Governantes populistas podem até ser lembrados pela história. Pelo bem, ou pelo mal. Alguns, quando começam a ser idolatrados pelas massas, sentem-se no direito de fazer o que bem entendem. E, muitas vezes, passam do ponto. Ao sentir o gosto do poder, uns tantos se transformam em ditadores, uma tentação sempre perigosa, de que temos exemplos bem perto, como hoje na Venezuela; ou mais longe, na Turquia, e tivemos na Argentina, no Brasil, na Bolívia e em outros países da América Latina e África, principalmente.
Outros, deslumbrados, muitas vezes com pouca experiência política e administrativa, sem cultura e uma sólida educação humanista, julgam que no embalo e na empolgação das massas receberam uma carta de alforria para se tornarem donos do país e poderem fazer o que quiserem. Emponderados, podem avançar o sinal. Cercam-se da vassalagem, abrindo a porteira para os áulicos, aproveitadores, companheiros e até parentes se julgarem donos dos cargos e dos cofres públicos, onde tudo é permitido. Seduzem a massa popular, que lhes dá respaldo no voto, nas ruas e nas disputas, ávidas para também receber favores à custa do erário. O populista gosta de ser adorado; de ser o padrinho que tudo pode, enquanto a burocracia que o cerca perde o escrúpulo de usar a máquina do estado a seu favor, como invasores que chegam e saqueiam o butim dos vencidos. Os recursos públicos, agora sob suas canetas, seriam espólios de guerra. Eles se acham no direito de saquear, porque agora é a vez deles. Vários países da África e da América Latina são vítimas desses aventureiros.
Tudo isso vem à tona, principalmente após o espetáculo midiático em que se transformou o depoimento do ex-presidente Lula, num processo da Lava Jato, em Curitiba na última quarta-feira. Não fosse Lula o depoente, seria, como disse o juiz Sergio Moro, um ritual jurídico. Poderia ter sido cumprido sem publicidade e paixões, sem necessidade de mobilizar três mil policiais e sabe-se lá quantas outras mil pessoas, com custo elevadíssimo para o erário público.
Lula subiu ao poder em 2003, embalado por uma corrente do país que queria mudar a prática antiga da política de compadrio, patrimonialismo, das velhas raposas que dominavam há anos currais eleitorais e se perpetuavam no poder, de que são exemplos deploráveis, passados ou atuais, os Magalhães na Bahia, os Coelho em Pernambuco, os Sarney no Maranhão, os Barbalho no Pará, os Garotinho, em Campos, e assim tantos outros. Acordos espúrios, privilégios, uso da máquina pública sem escrúpulos, fraudes eleitorais, anos de práticas políticas viciadas.
No caso de Lula, enfim, o lema não foi “a esperança venceu o medo”? Daí as apostas de muitos brasileiros, que confiaram no ex-sindicalista. Nessa corrente, até o ex-presidente Fernando Henrique, na época, embarcou. Insinuou-se que não teria feito muita força pelo candidato da situação, José Serra, o que facilitou a ascensão de Lula ao poder, numa grande composição política. A onda era Lula (lá). Ele viria para mudar tudo isso, porque não tinha compromisso com esses políticos profissionais.
Passados 14 anos da posse do operário na presidência, um charme na época, nos últimos três anos, desde que a Operação Lava Jato foi desencadeada, temos assistido no país a um espetáculo deprimente. Não demorou, porque ainda no primeiro governo, em 2005, se percebeu que o sonho de um Brasil diferente, construído com ética e respeito à coisa pública já tinha ido para o buraco. Denúncias começaram a pipocar. Pessoas próximas ao governo apareciam enroladas. A seguir, o governo Lula foi engolfado pelo famoso Mensalão, o primeiro grande escândalo do PT e aliados, que derrubou líderes do partido em cascata, entre eles o capitão-mor José Dirceu, segundo dizem, o sucessor de Lula. Lula conseguiu sair ileso do escândalo, dizendo que não sabia de nada, aliás, um de seus jargões preferidos, quando a coisa começa a chegar perto dele. E, apesar do Mensalão, conseguiu se reeleger.
Quem é o responsável
Vamos nos ater a uma declaração de Lula que ele usou no último depoimento ao juiz Sergio Moro. Ao ser questionado se havia indicado diretores para a Petrobras, certamente uma pergunta pertinente, que poderia ter relação com o depoimento, por causa dao aparelhamento que tomou conta da empresa, desde 2003, o ex-presidente desconversou (basta dizer que de sete diretores da Petrobras, na época, quatro foram ou estão presos). Ao responder, Lula disse alto e bom som que não se considerava responsável pelo que aconteceu na Petrobras. Com ar de desdém, parecia dizer “eu, presidente da República, iria cuidar de Petrobras? Dilma que cuidasse, Gabrielli que cuidasse."
