A ONU deu um alerta para um crise de dimensões continentais: existem 60 milhões de pessoas no mundo hoje na condição de refugiados, o maior número depois da II Guerra Mundial.
O Comissariado de refugiados informou que o mundo está em guerra e a ONU não tem capacidade para lidar com esse contingente de pessoas. Eles fogem de seus países “deslocados à força por perseguições, conflitos, violência generalizada ou por terem seus direitos humanos violados”. O cenário tem piorado a cada ano, sem perspectivas de que possa melhorar. Em 2014, eram 55 milhões de refugiados. E o número só aumenta.
Essa é a situação vivenciada pelos rohingyas, uma minoria étnica, quase desconhecida, que vive em Mianmar (antiga Birmânia), na Ásia. Cerca de um milhão de rohingyas vivem naquele país, perseguidos por serem muçulmanos, e sem nenhum direito civil.
O New York Times publicou semana passada uma excelente reportagem sobre a história de uma família rohingyas, que precisou se separar para tentar a sorte e fugir de Mianmar. O drama da família relatado pelo NYT é muito parecido ao de outros milhões que vagam sem pátria, sem lar e sem futuro pelo mundo fugindo pelos mais diferentes motivos.
A reportagem de Chris Buckley e Thomas Fuller é uma aula de jornalismo pela capacidade dos repórteres em buscar uma história nos confins da Ásia, que poderia passar despercebida, tantos são os dramas diários dos refugiados.
O relato, com registros que poderiam certamente fazer parte do enredo de uma novela ou de um filme, consegue captar com realismo e ao mesmo tempo profundo conteúdo humano, alguns detalhes do drama da família de Ishar e Muhammad, numa denúncia grave contra o separatismo, a discriminação e a falta de políticas que solucionem o drama de milhões de pessoas que enfrentam os mesmos dilemas.
Vale a pena ler a reportagem completa do NYT e assistir aos vídeos que fazem parte do trabalho dos dois jornalistas. Leia abaixo a primeira parte do relato.
“Perseguição étnica em Mianmar obriga rohingyas a deixarem parentes para trás”
"Carregando um filho no colo, um segundo nas costas e puxando o terceiro pela mão, Hasinah Izhar, 33, atravessou um manguezal lodoso na baía de Bengala para chegar até um barco pesqueiro.
"Ela tentava deixar Mianmar, onde 1 milhão de rohingyas vivem como apátridas, perseguidos por serem muçulmanos. Izhar tinha assinado contrato para uma passagem para a Malásia. Seu marido tinha seguido por esse caminho dois anos antes.
"Quando Izhar chegou à embarcação que a levaria pela primeira parte de uma viagem de uma semana de duração, o que mais a angustiava era o fato de ter deixado para trás seu filho mais velho, Jubair, 13. Se ele fosse na viagem, Izhar teria que pagar o dobro dos US$ 2.000 combinados com os traficantes. E ela só tinha US$ 500 da venda da casinha da família no vilarejo de Thayet Oak.
"Dezenas de milhares de rohingyas deixaram Mianmar desde 2012. O êxodo virou uma crise regional em maio, depois que traficantes abandonaram milhares de pessoas no mar, sem que nenhum país se dispusesse a recebê-las. Em meio a clamores globais, a Malásia e a Indonésia acabaram concordando em receber os migrantes temporariamente.
"Hasinah Izhar se casou em Thayet Oak aos 18 anos, mas logo perdeu o marido devido a uma doença repentina. Ela passou a depender da ajuda de familiares para criar seus dois garotos, Jubair e Junaid. Alguns anos depois, casou-se novamente e teve mais um filho, Sufaid, e uma filha, Parmin.
"Seu marido fugiu para a Malásia quando Izhar estava grávida de Parmin. Enfurecidos por boatos de que uma mulher budista teria sido estuprada por muçulmanos, budistas atacaram vilarejos em todo o Estado de Rakhine, a região costeira onde vive a maioria dos rohingyas de Mianmar.
"Temendo ser detido, como alguns de seus amigos, o marido de Izhar, Dil Muhammad Rahman, se escondeu. Depois disso, desapareceu por completo, só telefonando a Izhar para lhe dizer que estava na Malásia três meses depois de chegar a esse país.
"A violência contra os rohingyas se exacerbou no ano passado. Izhar viu policiais dando cacetadas na cabeça de um homem. As mulheres que viviam sozinhas estavam especialmente vulneráveis. Quando a noite caía, ela deixava sua casa no escuro e obrigava seus filhos a ficarem em silêncio. Em dezembro, quando a notícia de que havia barcos à espera na baía de Bengala se espalhou pelos vilarejos, ela não quis mais esperar.
"Enquanto colocava seus filhos no barco, os sentimentos de alívio, medo e remorso se embaralhavam em sua cabeça. A Malásia é um país muçulmano, e Izhar achava que ela e seus filhos estariam em segurança ali. Embora não tivesse dito a seu marido que eles estavam indo, esperava que ele os acolhesse e pagasse os traficantes. Mais que tudo, porém, ela se sentia atormentada ao pensar em Jubair.
"Quando chegou a hora de partir, Jubair estava com amigos em outro vilarejo. Izhar reuniu seus outros filhos e fugiu. Olhando a costa de Mianmar sumir, ela desejava ter tido a chance de explicar sua decisão a seu filho.
