da estatal, a partir de 2002.
A volta por cima
Ao anunciar lucro em 2018 de R$ 25,8 bilhões, a Petrobras vira a página da história. É o primeiro resultado positivo obtido desde o início da Lava Jato, em 2014. A empresa, no período de saneamento, reduziu o endividamento, pela venda de ativos e corte de despesas; e segurou investimentos. O presidente atual, recém empossado, disse que a Petrobras “convalesce de grave doença”. Na cartilha do Crisis Management, a Petrobras está naquela fase chamada de pós-crise. É uma dos períodos mais difíceis, das três fases do ciclo do gerenciamento de crises: Preparação (antes da crise, prevenção, simulação, treinamento), Resposta (enfrentamento da crise real time, contenção de danos,) e Recuperação (pós-crise, avaliação, retomada dos negócios), após uma empresa enfrentar uma crise grave. É hora de lamber as feridas, zerar passivos, sanear a empresa e avaliar. Por que e como aconteceu esse descalabro na empresa? Como os executivos foram cooptados? Onde e por que ocorreram as falhas nos controles internos, na auditoria e no compliance?
Sempre é bom perguntar. O que faziam essas áreas de controle, enquanto a quadrilha de políticos literalmente saqueava a Petrobras, num descalabro tão grande que custa a crer não tivesse o conhecimento dos Conselhos. Ainda não há um número final, mas calcula-se algo próximo de R$ 50 bilhões de reais desviados para partidos políticos e contas particulares, com a complacência, de uma forma ou outra, de várias empreiteiras, como Odebrecht, OAS, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, UTC Engenharia, Engevix, IESA Óleo e Gás. Sem falar em empresas subsidiárias, como Transpetro, ou criadas para suprir a Petrobras, como a Sete Brasil.
Ainda não é certo o montante desviado pela corrupção na Petrobras, até porque a Operação Lava Jato continua apurando. Procuradores da força-tarefa já estimaram o rombo em R$ 20 bilhões. Em laudo de 2015, no entanto, peritos da Polícia Federal estipularam que os desvios estão na faixa de R$ 6,4 bilhões a R$ 42,8 bilhões, trabalhando com uma margem de 3% a 20% para a majoração excessiva das margens de lucros das contratantes. O certo é que o prejuízo direto e indireto por essa crise ainda não tem um valor fechado.
A notícia de que a Petrobras conseguiu reverter ciclo de perdas anuais, iniciado há pelo menos quatro anos, quando deixou os acionistas à míngua, é alvissareira não apenas para a empresa e os empregados, mas também para o mercado e o país. Esta que já foi a quarta maior petroleira do mundo, entrou no inferno astral a partir da revelação da malfadada compra de uma usina em Pasadena, Califórnia. A compra de usina sucateada, aprovada quando Dilma Roussef era presidente do Conselho de Administração, foi auditada pelo TCU, que concluiu ter ocasionado um prejuízo à Petrobras de US$ 741 milhões. Toda a história dessa compra é nebulosa. Hoje se sabe que os valores inflados ajudavam a engordar a bolsa da propina, não importando se era um investimento fadado ao fracasso ou não.
Quanto ao lucro atual, é certo que um dos fatores de que a Petrobras se beneficiou foi o aumento no preço do petróleo (em junho de 2017, o barril de petróleo estava a US$ 46,89. Em outubro de 2018, havia subido para US$ 80,47). Mas, mesmo que o preço tivesse se mantido elevado, nos últimos anos, a Petrobras não se recuperaria, diante da magnitude dos desvios realizados, sob o olhar complacente dos Conselhos, da diretoria e de dois governos, Lula e Dilma. O processo de saneamento da empresa, refletido agora nos resultados, é uma boa história de gestão que precisa ser contada. Como foi possível resgatar uma grande empresa de uma grave crise financeira e ética? É importante e necessário que essa história fique registrada, para que nunca mais se repita.
Um depoimento contundente
“Tive o privilégio de servir no Conselho de Administração da Petrobrás entre 2013 e 2015. Quando assumi o cargo ainda não havia sido deflagrada a Operação Lava Jato e quando saí a empresa reconhecia perdas de mais que R$ 50 bilhões em seu balanço - que nem assim contou com meu voto favorável.” A afirmação é do ex-conselheiro do Conselho de Administração da Petrobras, Mauro Rodrigues da Cunha, que, num artigo para o jornal “O Estado de S. Paulo”, em 20/10/18, expôs as entranhas da empresa, ao admitir que o problema da Petrobras não foi a falta de controles internos. Talvez o que tivesse faltado mesmo fosse “vergonha”, o compromisso com o múnus público e com a gestão responsável e não com as práticas patrimonialistas de prepostos políticos.
