Completa um ano neste 25 de janeiro a maior crise corporativa ocorrida no Brasil. Os brasileiros jamais irão esquecer as imagens da Barragem Mina do Córrego do Feijão, da mineradora Vale, em Brumadinho-MG, rompendo e fazendo descer uma avalanche de rejeitos de minério, como se fosse uma lava, destruindo tudo que encontrou pela frente. Foram 259 pessoas mortas e 11 desaparecidas. Cenário de filme de catástrofe.*
Passado um ano, os sobreviventes e os parentes das vítimas nunca irão esquecer. Muitos dos atingidos pelo desastre continuam fora de casa. A cidade nunca mais voltou à normalidade, impactada pela tragédia que matou mais de 100 pessoas ali residentes. Além de grande parte dos empregados da Vale que trabalhava na mina, moradores da periferia, agricultores em sítios e turistas em hospedarias também foram atingidos, muitos deles engolidos pelo mar de lama. Entre as vítimas fatais, 206 homens, o que gerou uma quantidade enorme de mulheres chefes de família, de uma hora para outra. A dimensão completa dessa catástrofe, em termos humanos e ambientais, jamais será completamente dimensionada e amenizada.
Há danos irreparáveis a centenas de pessoas e ao meio ambiente. O passivo da Vale é imenso, tanto em valores que teve de despender nas compensações, indenizações e reparações, quanto na recuperação do solo, do rio Paraopeba e afluentes e da fauna e flora, também atingidas. Nem a mineradora tem essa dimensão, neste momento. O passivo financeiro deve passar da casa de bilhões de reais.
Alguns tópicos sobre essa crise, que tentam trazer à discussão como uma empresa da dimensão da mineradora Vale deixou de controlar preceitos básicos, que redundaram nessa catástrofe.
1) O acidente. Em 25/01/19, às 12:28 a história da mineradora Vale, da cidade de Brumadinho, da mineração no Brasil e de centenas de pessoas mudou para sempre. A barragem desativada da mineradora se rompeu, atingindo a área administrativa da empresa e a comunidade da Vila Ferteco. Ao se romper, o mar de lama corrosiva, com 12,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos, avançou sobre prédios, instalações, além de dezenas de empregados da Vale e moradores da região; atingiu animais, casas, plantações, veículos, estradas e até uma ponte da via férrea, chegou aos riachos e rios, sepultando em poucos segundos 270 pessoas. O rompimento acabou com as esperanças e sonhos de milhares de outras pessoas. Parecia uma triste encenação da tragédia anterior da Samarco, agora, numa dimensão incalculável.
2) Um ano depois, a Polícia Federal indiciou a Vale, a empresa alemã TÜV SÜD, além de 13 empregados das duas empresas pelos crimes de falsidade ideológica e de uso de documentos falsos. A TÜV SÜD, com seis indiciados, prestava serviços de consultoria para a mineradora, quando atestou a segurança da barragem. Entre os indiciados, estão o ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, diretores e gerentes.
3) Uma questão suscitada, após o acidente, é por que a Vale, que em 2015 sofreu o rompimento de barragem da Samarco, em Mariana (controlada 50% pela Vale e 50% pela BHP Billiton), não aprimorou os mecanismos de gestão de riscos em relação às outras barragens. É bom lembrar que o problema da insegurança das barragens no Brasil, principalmente de mineradoras, é antigo. Em Minas Gerais é ainda pior: das 400 barragens registradas, pelo menos 50 não têm garantia de estabilidade, segundo o MP. A rigor, as diretorias anteriores da Vale também têm grande parcela de responsabilidade. A diretoria da época do rompimento, principalmente o ex-presidente, se defende mostrando tudo que estava fazendo para corrigir problemas históricos, não apenas de gestão de riscos e segurança das barragens, como de engenharia. Foi acentuado, após o acidente, que a barragem que se rompeu foi construída com alteamento a montante, projeto não mais utilizado pela Vale e por outras mineradoras, porque é inseguro. A empresa diz que está trabalhando para eliminar os riscos de todas as barragens desse tipo. Pena que com atraso. Desde o acidente da Samarco, a Vale estava modificando a forma de armazenar os rejeitos. Mesmo desativada, o que aconteceu com essa barragem para se romper?
4) Diretores e empregados da Vale que foram agora questionados se defendem dizendo que por muitos anos a segurança das barragens não era uma prioridade de outras administrações. E uma das primeiras ações de Fábio Schvartzman, após a posse em março de 2017, foi exatamente cobrar e dar autonomia para a área operacional resolver o problema das barragens que pudessem representar risco de rompimento. Onde houve o erro, de novo? “Não deu tempo do presidente corrigir todos os problemas de segurança que existiam nas barragens da mineradora”, asseguram experientes empregados. Nesse caso, a falha grave foi na gestão do risco.
