Pode ser apenas uma impressão. Ou uma percepção que acaba formando o que chamamos de reputação. Mas a quantidade de erros médicos em clínicas e hospitais; as queixas de pacientes que não conseguem atendimento no SUS ou pelo próprio plano de saúde para cirurgias; a série de denúncias contra profissionais que se passam por médicos, apenas porque fizeram um curso de curta duração e já saem clinicando; assédios e até estupros cometidos por profissionais da área, tudo isso mostra que a saúde no Brasil, particularmente em relação aos médicos, está bem doente.
No Brasil, em 2022, foram 293 mil incidentes e eventos adversos relacionados à assistência em saúde. E, em 2023, foram 369 mil, segundo a Anvisa. Os dados constam de um trabalho de pesquisa “A comunicação na transição da assistência em organizações hospitalares e os riscos para a segurança do paciente”, de autoria da comunicóloga Ana Maria Dias Negreiros Silva e da relações públicas Vitória Alves Costa, em junho de 2024.
Ao analisar como ocorre a comunicação no ambiente hospitalar, as autoras afirmam que “centradas no humano, as organizações hospitalares são vistas como ambientes
complexos e repletos de incertezas nos quais as relações são estabelecidas a partir da vulnerabilidade do outro e pautada por interações no processo do cuidado (Rocha, 2021). Portanto, espaços onde saber cuidar é condição sine qua non para vida e não saber, pode se tornar um risco (Toro-Ango, 2018)."
Onde está a crise
Essa impressão se torna ainda mais preocupante, quando, em 2 de abril, ouvimos uma entrevista, concedida à Band FM, pelo Dr. Raul Cutait, gastroenterologista, professor, escritor e membro da Academia Nacional de Medicina, sobre a qualidade do ensino da medicina no Brasil e a proliferação de cursos da modalidade por todo o país. Para começar, surpreende o número de instituições de ensino de medicina no país: 390, segundo o último levantamento do INEP. No ano passado, eram 200 cursos nas áreas pública e privada.
O que está acontecendo, como disse um outro médico, surpreso com a quantidade de amigos que têm um filho ou filha estudando medicina? “Parece que toda a família no Brasil quer um médico na família”. O governo diz que pretende apertar a fiscalização nas faculdades, mas elas receberam autorização para abrir as matrículas e continuar funcionando. Apenas a título de comparação, o Reino Unido, com quase 70 milhões de habitantes, um país com as melhores universidades da Europa e com tradição na educação, tem 169 escolas de nível superior, com cursos de medicina.
No Brasil, o absurdo é que muitas faculdades, principalmente a partir da pandemia, passaram a oferecer aulas nos cursos de medicina online. Como assim, médicos estudando online? Sim. Precisou o Ministério da Educação regulamentar que, tanto nas faculdades de ciências da Saúde, quando nas Licenciaturas para formação de professores, as aulas online não podem passar de 30% do total da grade do curso. Os futuros médicos iriam simular tratamentos com bonecos? Em novembro de 2023, o Ministério da Educação publicou portaria que suspende processos de autorização de cursos superiores e credenciamento de instituições com ensino a distância, também conhecidos como EaD.
Mais cursos do que a Índia
Mas não é só isso. Ficamos sabendo, na entrevista do Dr. Raul, que, não bastasse esse crescimento absurdo, existem 292 pedidos para abertura de novos cursos de medicina no MEC. O que poderia elevar para 680 a quantidade desses cursos, no país. Um verdadeiro absurdo. Esse número representa o dobro do que tem a Índia, com sete vezes mais habitantes do que o Brasil. Em 2023, as faculdades formaram 44 mil novos médicos. Brevemente, chegarão a 50 mil; a população já sente isso? Ou continua lamentando a falta de médicos? No interior, nas regiões mais distantes dos centros urbanos, essa avalanche de formandos ainda não disse a que veio.
