A CPI instalada no Senado há pouco mais de um mês foi criada para apurar como o governo federal conduziu a gestão da pandemia. Na medida em que os trabalhos dessa Comissão avançam, revelando aos poucos como o ministério da Saúde errou ao desdenhar de ofertas de vacinas no ano passado, começam a aparecer testemunhas que, provavelmente, chegam com o intuito mais de confundir do que esclarecer. Uma delas teve seu protagonismo nesta semana.
O tumultuado depoimento do autoproclamado representante da empresa Davati Medical Suply para negociação de vacinas, o cabo da Polícia Militar de MG Luiz Paulo Dominguetti, dia 1º de julho, pode ser considerado uma armadilha na qual a CPI da Covid caiu, ou pelo menos um despiste para “tirar o foco da comissão”? Alguns senadores, percebendo que a despreparada testemunha contava uma história cheia de pontas que não se alinhavam, alertaram para essa possibilidade. Entre eles, Jean-Paul Prates (PT-RN) e Simone Tebet (MDB-MS). “Estamos no fio da navalha. Muita gente vai aparecer (para prestar depoimento) e temos que ter muito cuidado com os que podem vir para confundir”, disse um senador.
Nesta quinta-feira (1º), a TV Globo publicou reportagem, do correspondente nos EUA, sobre a Davati, empresa que apareceu no nebuloso enredo da suposta tentativa de propina, por meio de intermediários, oferecendo 400 milhões de vacinas da AstraZeneza. A Davati original não é uma empresa de equipamentos médicos e, no prédio-sede da suposta fornecedora, no Texas, não há ninguém para dar informação, sequer pelo telefone. Veja a reportagem.
História mirabolante
Desde a repentina entrevista concedida pelo policial ao jornal “Folha de São Paulo” tudo aparentava muito estranho. A começar pelo “timing” e a fonte da entrevista. Por que só agora, no momento em que o governo foi colocado no ‘corner’, com a história da Covaxin, aparece um ‘homem bomba’, sem qualquer representatividade empresarial ou oficial e se dispõe, primeiro a falar a um jornal, e depois ir à CPI, como se ele tivesse realmente informação relevante que desnudaria um esquema de corrupção na aquisição de vacinas, no ministério da Saúde. A levar a sério o que disse na entrevista e na CPI, esse intermediário foi picado pelo vírus do bem, recusando aceitar um pedido de propina de 1 dólar por dose, que teria sido pedida pelo diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, durante um jantar num restaurante de Brasília. Não precisaria ser um repórter ou um senador experiente para desconfiar que tudo nessa história é muito estranho. A Folha chegou a Dominguetti por meio de Cristiano Alberto Carvalho, que se apresenta como procurador da empresa no Brasil e também aparece nas negociações com o ministério. Segundo Cristiano, Dominguetti representa a empresa desde janeiro.
Como se presumia, tudo pode ter sido uma farsa. O policial militar Luiz Dominguetti, que intermediou a venda de vacina em nome da Davati, foi acusado de tentar desviar o foco das investigações durante seu depoimento na sessão da CPI da Covid. Dominguetti, que se diz representante da empresa Davati Medical Supply, dos EUA, relatou ao jornal Folha de S.Paulo ter recebido pedido de propina do diretor do Ministério da Saúde, para viabilizar a compra de vacinas da AstraZeneca pelo governo federal. A reportagem foi publicada na noite de terça-feira, 29 de junho..
O que se viu no depoimento à CPI foi um policial que tem uma carreira com denúncias de malfeitos. De repente, aparece na cena “do crime”, num jantar, como negociador de vacinas fabricadas por um dos maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, com quantidade de imunizantes (400 milhões) que provavelmente a AstraZeneca não teria disponíveis no momento, para vender, e traz uma história cheia de nós, que a CPI precisa desatar. Mas que na prática não se sustenta.
Resumo: de repente, aparece o ‘homem bomba’, aparentando ser mais um aventureiro, que teve seus 120 minutos de glória, que talvez não acabem bem para sua carreira de policial (de onde nunca deveria ter saído). Desde o início, a história é mirabolante. Um diretor do ministério da Saúde envolvido, acompanhado de um oficial do Exército, num jantar. Conta o funcionário, em entrevista posterior, ter sido surpreendido nesse jantar, pela chegada do Sr. Dominguetti. Imagine você num restaurante à noite, com outras pessoas. E de repente chega alguém na mesa, que você não conhece, senta e vai oferecer vacinas para você. Como se você não soubesse. O que faria? Por que esse funcionário (que foi demitido na noite em que o fato veio à tona) não revelou esse “assédio” ou essa oferta aos seus superiores? Se verdadeira, pelo menos parte dessa história, é admissível que funcionários do ministério da Saúde conversem com pessoas desconhecidas do mercado, suspeitas, sem referências no curriculum, para ter um mínimo de representatividade e lastro para negociar compra de vacinas no montante de R$ 1,5 bilhão?
Perguntas que a denúncia suscitou
No mesmo dia da entrevista, mais perguntas aparecem no contexto desse imbróglio, que envolve o ministério da Saúde, ex-ministro, secretário-executivo e outros funcionários graduados do ministério. Não custa dar uma ajuda à CPI e ao próprio ministério, com algumas perguntas óbvias:
1. Por que Luiz Paulo Dominguetti só resolveu falar agora e não logo em seguida da tentativa de propina?
2. Antes do açodado depoimento, a CPI não investigou quem era esse suposto denunciante?
3. A estratégia de levá-lo à CPI foi errada, até porque a história carece ainda de fatos concretos e verossímeis?
4. A AstraZeneca tinha 400 milhões de doses disponíveis pra vender na época da proposta?
5. Se em 25 de fevereiro, o Brasil já negociava diretamente com a AstraZeneca, não seria estranho aparecer uma empresa intermediária, tentando emplacar uma compra desse montante? O que diz o ministério da Saúde sobre isso?
6. O preposto do ministério da Saúde desconhecia que a AstraZeneca não usava intermediário? Se não sabia, não seria o caso de confirmar com a empresa? Ele procurou investigar que empresa era essa que o procurou, como fez a Rede Globo que foi lá no Texas averiguar?
7. A rapidez com que o ministério da Saúde demitiu o intermediário Roberto Dias foi por causa dessa denúncia ou por envolvimento no outro imbróglio da Covaxin?
8. O denunciante procurou alguma outra autoridade do governo, do ministério, órgão de controle ou policial pra denunciar a tentativa de suborno?
9. Se era policial, por que não prendeu os funcionários públicos que tentaram achacá-lo?
10. Essa denúncia repentina tem algo a ver com uma tentativa de tirar o foco do escândalo anterior, mais verossímil, da Covaxin?
11. O ministério da Saúde sabia que Ricardo Barros estaria por trás dessas negociatas? Qual a influência dele no ministério?
12. Quem eram as duas pessoas (‘um militar do Exército e um empresário lá de Brasília’) presentes no almoço de Paulo Pereira, com o suposto representante da empresa?
13. Como é possível acreditar nesse esquema de oferta e nesse depoimento, se a AstraZeneca negociava direto com o ministério e nega que faça negócios com intermediários?
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