2022 poderia se chamar o ano da virada. À medida que a pandemia da Covid diminuía, começaram a aparecer as crises que tradicionalmente marcavam o mundo corporativo, antes de 2020. A pandemia pode ter subnotificado muitas crises que ficaram decantando, para aparecer depois.
Crises classificadas como ‘catástrofes’ representaram 20,81% do total das 2 milhões 151 mil crises selecionadas e analisadas pelo ICM-Institute for Crises Management*, dos EUA, constantes no ICM Annual Crisis Report 2022. O Instituto classifica as crises divulgadas pela mídia por categorias, fazendo um levantamento percentual da incidência dessas crises em cada categoria. No caso específico de catástrofes, o ICM considerou não apenas as tragédias naturais, que se intensificaram no ano passado, principalmente em decorrência das mudanças climáticas, mas também os eventos relacionados com a Covid-19.
“Houve uma mudança radical no perfil das crises nesse período pós-pandemia. De acordo com relatório da Statista, 31 mil pessoas perderam a vida em desastres naturais em todo o mundo (excluindo COVID), em 2022. As perdas econômicas totalizaram mais de US$ 300 bilhões, prejuízo vultoso, se comparado com anos anteriores. Foram relatados um total de 387 eventos de desastres durante o ano.”
Um dos piores desastres naturais aconteceu em Petrópolis-RJ, em fevereiro e março de 2022, quanto morreram 241 pessoas em decorrência de inundações e deslizamentos de encostas. Eventos isolados, como esse, aconteceram em vários países, sempre com número elevado de vítimas. Um dos países mais afetados foi o Paquistão. Segundo a Agência da ONU para Refugiados, Acnur, as chuvas torrenciais e inundações que afetaram mais de 33 milhões de pessoas, em setembro de 2022, causaram a morte de pelo menos 1.200 a 1.500 pessoas, além da destruição e dos danos. De acordo com a plataforma Statista, os países com maior risco de desastres naturais, no ano passado, foram Filipinas, Índia, Indonésia, Colômbia e México. Na Indonésia, foram 341 mortes em decorrência de um terremoto. Incêndios na Coreia do Sul, Argentina, Estados Unidos (principalmente na California), Turquia, França e Portugal não só causaram destruição de florestas, infraestrutura e milhares de residências, como provocaram mortes, feridos e acidentes.
Crises a partir de denúncias de empregados
Apesar de ter aumentado a incidência de eventos catastróficos, esta não foi categoria com a maior proporção de eventos de crises, no ano passado. Foram as ‘denúncias’ (whistleblowers) feitas por gestores ou colegas que estiveram no topo dos eventos de crise em 2022. “Em um resultado surpreendente e substituindo a “má gestão”, - categoria que sempre liderava o percentual de crises, antes da pandemia - as denúncias quebraram recordes em 2022, com 28,96% de todas as crises rastreadas. Aumento de três pontos em relação a 2021 e um crescimento impressionante de 20 pontos em relação aos relatórios pré-pandêmicos.
“A Securities and Exchange Commission (SEC) dos EUA relatou 103 recompensas em 70 ações cobertas, totalizando U$ 229 milhões para o ano fiscal de 2022, que terminou em 30 de setembro. Em julho, um único denunciante recebeu U$ 17 milhões. A agência também relatou 12.300 relatos, alegando irregularidades, um número recorde que mais do que dobrou em relação aos números pré-pandêmicos”, conforme consta no Relatório Anual do ICM. Teria o período pandêmico contribuído para esse nível de comprometimento da confiança?
“Em outros casos de denunciantes, a Administração Federal de Aviação dos EUA (FAA) e a Southwest Airlines estavam sob escrutínio depois que vários denunciantes alegaram má administração e falta de supervisão do escritório da FAA que monitora a Southwest. Pode-se até discordar e questionar essa forma de atacar a crise, mas não há dúvidas de que boa parte dos problemas de gestão chegam à diretoria por meio de denúncias de empregados ou outras fontes.
Outras crises
Além de catástrofes e das crises decorrentes de denúncias, o Relatório do ICM destaca o ativismo do consumidor representando 8,76% das crises de 2022.
Segundo o Relatório do ICM, “As histórias sobre consumismo continuaram a aumentar (em 2022) à medida que as pessoas em todo o mundo se tornaram cada vez mais expressivas ou corajosas em seu apoio ou oposição a organizações baseadas em ESG - ou esforços ambientais, sociais ou de governança. Outra sigla popular, CSR (corporate social responsability) ou RSE-responsabilidade social corporativa, é o princípio pelo qual uma organização participa de iniciativas, programas, filantropia e práticas de negócios que promovem interação social positiva em uma variedade de questões, como trabalho justo, doações de caridade, gestão ambiental, diversidade, equidade e inclusão.”
“Pesquisadores da Deloitte descobriram que os consumidores estão mais sintonizados do que nunca com o que uma marca representa e votam com os pés e as carteiras. Os consumidores querem fazer negócios com empresas que compartilham seus valores. Quase metade dos consumidores estudados relata ser mais leal a marcas que se comprometem a lidar com as desigualdades sociais”, diz o Relatório. Ou seja, a reputação é construída não só pelo que a empresa impede que aconteça de negativo, mas também pelas práticas que executa, no sentido de melhorar a vida dos stakeholders e da sociedade.