5) O que a Vale fez para mitigar o tamanho dessa crise? A mobilização da diretoria e dos empregados da Vale, após o acidente, foi reconhecida como um ponto positivo para a empresa. Aproveitou a Estação Conhecimento, existente na cidade, para usá-la como o local onde se concentrou o atendimento aos parentes das vítimas e demais atingidos pela catástrofe. Aí eram acolhidas famílias, feridos, doentes, sem teto, por assistentes sociais, psicólogos, médicos, enfermeiros, com apoio da área de suprimentos e infraestrutura da empresa. Toda uma cadeia de atendimento que envolvia desde hospedagem e transporte, até assistência à saúde, conduzido pelos empregados e profissionais contratados. Nesse trabalho, muitos funcionários da Vale eram voluntários. O local também serviu para receber visitantes ou profissionais que trabalhavam nos resgates, como bombeiros de outros estados e membros do Exército de Israel. A empresa instalou escritórios para atendimento exclusivo para os moradores negociarem voluntariamente indenizações por danos materiais e morais.
6) A Vale criou a Diretoria Especial de Reparação e Desenvolvimento para conduzir todos os trabalhos referentes a Brumadinho. Essa providência facilitou as ações, pela ligação com as pessoas necessitadas da cidade, as autoridades e a diretoria da Vale. Serviu para agilizar muitas decisões. Uma das críticas que emergiram, após a tragédia, é que a falta de uma linha direta entre o chão de fábrica e o conselho da empreesa impediu que alertas fossem emitidos. Nunca ficou claro pela Vale, por que os mecanismos de defesa e alerta, em Brumadinho, não funcionaram. Provavelmente, o Plano de Emergência de Barragens não considerou um acidente dessa monta, ainda que tenha havido treinamento em 2018. Ao que se sabe, um simulado estava previsto para 2019, onde poderia aparecer o potencial risco de um rompimento atingir os empregados e os ribeirinhos, e estes não terem tempo de se salvar. Há uma máxima de gestão de crises que as empresas esquecem: as crises que nunca tiveram, mesmo as improváveis, são as que podem causar o maior impacto na reputação da empresa.
7) A Vale reconhece que houve falha grave na gestão de riscos. Basta dizer que os alarmes instalados não serviram para nada. Eles se localizavam no leito por onde os rejeitos passariam, no caso de rompimento. Tudo foi destruído, antes que qualquer aviso funcionasse. Essa falha não permitiu a ninguém que estava na rota dos rejeitos sequer correr para se salvar, daí o grande número de vítimas. Trata-se de um erro na inadmissível na prevenção de catástrofes e a empresa tem dificuldade para justificá-lo. Por que não houve um trabalho preventivo que apontasse o risco real daquela barragem e outras romperem? Ela não deu nenhum sinal de que era uma ameaça? O que os relatórios da empresa contratada realmente diziam? Quem garantiu a segurança da barragem? Provavelmente a falha decorreu de problemas sérios de comunicação ou conivência entre a área operacional, o quadro gerencial e a diretoria. Como uma empresa estrangeira poderia atestar a segurança da barragem, quando técnicos apontam, agora, que havia vulnerabilidades e que a diretoria sabia? É difícil acreditar que após o acidente em Mariana não tenha a empresa mudado essa cultura?
8) Empregados da empresa reconhecem que ainda hoje nem tudo foi corrigido. Há barragens perigosas, que estão sendo monitoradas, porque a dimensão do problema é muito grande. Informações que circularam após a tragédia dão conta de que a Vale sabia que seria muito difícil salvar todas as pessoas que circulavam na mina, no caso de rompimento abrupto da barragem do Córrego do Feijão. Não apenas o Ministério Público, as agências fiscalizadoreas, a Polícia Civil, mas os executivos da Vale também reconhecem que há um longo trabalho de gestão de riscos, pela frente, para não deixar uma brecha sequer que possa ameaçar populações que residem perto das barragens das mineradoras, no futuro. Cabe perguntar, por que isso não foi feito antes? Seria o custo? A obsessão pelo lucro? Houve falha na fiscalização? Muitas pessoas sabiam do risco, ouviam falar, mas nunca acreditaram que a tragédia fosse acontecer. Inobstante órgãos fiscalizadores do meio ambiente, agências reguladoras, o ministério das Minas e Energia e até o Ministério Público tivessem falhado, competia à Vale levar esse risco muito a sério.
9) A comunicação da Vale melhorou muito nesse acidente, em relação à Mariana. Em Mariana, a empresa, apesar de ser dona de 50% da Samarco, fez questão de não se pronunciar, mantendo uma distância conveniente do acidente. Na época, a Vale deixou por conta do presidente da Samarco as explicações, de certo modo querendo distância daquela crise. Em Brumadinho foi bem diferente. A Vale criou um hotsite na seu site na Internet, onde todos os comunicados foram postados, com amplas informações. O presidente da empresa gravou vídeo logo após a tragédia, se posicionando e assumindo a condução da crise. E deu entrevista coletiva, logo a seguir. Até mesmo a decisão do MP, de afastar o presidente do cargo, em plena crise, não foi bem aceita pelo mercado, porque este entendeu que ele estava em condições de conduzir o pós-crise, por conhecer os problemas da empresa, devendo responder ao inquérito no exercício da função.