“Ao assumir, a primeira coisa que chamou a minha atenção foi a pletora de políticas e controles internos na companhia. Não havia uma só atividade citada nos manuais de boas práticas de governança que não estivesse documentada e controlada. Se há alguma coisa que não faltava na Petrobrás era controle interno. Mas a Petrobrás só tinha boa governança para inglês ver. A partir da gestão de José Sergio Gabrielli teve início um processo de desmonte deliberado dos gatilhos de governança, na prática tornando inócuos os controles existentes.” (grifo nosso).
“A companhia tinha um conselho de administração bovino. Todos os membros indicados pelo governo votavam em uníssono a favor das propostas do controlador. (grifo nosso). O comitê de auditoria, quando começou a fazer perguntas incômodas, foi obliterado para ser mais cordial, eliminando os independentes." Esse depoimento contundente diz tudo. A maior empresa do País foi aparelhada com alto nível de sofisticação, no que resultou numa escalada de descalabros e desvios para beneficiar um projeto de poder.
O ciclo doloroso
Não foi um caminho fácil. O atual presidente, Roberto Castello Branco, recém empossado, disse que “o ano passado marcou o fim de um ciclo doloroso”. O que até hoje impressiona é ter acontecido essa crise grave, sem que um funcionário sequer denunciasse e expusesse o que acontecia na empresa, sem que os sindicatos – tão ciosos e prontos para convocar greves, paralisações e protestos - movessem uma palha para denunciar o que acontecia nos porões e salões refrigerados da estatal. Como se o esquema de propina e desmandos tivesse se estabelecido ali nas salas da diretoria da Petrobras sob um pacto de silêncio entre dirigentes e sindicalistas, onde se destacavam, principalmente, os principais executivos da companhia.
Sim, porque até hoje a Operação Lava Jato continua denunciando até mesmo gerentes da estatal. Como foi possível membros do Conselho de Administração, por onde passaram presidentes como Dilma Roussef e Guido Mantega, não saberem o que acontecia nas finanças da Petrobras? E o Conselho Fiscal? E a Auditoria independente, contratada pela empresa, como chancelava os balanços?
Depois do “butim” cometido sob o beneplácito de pelo menos quatro ex-diretores da Petrobras (Renato Duque, Jorge Zelada, Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró, todos eles condenados pela Operação Lava Jato, presos ou beneficiados por delação premiada), a gestão que comandou a Petrobras, no governo Temer, deixou a empresa pelo menos no caminho para ser saneada. O resultado acabou chegando agora, nos números anunciados.
O saneamento não acabou. “Para cortar custos, a empresa anunciou o fechamento do escritório da Avenida Paulista, além dos escritórios de Nova York, África, Irã e Japão. E o conselho também decidiu que os salários da diretoria, incluindo o do presidente, permanecerão congelados neste ano”, diz o comunicado distribuído.
Muito vai se falar e escrever sobre a Petrobras nos próximos anos. Oxalá seja sobre os bons resultados, o que é muito importante para o país. Mas, a crise da Petrobras entra para os anais daquelas mega-crises, que jamais poderão ser esquecidas, porque, no limite, não tivesse sido aparelhada da forma que foi, essa crise não precisava ter ocorrido. Lamentavelmente, a crise da Petrobras derrubou o PIB do País, desde 2014; acabou com dezenas de milhares de empregos, levando a maioria desse contingente de pessoas para a linha da pobreza; derrubou a Bolsa de Valores e atrasou investimentos da empresa que hoje poderiam estar gerando riqueza. Tivesse governos sérios, comprometidos com o país, com as gerações futuras, com a economia brasileira, e a Petrobras hoje poderia ser uma das maiores corporações do mundo.
*A Operação Lava Jato é um conjunto de investigações em andamento pela Polícia Federal do Brasil, executada em conjunto pelo Ministério Público Federal e Procuradoria-Geral da República, que cumpriu mais de mil mandados de busca e apreensão, de prisão temporária, de prisão preventiva e de condução coercitiva, visando apurar um esquema de lavagem de dinheiro que movimentou bilhões de reais em propina, envolvendo principalmente políticos, donos de construtoras, doleiros e operadores de câmbio. Teve início em 17 de março de 2014 e já está na 60ª fase.
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