Apenas como exemplo, “Usuários de mídia social pediram um boicote à Home Depot (uma grande cadeia americana de artigos de escritório) depois que um grupo de defesa conservador fundado pelo co-fundador Bernie Marcus se envolveu em um litígio que contestava o programa de alívio de dívidas estudantis do presidente Biden.” Uma coisa está ligada com outra. Até porque no mundo conectado em que vivemos, não há sequer uma ação tomada pela empresa que não possa cair no escrutínio público.
Ações judiciais
A quarta categoria de crise que mais se destacou no índice publicado pelo ICM foi a de “ações judiciais coletivas”, com 7,70% das crises apuradas. “De acordo com um relatório da ISS Securities Class Action Services, os acordos de ações coletivas de investidores em 2022 totalizaram mais de US$ 7,4 bilhões, um aumento de mais de 75% em relação ao ano anterior.”
Crises de má gestão reduziram
A categoria seguinte foi a de “má gestão”, com 7,18% das crises do ano. Essa era uma categoria que aparecia historicamente liderando o levantamento do ICM, até porque esses erros, que muitas vezes saem da mesa da diretoria ou dos comitês decisórios, são os grandes responsáveis pela maioria das crises que as empresas enfrentam.
“Ainda consideravelmente abaixo da marca alta de 2017, as histórias de má administração aumentaram ano a ano chegando a 7,18% das histórias rastreadas em 2022. De acordo com registros do Departamento de Justiça dos EUA, os processos de colarinho branco atingiram o nível mais baixo desde que o rastreamento começou na década de 1980.
“Em uma das maiores sagas de má administração do ano, a empresa de criptoativos FTX, com sede nas Bahamas, experimentou um impressionante colapso do castelo de cartas que levou o fundador-CEO Sam Bankman-Fried à prisão e um pedido de falência motivado pelo que foi caracterizado como “um falha completa do controle corporativo”. O colapso surpreendeu os mercados de criptomoedas que já estavam se recuperando de uma queda de US$ 2 trilhões em maio.”
“Um ex-executivo da Contech Engineered Solutions foi condenado a 18 meses de prisão em um caso de fraude em licitações. A empresa já havia se declarado culpada de acusações de fraude em licitações e conspiração.” Nesse rol, houve empresas punidas sobre falta de transparência ao mercado; empresa chinesa que roubou informações de concorrente; e executivo preso por fraude em licitação. Há cinco anos, a má gestão era apontada como a área onde ocorriam mais crises corporativas.
Para saber o índice de ocorrência de crises em outras categorias, como Assédio sexual (6,35%), Discriminação (3,44%) e Cybercrime (3,21%), durante 2022, basta verificar o quadro publicado abaixo.
As crises chegam de surpresa?
O Relatório também avalia do total de crises corporativas as crises repentinas (ou de surpresa) e as crises latentes, aquelas que dão sinais. Seriam as crises previstas, acontecimentos com probabilidade de serem crises. Passada a surpresa do mundo todo com a pandemia de Covid, as crises latentes recuperaram seu status como a maioria das histórias de crises rastreadas pelo ICM. Em 2022, 56,74% das crises ocorridas no mundo corporativo foram latentes e 43,26% poderiam ser classificadas como crises repentinas, ou que chegaram de surpresa, embora essa proporção não seja um consenso dos especialistas em gestão de crises.
Antes de 2020, o ICM normalmente considerava de 65% a 70% dos eventos críticos como crises latentes. De outro lado, um dos maiores especialistas em Crisis Management dos Estados Unidos, Jonathan Bernstein, assegura que, em 30 anos de consultoria de gestão de crises, em inúmeras organizações, ele pôde concluir que aproximadamente 95% das crises encontradas não chegaram de surpresa. Então, uma pequena parte das crises, apenas, se enquadrariam, segundo ele, nas chamadas “sudden crisis”. As que não deram sinais. E, por isso, mais deletérias, pelo efeito surpresa, poderiam atingir as empresas com um potencial negativo muito forte.
Conclusão
Segundo o Relatório do ICM, “entre as descobertas mais interessantes de 2022 estavam os aumentos contínuos nas histórias de denunciantes e a capacidade de um indivíduo dominar as manchetes em várias categorias. As tendências descendentes em histórias de má administração, crimes de colarinho branco, assédio e discriminação não significam necessariamente que os eventos diminuíram, mas sim que outros tipos de eventos estão dominando as manchetes.”
2022 foi o ano do rescaldo da pandemia, ou seja, o mundo corporativo ainda trabalhou com medo, com sistema híbrido, sem forçar a mão de obra trabalhar online, porque a pior coisa que poderia acontecer para o mercado seria a volta da pandemia nos níveis arrasadores de 2020 e 2021. As organizações respiram aliviadas. Mas agora, exatamente neste momento, os mecanismos de prevenção devem estar cada vez mais apurados. É quando a organização baixa a guarda que corre o risco de acontecer uma crise grave. Urge melhorar os mecanismos de controle, de compliance e de risco. Só assim o relatório de 2023 poderá dar um sinal de que as empresas estão aprendendo a identiicar as ameaças e, principalmente, evitar as crises.
*O ICM Annual Crisis Report é uma publicação anual do Institute for Crisis Management. Fundado em 1990, o Institute for Crisis Management® (ICM) foi uma das primeiras empresas de consultoria em gerenciamento de crises na América do Norte. O Relatório Anual de Crise do ICM, no 33º ano de publicação, é uma compilação de notícias, análises e tendências de crises, avaliação de setores de alto risco e lições valiosas sobre como as crises acontecem e como se preparar caso aconteçam.
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