“No meu modo de ver, digo que o custo de uma vida humana não tem preço, ponto final, disse Andrew Cuomo, governador do Estado de Nova York, em 2020, quando pressionado pelas lideranças econômicas do estado, ou por empresários, de um lado, e pelos infectologistas e pessoal da Saúde, de outro.
“Enquanto tentavam desacelerar a disseminação da Covid-19 em 2020, os políticos tomaram medidas sem precedentes em termos de escala e escopo.” Imagens que vinham da Itália, com UTIs lotadas, comboio de caminhões carregando caixões das vítimas fatais da Covid e governos provinciais sem saber o que fazer, mostravam que não havia um consenso para essa crise.
Bergamo, na Lombardia, norte da Itália, uma das cidades mais castigadas pela Covid, com dezenas de mortos, fazia lockdown, proibindo até mesmo a circulação de pessoas na ruas, enquanto o prefeito de Milão, nem tão longe, promovia uma campanha emocional: “Milão não pode parar”, “Itália não pode parar”. Médicos, infectologistas e políticos italianos, perdidos, não sabiam o que fazer. E, com UTIs lotadas e cada vez mais mortes, o prefeito de Milão reconheceu, teve que fazer a cidade parar completamente, pedindo desculpas pela campanha.
No caso de Nova York, desde o início, houve a defesa explícita e incontestável do fechamento total das atividades econômicas, numa cidade que, no auge da pandemia, em abril de 2020, tinha chegado a 1.036 mortes por dia. (O total de mortos por Covid no estado, até 5 de julho de 2021, foi de 53.122. E, nesse mesmo dia, o número de óbitos caiu para quatro).
A revista britânica The Economist desta semana traz um instigante artigo, abordando essa polêmica, até agora não pacificada, entre os que defendem o lockdown completo, como o meio mais eficaz para conter a contaminação pela Covid-19 e evitar a pressão sobre os sistemas de saúde e os que o condenam, por ser um golpe na economia, com reflexos no crescimento do país, na medida em que todas as atividades econômicas ficam paralisadas. Um paliativo, adotado pela maioria dos países onde a Covid foi mais aguda, como Estados Unidos, Brasil, México, Reino Unido, Itália, França e outros foi criar um auxílio financeiro emergencial, como forma de amenizar o impacto da interrupção das atividades econômicas. Esse bônus, pago principalmente à população de baixa renda, ajudou a movimentar a economia e amenizar a perda de renda, principalmente para o trabalhador informal. Comércio e indústria tiveram linhas especiais de financiamento.
Mas vamos ao artigo da revista, que não esgota a polêmica, ao contrário, expõe a dificuldade de cientistas da saúde, economistas e políticos chegarem a um consenso sobre o tema. Os governos se veem diante da pressão das associações de classe e das autoridades da saúde. Quem está no caminho certo?
“Antes da crise, a noção de interromper as atividades cotidianas das pessoas parecia tão econômica e politicamente onerosa que resultava implausível. Mas, assim que a China e a Itália impuseram lockdowns, as medidas se tornaram inevitáveis nos outros lugares.
“Para simplificar um pouco demais, os dois lados do debate sobre os lockdowns têm posições diametralmente opostas e igualmente inconvincentes. Ambos rejeitam a ideia de um trade-off entre vidas e meios de vida.
“Aqueles que apoiam os lockdowns dizem que estes tiveram poucos efeitos perniciosos à economia, porque as pessoas já estavam com tanto medo que evitavam os espaços públicos sem precisar ser alertadas. Eles, portanto, afirmam que a política salvou vidas, mas não a culpam por ter destruído a economia. Aqueles que odeiam os lockdowns alegam o contrário: que destruíram os meios de subsistência, mas pouco fizeram para impedir a propagação do vírus.
“A realidade está em algum lugar entre esses dois extremos. Os lockdowns prejudicam a economia e salvam vidas e os governos tiveram de encontrar um equilíbrio entre os dois. Agora que os políticos estão calculando se e quando suspender as restrições existentes ou impor novas, as respostas a essas perguntas ainda são cruciais para as políticas de hoje. Juntamente com as vacinas, os lockdowns continuam sendo uma forma importante de lidar com novas variantes e surtos locais. No final de junho, Sydney, na Austrália, ficou confinada por duas semanas; Indonésia, África do Sul e partes da Rússia seguiram o exemplo.
No Brasil, há dois exemplos recentes de cidades que só conseguiram conter o avanço da Covid com lockdown quase total, porque aqui são raríssimos os casos de um lockdown real, fechando todo tipo de atividade e proibindo circulação, como aconteceu em vários países. Araraquara, em S.Paulo, no início do ano; e Dourados, no Mato Grosso do Sul, recentemente. Só assim conseguiram reduzir o número de internações e mortes por Covid. Deixaram evidente que o lockdown funciona.
