Episódios recentes com políticos e outras autoridades evidenciam a facilidade com que reputações pessoais se esboroam ou se desgastam por atos inconsequentes, descuido, arrogância, ambição ou picaretagem pura.
Nesta semana, o jornalista e professor Gaudêncio Torquato publicou no jornal O Estado de S.Paulo o artigo Guardar o coração na cabeça sobre a dificuldade de atores políticos conciliarem o munus público com as armadilhas da vida privada.
Ele diz que esse fato “tem sido comum no ciclo de fosforescência midiática em que vivemos”.
Um episódio aparentemente corriqueiro na vida do cidadão comum pode se transformar em crise na vida de um político, especialmente se ele tem pretensões futuras de galgar novos postos. É o caso do flagrante dado pela polícia carioca no senador Aécio Neves. Pego com a carteira de habilitação vencida, teve o carro apreendido e negou-se a fazer o teste do bafômetro.
O argumento de que não precisaria mais fazer o teste, porque não iria mais dirigir, tendo contratado um táxi para continuar o trajeto, até poderia passar em branco se fosse num motorista qualquer. Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, prega uma norma do Direito. Ele se valeu dessa prerrogativa.
Hoje, com o poder das mídias sociais e da internet, a opinião pública não deixa um fato desses passar despercebido. Se o cidadão comum deve renovar a carteira de habilitação, por que um político, ex-governador, agora no Senado, não deveria? Certamente foi um descuido de sua assessoria, que, afinal, deve cuidar da imagem do assessorado. No mínimo, Aécio Neves deveria evitar dirigir, enquanto não tivesse a habilitação renovada. Para um senador, certamente não faltarão motoristas de plantão prontamente dispostos a levá-lo onde quiser, mesmo longe do estado natal.
Na mesma semana, o senador (sempre eles) Roberto Requião arrancou o gravador das mãos do repórter da rádio Bandeirantes, Victor Boyadjian, durante entrevista realizada no Congresso, após ser questionado sobre aposentadoria que o político recebe como ex-governador. Não satisfeito, reteve o gravador e apagou a gravação. Depois ainda tribudiou sobre o fato, no twitter. A arrogância e violência de Requião foi ato de desrespeito à liberdade de imprensa e à sociedade brasileira que tem o direito de, por meio da imprensa, conhecer a opinião dos políticos, ainda que o tema não lhes agrade. O destempero do senador, além de merecer o repúdio da sociedade, até mesmo com repercussão internacional, vai lhe custar algumas ações na Justiça.
Ainda tinha mais. A diretora-geral da Polícia Rodoviária Federal, Maria Alice Nascimento Souza, há um mês no cargo, foi denunciada no programa Fantástico, da Rede Globo. Ela dirige com a carteira de motorista cancelada, por ter acumulado 27 pontos em penalidades por irregularidades no trânsito. A diretora havia sido notificada pelo órgão de trânsito para entregar a carteira, mas não o fez. Mesmo após ter a carteira suspensa, ela cometeu mais três infrações. Após a denúncia, ela entregou a carteira à polícia do Paraná. Em sua defesa, alegou que o carro é usado por outras pessoas da família.
O coração na cabeça
É ainda Gaudêncio Torquato que diz: “Em nosso país, a permissividade, particularmente no que concerne à apropriação do patrimônio da res publica, era enorme nos meados do século passado. Hoje o escopo da cidadania percorre sentimentos de classes e setores. Respeito às leis, igualdade, consciência de direitos começam a ser parâmetros para avaliar o desempenho na vida pública”.
E prossegue: “O homem público tem o dever de compatibilizar a vida privada e a pública, na medida em que ambas são forjadas por valores e princípios que expressam seu caráter. (...) mesmo em locais privados a conduta do homem público há de ser condizente com os valores republicanos e com preceitos éticos e morais da sociedade”.
Em tempos de redes sociais e de celulares com câmeras, a sociedade vigilante não dá trégua. Embora muito políticos ainda “se lixem” para a opinião pública, como disse aquele deputado gaúcho, uma coisa é certa: o julgamento público pode demorar, mas um dia chega. Gaudêncio lembra o conselho de John Kennedy, o mais querido e midiático presidente dos EUA (1960/1963): “o estadista deve trazer o coração na cabeça”.
Ou seja, a pessoa pública não pode achar que a vida privada lhe dá o direito de transgredir a lei ou se valer de benesses pagas pelo contribuinte e, por ser autoridade, não querer dar satisfação, como fez Requião. Mesmo na iniciativa privada, os acionistas não contemporizam quando o executivo escorrega ou se queixa. Como fez o CEO da British Petroleum, em plena crise do vazamento de petróleo no Golfo do México, ano passado, quando disse: “quero minha vida de volta”. Ele teve: foi demitido.
Querer uma vida privada longe dos holofotes, sem os olhares do big brother da sociedade tem um preço: renunciar à vida pública. É uma opção difícil, que exige um alto grau de despreendimento, sobre a qual certamente nossos políticos e autoridades, em sua maioria, não querem nem ouvir falar.
Foto: John Kennedy (1917-1963) - Presidente dos EUA de 1960/1963.