O rombo de bilhões de reais deixado na estatal por diretores e gerentes indicados pelos partidos da base aliada, durante os dois últimos governos, na versão de Lula não seria de responsabilidade dos presidentes. Os dois últimos – Lula e Dilma – esta última mandando e desmandando na Petrobras, desde 1º de janeiro de 2003, por ser a ministra das Minas e Energia, mesmo fazendo parte do Conselho de Administração em quase todo o período Lula - nenhum deles admite a responsabilidade pelo que aconteceu. Assim como notícias ruins não têm donos, desvios bilionários, quando pegos, também ficam sem dono. Uma das maiores petroleiras do mundo é literalmente saqueada, e ninguém no andar de cima assume que errou gravemente e deveria saber como e por que aconteceu. Vale repetir, se os gestores do governo, incluindo presidente da República, ministro das Minas e Energia, presidente da empresa, membros do Conselho de Administração, Fiscal, etc. não importa o nível, não ficaram sabendo de desvios bilionários na estatal, ou foram lenientes ou coniventes. Não há outra alternativa.
Segundo reportagem do jornal "O Globo" (14/05/17), embora tenha afirmado ao juiz Sergio Moro que demitiria toda a direção da Petrobrás, se soubesse de corrupção na estatal, Lula recebeu "importantes alertas, ainda no exercício do mandato, de práticas suspeitas na companha, mas não agiu". Houve avisos oficiais. O Congresso alertou que o TCU havia descoberto 24 projetos com indícios graves de irregularidades e que deveriam ficar fora do Orçamento de 2010. Lula vetou a inclusão das obras da Petrobras na lista e liberou os recursos.
Muito menos o ex-presidente Sérgio Gabrielli, que dirigiu a Petrobras nos últimos anos do escândalo (jul/2005 a fev/2012) e, junto com a diretoria e o Conselho de Administração, são também responsáveis pela destruição da empresa, conforme delação de vários diretores e executivos. Nesta semana, o ex-marqueteiro João Santana, em delação, disse que Dilma nomeou Graça Foster (no lugar de Gabrielli) "para acabar com a esculhambação na Petrobras". Porque Lula não queria Graça Foster. Gabrielli, da confiança de Lula, ficou sete anos lá e não soube de nada irregular?
Ele continua exercendo cargo público como se nada tivesse acontecido e pouco aparece no maior escândalo de corrupção da história do Brasil. Fosse um país onde a vergonha representasse valor, realmente, onde a ética fosse o primeiro mandamento do administrador, Gabrielli nem sairia na rua, envergonhado por ter ajudado a destruir um dos maiores patrimônios brasileiros. E, pior, ele não admite em hipótese alguma ter feito algum mal à empresa. Chegou a dizer, num depoimento na Câmara dos Deputados, em março de 2015, que “não tinha controle sobre a gestão da Petrobras”. Pasmem.
Em raras entrevistas, defende que tudo que fez foi para transformar e melhorar a empresa. Perguntem ao Pedro Parente, que acaba de anunciar o primeiro lucro da empresa, após a debacle total da petroleira brasileira, como ele encontrou a Petrobras.
Não é comigo
Tão logo assumem o mandato, os políticos utilizam a máquina do estado para pagar a conta da eleição e agradar a todas as correntes, não importa quanto isso vá custar para o País. No Brasil, fala-se em mais de 20 mil cargos de livre nomeação. Nesse bolo dá para encaixar todas as correntes. Muitas vezes é o indicado do indicado, e o presidente da República nem sabe quem é. O apadrinhado assume um cargo, nem conhece a empresa, porque interessa apenas o quanto irá ganhar em vantagens financeiras, políticas, indiretas; vai para lá, começa a usá-la para outros objetivos pouco republicanos, para desespero dos funcionários de carreira, principalmente os mais humildes, que vêm as falcatruas, os conchavos e muitas vezes ficam de mãos amarradas para denunciar, com medo de represálias.
Isso foi mais ou menos o que aconteceu na Infraero, nos Correios, na Petrobras, apenas para citar três empresas que foram modelos de administração em passado não tão recente. A Infraero, no fim de 2002, na transição do governo para Lula, fazia parte de uma lista publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, como uma das joias da coroa do governo, junto com Petrobras, Banco do Brasil, Caixa, as empresas que todos queriam administrar. Hoje ela não figuraria nessa lista. Esvaziada pelas apressadas privatizações do governo Dilma e espoliada pela diretoria indicada por Lula, em 2003, a princípio do PTB e depois do PT, a empresa tem o futuro posto em xeque.