Por que alguns países se deram bem
Por que alguns países fizeram o dever de casa e tiveram poucos casos de Covid? A população desses países tinha alguma imunidade ao vírus? Vacinas? Não, naquele momento. São países adiantados, com uma população com bom nível cultural, já viveram outras epidemias e estão acostumados a aderir a campanhas de mobilização. Por exemplo, “o que estava disponível para ilhas como Austrália, Islândia e Nova Zelândia não era possível para a maioria dos países, que têm fronteiras terrestres (quando o vírus começava a se espalhar, a erradicação era quase impossível)." Enquanto o vírus já circulava na China, nem Brasil e nem a Europa fecharam as fronteiras.
“O Japão e a Coreia do Sul tiveram um número muito baixo de mortes por covid-19. Mas se o fizeram ou não, isso é questionável: nenhum dos países impôs lockdowns severos. Talvez sua experiência com a epidemia de SARS, no início dos anos 2000, os tenha ajudado a escapar relativamente ilesos. Finlândia, Dinamarca, Noruega, Israel, Alemanha foram países onde o lockdown, combinado, já neste ano, com uma aceleração da vacinação, permitiu conter a disseminação do vírus e registrar número de mortos relativamente pequeno.
“Quando você olha para casos mais comparáveis – países que estão próximos, digamos, ou regiões diferentes de um mesmo país – a noção de que não há trade-off entre vidas e meios de vida se faz menos crível. Uma pesquisa do banco Goldman Sachs mostra uma relação notavelmente consistente entre a severidade dos lockdowns e o impacto na produção: a passagem entre o pico de lockdown na França (estrito) e o pico na Itália (extremamente estrito) está associada a um declínio de cerca de 3% no PIB."
Não há dúvidas, portanto, de que afeta a economia.
“Os países da zona do euro com mais registro de mortes, conforme medido pela The Economist, estão observando um impacto menor na produção: na Finlândia, que teve um dos menores índices de mortes dentro do clube, o PIB por habitante cairá 1%, de acordo com o FMI; mas na Lituânia, membro com pior desempenho em termos de excesso de mortes, o PIB por habitante crescerá 2%.
“E se todos esses custos econômicos forem resultado não das restrições governamentais, mas das escolhas pessoais? Este é o argumento daqueles que rejeitam a ideia de trade-off. Se eles estiverem corretos, a noção de que a simples suspensão das restrições possa impulsionar a economia se torna uma fantasia. As pessoas sairão de casa apenas quando os casos estiverem baixos; se as infecções começarem a aumentar, as pessoas voltarão a se fechar.
“Vários artigos reforçaram esse argumento. O mais influente, dos economistas Austan Goolsbee e Chad Syverson, analisa a mobilidade ao longo dos limites administrativos dos Estados Unidos, em um período em que um governador impôs restrições, mas o outro não. O artigo revela que as pessoas em ambos os lados do limite estadual se comportaram de maneira semelhante, sugerindo que é quase inteiramente a escolha pessoal, ao invés das ordens do governo, o que explica a decisão de limitar o contato social. A pesquisa do FMI chega a conclusões semelhantes.
“No entanto, há razões para se pensar que essas descobertas exageram o poder do comportamento voluntário. A Suécia, que há muito resistia à imposição de lockdowns, acabou cedendo quando os casos explodiram – uma admissão de que os lockdowns de fato fazem a diferença. Pesquisas mais recentes de Laurence Boone, da OCDE, e Colombe Ladreit, da Bocconi University, usam medidas ligeiramente diferentes do FMI e revelam que as ordens do governo ajudam muito a explicar a mudança comportamental.
“Juntando tudo isso, parece claro que as ações dos governos realmente fizeram com que as pessoas ficassem em casa, com consequências onerosas para a economia. Mas os benefícios compensaram os custos? A pesquisa econômica sobre essa questão tenta resolver três incertezas: sobre as estimativas dos custos dos lockdowns; sobre seus benefícios; e, ao pesar os custos e benefícios, sobre como colocar um preço na vida – fazer o que Cuomo se recusou a fazer."
Mortes por milhão de habitantes
Convém analisar e comparar o índice de mortes por Covid, por milhão/habitante de alguns países citados.
Peru (o mais alto índice, 5.943), Brasil (2.484); Itália (2.116), Reino Unido (1.914), EUA (1.836), França (1.627), Suécia (1.422), Alemanha (1.095), Israel (710), Dinamarca (435), Finlândia (176) Noruega (148), Austrália (35).
Fotos: Vaticano, praça vazia; Paris, Museu do Louvre; São Paulo, centro, no auge da pandemia.
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