"Depois de algumas horas, os passageiros foram transferidos para uma lancha e, mais tarde, a um navio. Izhar e seus filhos se comprimiram sobre o convés com uma dúzia de outras mulheres e seus filhos. "Passei seis dias e seis noites sem conseguir dormir", contou. "Um filho estava do meu lado direito, um filho do lado esquerdo e a pequena estava sobre meu peito. Não conseguíamos nos mover."
"A pequena família virou carga a ser transportada. De acordo com a Organização Internacional para a Migração, traficantes de pessoas levaram 58 mil migrantes, em sua maioria de Mianmar e Bangladesh, na travessia da baía de Bengala e do mar de Andaman em 2014. Nos três primeiros meses deste ano, levaram outros 25 mil migrantes. A estação das monções dificultou as fugas pelo mar. Porém, especialistas dizem que, em poucos meses, as condições climáticas vão mudar e o êxodo será retomado.
"Depois de uma semana no mar, Izhar e sua família chegaram a um navio muito maior, onde se juntaram a centenas de outros migrantes. Ela e as crianças foram forçadas a descer para um porão fedido e superlotado, três níveis abaixo do convés. Os traficantes exigiram que os passageiros lhes dessem os números de telefone de seus parentes que deveriam pagar pela viagem.
"Izhar tirou o número de seu marido de sua trouxa maltrapilha. Um dos tripulantes disse ao seu marido que a mulher dele estava na Tailândia. Ele nem sabia que ela tinha deixado Mianmar. Izhar falou com seu marido e lhe contou que os traficantes estavam exigindo US$ 2.100. "Não tenho dinheiro para pagar por vocês!" gritou ele, irado, e quis saber por que ela tinha deixado Jubair para trás.
"Não é incomum que as mulheres rohingyas viajem de encontro a seus maridos sem lhes informar.
Segundo Chris Lewa, defensor dos direitos dos rohingyas que vive em Bankoc, se uma mulher contar a seu marido que pretende fazer a viagem, "na maioria dos casos o marido não a deixará partir". Os homens temem ser onerados com mais despesas se suas famílias forem viver com eles.
"Izhar e seus filhos passaram semanas presos no porão enquanto seu destino era negociado. Os contrabandistas intensificavam a pressão. Um deles espancou Izhar com um tubo de plástico, e eles telefonavam constantemente ao marido dela. Houve uma negociação, e os traficantes reduziram o preço para US$ 1.700.
"Três semanas depois de a negociação começar, o dinheiro chegou, vindo em sua maior parte de um tio. Três dias mais tarde, Izhar e seus três filhos embarcaram numa lancha, que pouco depois ancorou ao largo de uma praia no norte da Malásia. A viagem de Izhar terminou como tinha começado, com ela andando por um lodaçal na costa. "Eu estava feliz", contou. "Pensei no sofrimento todo de nossa viagem e pensei que ela estava quase no fim."
O drama de Jubair, o menino que ficou para trás
"Em Thayet Oak, seu vilarejo em Mianmar, todo mundo parece conhecer Jubair, o menino deixado para trás. Seis meses depois de sua mãe ir embora, ele continuava sem entender por que ela não o levou junto. "Acho que talvez ela não tivesse dinheiro, mas não sei exatamente", disse.
"Thayet Oak" significa "pomar de mangueiras" na língua birmanesa, mas a realidade não é tão idílica. O governo birmanês não permite que os rohingyas tenham cidadania, e eles são obrigados a pedir autorização para sair do povoado, mesmo que seja apenas para recolher lenha. O vilarejo não tem saneamento, eletricidade ou serviço de correios.
"No início de maio, um pescador de caranguejos, Salim Ullah, notou Jubair sentado numa barraca que funciona como o mercadinho local. "Quando perguntei às pessoas, falaram que ele não tinha pai e que sua mãe havia partido. Perguntei onde ele morava. Disseram que ele ficava na rua." Ullah contou que levou Jubair para sua casa como empregado e o pôs para trabalhar buscando água, recebendo o equivalente a US$ 9 por mês.
"Jubair conversou com sua mãe seis ou sete vezes desde que ela foi embora. "Ela falou 'meu filho, não chore, não fique triste, fique bem'", contou.
"Dois dias depois de desembarcar na Malásia, Izhar foi levada à ilha de Penang, onde seu marido estava trabalhando numa construção. Rahmin sorriu ao segurar Parmin no colo pela primeira vez.
"Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), pelo menos 75 mil rohingyas vivem na Malásia como refugiados cadastrados ou migrantes sem registro. Entidades de rohingyas dizem que o número de migrantes em situação irregular é muito maior.
"Ali, a vida é mais segura e há mais empregos. Porém, nem os refugiados nem os migrantes irregulares têm direito ao trabalho legal. Eles também não recebem assistência do governo. A maioria dos homens luta para conseguir trabalhos informais como diaristas. Seus filhos não têm direito de estudar nas escolas públicas.
"Quase seis meses depois de sua viagem, Hasinah Izhar e sua família dividem uma casa com 13 outras pessoas. Rahman consegue ganhar entre US$ 8 e US$ 16 por dia, quando encontra trabalho. Está devendo três meses de aluguel, e a família corre o risco de ser despejada. Além disso, há a pressão para devolver mais de mil dólares que ele tomou emprestado para pagar aos traficantes.
"Somos ilegais aqui também", disse Izhar. "Não estamos em casa em nenhum lugar. No navio, pensamos que na Malásia teríamos uma vida confortável e pacífica. Agora, depois de chegar na Malásia, enfrentamos mais sofrimento."
Fotos: Tomas Munita (NYT)
A Migrant Mother’s Anguished Choice
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