A resposta irresponsável e desrespeitosa de Lula ao juiz é o modelo de gestão dos governantes que se acham “donos do poder”, donos do país. Lula no depoimento ousou ainda dar um puxão de orelha nos procuradores, insinuando que eles têm a ousadia de investigar um político experiente como ele, sem saber o que é governar. Como se ele Lula, que nunca dirigiu um condomínio antes de ser presidente, fosse o modelo acabado e perfeito de administrador. Ele embarcou até mesmo no blefe da gerente competente, que seria a sua ministra da Casa Civil, para lançá-la candidata a presidente, sem ela ter tido antes o batismo de um cargo eletivo. Deu no que deu. Lula vai ter que buscar outras explicações para que seus netos não passem vergonha na escola, como disse no depoimento. Por mais que se enraiveça, até agora não nos convenceu. Ele não acredita mesmo que houve desvios bilionários em várias áreas do seu governo ou finge que não acredita para manter a versão de que não sabia?
Raposas velhas podem ser boas de estratégia política, mas não significa serem bons gestores. O desastre dos últimos governos está aí para qualquer economista, sociólogo, cientista político analisar. O Brasil regrediu. Perdemos o que foi possível melhorar quando o cenário mundial permitiu Lula e Dilma navegarem num céu de brigadeiro até 2010, 2011. Parecia que eram os gestores inexperientes que iriam fazer o Brasil decolar. Mas não. Os tempos eram outros. No embalo da euforia, conseguiram trazer a Copa do Mundo e as Olimpíadas para o Brasil. Um presente de grego que certamente ajudou a afundar ainda mais a economia do país e quebrar o estado do Rio de Janeiro. Nada mais ilustrativo do que a foto do ex-governador Sérgio Cabral (hoje preso e campeão de desvios) abraçando Lula na comemoração pela conquista da realização das Olimpíadas. Foi só bater o vento da crise, que já varria a Europa e os Estados Unidos, para o Brasil curvar-se à sua fragilidade nos fundamentos básicos da economia (a nova matriz econômica de Mantega) e ficar parecido com a Grécia.
E pior. Tanto no caso da Petrobras, quanto em outras empresas, o governo, tomado por uma casta de burocratas e políticos inexperientes, com raras exceções, mais preocupados em fazer caixa para o partido, usou muitos cargos para se locupletar, pouco preocupado como ficariam as áreas dirigidas por eles, a empresa ou o próprio governo. Basta ver nas delações, a desfaçatez com que se fala em “milhões de dólares” e “milhões de reais”, como se fosse algo banal. Não aparecem os projetos, eles somem na contabilidade das propinas. O país, ao que se depreende das delações, era comandado pela república das empreiteiras que faturou bilhões de dólares aqui e no exterior, sob o olhar concupiscente dos larápios. Agora, quando elas entregam os anéis e os dedos, todos os acusados correm, acolitados por advogados regiamente pagos, em notas apressadas para dizer “abomino essas declarações”, “é uma deslavada mentira”, "é patético".
A resposta do ex-presidente, de que ele sabe governar, de que não seria responsável pelo que aconteceu na Petrobras é o resumo perfeito do que nossos governantes sentem de responsabilidade com o país, na hora em que o navio começa a fazer água. Esse é o sentimento de orfandade que percorre o Brasil hoje, pela falta de estadistas que realmente abracem a missão que o povo lhes dá no voto, com despreendimento pessoal, mas também assumam a responsabilidade pelos erros. Achar que governar é afrouxar o pulso, fazendo cada vez mais concessões aos comparsas e companheiros ou à massa, para que possa ser aplaudido nas ruas, fazer tudo que o povo pede, para ter votos, é muito pouco. Isso não constrói o futuro das próximas gerações. Apenas cria ídolos de barro, que duram alguns anos e perpetuam a pobreza e a dependência. O exemplo está aí. Muitas das "conquistas" do seu governo, que Lula apregoa, escorreram pelas águas sujas da Lava Jato e do rio Doce, na lama da Samarco. O que os brasileiros esperam, certamente, é a reconstrução do país, e não entregá-lo de novo a quem teve uma rara e longa oportunidade, mas não soube preservar o pouco que conquistamos.
Outras informações sobre o tema
Inocência - Editorial do jornal "O Estado de S. Paulo", 13/05/17
O que Lula disse ao batizar a Plataforma 57, em Angra dos Reis, em 07/10/2010