10) A Vale procurou passar todas as informações, principalmente por meio de comunicados explicativos, como continua fazendo. Mas é óbvio que muita gente, principalmente familiares das vítimas, moradores da cidade, políticos e ambientalistas têm críticas à empresa. Autoridades do município alegam que a tragédia afetou a todos: há um ano grandes máquinas e centenas de veículos circulam por dentro da cidade, complicando o trânsito e alterando a rotina urbana; a arrecadação do município caiu, pela desativação da barragem; o turismo também foi afetado; os gastos em outras áreas, como a saúde e infraestrutura acabaram aumentando. A reclamação, a rigor, não procede, porque a atividade econômica do município até melhorou. O auxílio emergencial pago pela Vale atinge cerca de 100 mil pessoas (adultos), não interessa se foram atingidas pelo desastre ou não. Pra cada adolescente, 50% do salário mínimo e 25% para menores. A Vale propiciou também compensações financeiras à prefeitura de Brumadinho (R$ 80 milhões, em 2 anos), aos órgãos de segurança, na compra de veículos e equipamentos para Polícia Militar e Civil, Corpo de Bombeiros e Defesa Civil de MG.
11) Comerciantes e mesmo pessoas atingidas pela catástrofe admitem que o dinheiro da mineradora ativou a economia local. Foram doados R$ 100 mil para 276 famílias de vítimas do rompimento, R$ 50 mil para 100 famílias que residiam na chamada Zona de Autossalvamento (ZAS), na data do rompimento, e R$ 15 mil para 91 produtores rurais e comerciantes com atividades produtivas nas ZAS. Esses valores foram “doados”, independente de indenizações judiciais. Auxílio Emergencial: mais de 106 mil pessoas recebem a ajuda emergencial mensalmente. Além disso, até novembro, 723 acordos individuais foram firmados, atendendo 2.300 pessoas. E 516 acordos trabalhistas atenderam 1.539 pessoas. A empresa perdeu nas primeiras semanas, após a tragédia, R$ 52 bilhões em valor de mercado. Mas em janeiro deste ano já chegou ao valor original, se recuperando do passivo que o desastre causou.
12) Um ano depois da tragédia, o Brasil ainda tem 41 barragens de mineração sem declaração de estabilidade e 17 sem planos de emergência apresentados as autoridades, segundo a ANM – Agência Nacional de Mineração. Essas barragens estão interditadas. Os planos de emergência – que em geral não existem – devem prever a extensão da mancha de rejeitos e o tempo disponível para fuga ou evacuação da população. A Vale também precisou rever cenários de rupturas e a criação de novas exigências, modificando seu plano de emergência. A tragédia expôs um risco generalizado de várias barragens pelo país, inclusive de outras empresas. É lamentável admitir: foi preciso morrer 270 pessoas para se descobrir que muitas cidades, seduzidas pelos lucros da mineração, viviam à beira da catástrofe.
13) “Para superar Brumadinho, superar mesmo, a Vale não precisa fechar as portas, sair de Minas Gerais ou deixar o minério de ferro para trás. Precisa, isso sim repensar sua estratégia de longo prazo, sua visão de sustentabilidade, sua relação com as comunidades vizinhas e com seus funcionários, sua política de governança, seus controles internos.” (Revista Exame, 20/03/2019, nº 1.181). "Brumadinho vai demorar a se recuperar porque temos que cuidar da dor da gente e do outro", diz Natália Oliveira, 49, irmã de um dos mortos na tragédia.
* Poucas vezes na história da indústria internacional aconteceu um acidente sequer parecido. De triste memória, em 1966, no País de Gales, o colapso de uma mina de carvão acabou num desabamento de rejeitos do mineral sobre a pequena localidade de Aberfan. Na manhã de 21 de outubro de 1966, o colapso de um dos aterros do minério liberou uma avalanche de mais de 150 mil toneladas de resíduos sobre o vilarejo. Uma equipe que trabalhava na montanha viu o início do deslizamento, mas não conseguiu alertar a tempo. A avalanche caiu exatamente em cima da escola do lugarejo, deixando 116 crianças e 28 adultos mortos. Como sempre, os culpados minimizavam os riscos: os indiciados pertenciam a uma associação de carvoeiros, que mascarava a segurança, apesar dos alertas.
Fotos: Jornal Hoje em Dia; Foto: Diego Baravelli/Wikimedia Commons; rotapolicialnews.com.br; canalrural.com.br.
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