Segundo o Dr. Raul, há uma premissa de que faltam médicos no Brasil. O problema real é a distribuição desses médicos, concentrados nas grandes cidades. Faltam em certas regiões. O tema é extremamente delicado, segundo o entrevistado. Ao conceder as licenças para abrir faculdades, o MEC não exigiu que a unidade de ensino tivesse um centro de treinamento. Quando chegam ao fim do curso, os futuros médicos não sabem para onde ir, porque fica faltando ainda um bom tempo para poderem ter segurança para exercer a profissão
“O curso de medicina não se limita aos conhecimentos técnicos. Medicina implica aprender comportamento, ética, relações com o paciente; é preciso ter professores capacitados, qualificados para esse tipo de ensino, principalmente no interior do país. Hospitais do SUS são para atendimento, não para ensino. Upas podem atender pacientes, mas não são para ensinar; faltam critérios para funcionamento, avaliação e acreditação dos centros de ensino médico”, disse o entrevistado à Band.
Essa proliferação de faculdades, sem uma rigorosa fiscalização da qualidade do ensino e dos professores, está contribuindo para formar 50 mil médicos por ano. E daí? O que significa isso? Calcula-se que existam mais de um milhão de médicos no Brasil. “Não há mercado para essa quantidade de profissionais nos grandes centros urbanos; o mercado está asfixiado. Mesmo assim, existem milhares de famílias que pagam 10 ou 15 mil reais por mês para manter os filhos num curso, que, na maior parte das vezes, não tem conteúdo diferenciado e nem estrutura para formar médicos”, diz o entrevistado.
O que os avaliadores precisam ficar atentos, nas visitas de fiscalização, é na qualidade do ensino, a começar pelo quadro docente. Não se pode avaliar cursos de medicina pela régua do interior, porque o médico formado no interior do país, amanhã ele vai estar na capital, entregando o curriculum para um hospital de ponta. “Sabemos que no interior do país, apesar do fator positivo de existir uma unidade de ensino superior de medicina, as unidades, em geral, não conseguem ter as mesmas condições de laboratórios e demais instalações com a qualidade encontrada nos centros maiores.”
Hoje, o Inep faz avaliações dos alunos ao término do 2o e 4o semestres, na parte clínica. Mas não faz na conclusão do curso.
Segundo o Dr. Raul, as faculdades de medicina deveriam ter mais um ano de estudos, o 6o ano, sempre com testes. Os cursos deveriam ser continuamente avaliados. As escolas têm que ser avaliadas e acreditadas; faltam critérios para funcionamento, avaliação e acreditação dos centros de ensino médico no Brasil, diz o especialista. "Corre-se o risco de gente despreparada entrar no mercado e, ao fim, quem vai pagar a conta é o paciente." Uma luz no fim do túnel é a notícia de que a Comissão de Educação e Cultura do Senado, com o apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM), aprovou, em dezembro último, o projeto de Lei que cria o Exame Nacional de Proficiência em Medicina.
Médicos vão para o mercado sem residência
“Hoje 40% dos médicos brasileiros não fazem “residência”. Não se cumpre a regra de passar pela residência (prática e aperfeiçoamento do profissional, que pode durar de um a dois anos) no Brasil. Há uma pressão em certas regiões por mais médicos; assim, profissionais que acabam de sair da universidade, aceitam trabalhar no interior do país sem ter, ainda, concluído o período de aperfeiçoamento. Além disso, não há informação na área da saúde no Brasil” O que nos leva a concluir que não se sabe, com clareza, quantos médicos sem residência aceitam trabalhar em vários empregos pela necessidade de entrar no mercado de trabalho. O que tem elevado a possibilidade de erros médicos.
Segundo o entrevistado, diante dessa formação em massa de médicos, no Brasil, em detrimento da qualidade do ensino, “mais adiante vai ficar pior, quando todos estiverem formados. Naturalmente preocupa. Mas o culpado seria o médico, que muitas vezes faz um sacrifício enorme, dele e da família, para concluir o curso? 20% dos estudantes têm dívidas de financiamento, impagáveis. É um passivo que vai levar anos para ser pago. Se uma faculdade não tem qualidade no ensino, foi o MEC que permitiu funcionar; o número é exorbitante, por isso é importante que se faça uma validação sobre tudo que está acontecendo com essas unidades de ensino. Nesse contexto, há também outro problema: o Inep não vai avaliar todo mundo, porque não tem estrutura”.
O âncora da Band FM, Eduardo Oinegue, trouxe alguns dados para complementar essa preocupação: “O Cremesp fez alguns testes com formandos de medicina, em 2017, e constatou que 78% dos recém-formados não conseguiam identificar o diagnóstico de diabetes. Três quartos deles, 88%, não sabiam avaliar uma mamografia e 40% não sabiam identificar um sintoma que apontasse apendicite aguda.”
Ante esse quadro “não seria bom ter um exame como a OAB faz, para o curso de medicina? Em que o médico só pudesse clinicar se passasse numa prova rigorosa? Seria uma solução? Há alguns anos, havia um exame voluntário para estudantes de medicina no estado de S. Paulo. O índice de aprovação foi de 50%. Médicos deveriam passar por esses testes. Nos EUA, o profissional médico não atua se não fizer residência. Aqui no Brasil não é exigido. O estímulo geral para se formar um médico competitivo não é alto; apesar de os alunos desejarem aprender, eles não aprendem, porque o curso, como se constatou pelo número de escolas, é fraco; a bibliografia também é muito cara e os alunos, no interior, com menos recursos públicos, não têm sequer boas bibliotecas.
Há outro problema que percorre os hospitais quando se trata do acompanhamento da pessoa e da doença. Fato muito comum num atendimento humanizado; os pacientes se queixam da falta de atenção. “O médico não é só um técnico ou torcedor, ele precisa ser humano; aprender como os outros fazem. Ética médica aprende-se no dia a dia. Quando o atendimento não é bom, a coisa degringola, inclusive no SUS, em geral, apesar do esforço humano de médicos e enfermeiros, não tem tempo bom...“, segundo o Dr. Curait.
Pressão de todos os lados
Existem também outros problemas que não dizem respeito apenas à formação dos médicos no Brasil. Os sistemas de saúde tanto públicos quanto privados estão ameaçando a relação paciente/médicos. Há uma pressão dos planos de saúde, tanto sobre o paciente, quanto sobre os médicos, clínicas e hospitais. Apesar de o lucro das empresas de planos de saúde ter sido de R$ 11,1 bilhões, ano passado, 271% maior do que em 2023, elas asfixiam médicos e hospitais privados, querendo pagar cada vez menos ou não pagar por determinadas consultas e procedimentos mais caros. “Estamos vivendo um sistema perverso, que não põe a qualidade de atendimento como missão número 1. Discute-se muito o acesso ao plano de saúde, sempre com mensalidades caríssimas, mas a qualidade e flexibilidade do atendimento não.”
De acordo com pesquisa do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, divulgada em dezembro de 2024, o Brasil contava com 502,6 mil médicos, 363,1 mil enfermeiros e 952,6 mil técnicos de saúde, em 2023. Os dados mostram ainda que nesse ano o Brasil tinha 23,7 médicos para cada 10 mil habitantes. Em 2022, eram 22,5 médicos por 10 mil habitante, abaixo, portanto, de países como México (25,6) e Canadá (25) e acima da República Dominicana (22,3) e da Turquia (21,7).
Por último, um conselho de quem já viu tudo na medicina: “Sempre digo que o médico deve aprender a escutar. Na escuta, as pessoas conseguem tirar muito mais para atender o paciente...” Médicos devem se reciclar a cada cinco anos, pelo menos para se atualizar na área de atuação, conclui o Dr. Raul Cutait.
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