Francisco Viana*
As imagens da tragédia de Brumadinho, com seu fúnebre cortejo de mortos e desaparecidos, continuará por muito tempo na retina de milhões e milhões de pessoas em todo o mundo. Mas os seus efeitos serão bem mais devastadores que as lembrança do pesadelo. Brumadinho abriu caminho para ações em três frentes interligadas: a primeira, é a necessidade de estabelecer compromissos e punições para cerca de três centenas de multinacionais, principalmente sediadas em países de democracias vulneráveis e onde grassa a corrupção na cúpula governante. A segunda, foram os graves - e até mesmo irreversíveis - prejuízos para a marca Vale. O terceiro, também inicialmente relacionado à Vale, é a ameaça de a mineradora ser processada por crimes contra a humanidade.
O desastre humano-ecológico da Vale vem reforçar ainda a constatação de que no Brasil, como no conjunto do cone Sul, não houve uma transição completa para a democracia, após uma longa e violenta ditadura civil-militar. A violência prosseguiu na forma de desvalorização da vida humana.
A realidade de Brumadinho indica que faltou prevenção, faltou antecipação. Faltou, especialmente, o sistema de alerta à população quando a barragem (da Vale) estava prestes a se romper na segunda quinzena de janeiro deste ano. Reportagem publicada (em 13 de fevereiro) no prestigioso jornal El País informa que, se o alerta tivesse funcionado, poderiam ter sido salvas 150 vidas. A história, porém, não se faz com “SE”. Agora só resta saber o que fazer com o que aconteceu de verdade.
Mesmo assim, ainda se o alerta tivesse soado, o número de mortos em Brumadinho teria sido elevado: 10, segundo estimativa do jornal, com base em um relatório interno da empresa. Quando se trata de gestão de riscos, embora o "core business" seja o ativo com que mais as empresas se preocupam, no fundamento da gestão de riscos está sempre “preservar a vida humana”, uma vida apenas, perdida nessa tragédia, já teria sido um custo elevado.
É preciso ver que o problema é antigo. Os desastres ecológicos com as barragens da Vale e de outras mineradoras datam de 1986, quando o Brasil já ensaiava a transição para a democracia. Desde então houve rompimentos nas barragens de Miraí (2007), Macaco (2001) Mariana (2015) e agora em Brumadinho. Fora diversos vazamentos e contaminação de mananciais de várias mineradoras, que vão de Cataguases até Mariana, passando por estados como Pará, Amazonas. Apenas no estado de Minas existem 450 barragens, das quais pelo menos 22 em situação de risco, segundo a secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de MG. Historicamente, as consequências são as mesmas: pessoas mortas ou desaparecidas, rios e córregos, tomados pela lama, vegetação e fauna destruídas. Talvez nunca saibamos a verdadeira dimensão do que as mineradoras causam ao meio ambiente do País, de Minas à Amazônia.
Agora, o desastre soou como um alerta estridente contra a disposição do governo de não mais conviver com a ingerência de órgãos estatais de meio ambiente na rotina diária de centenas de negócios de mineração e agronegócios espalhados pelo país. O aviso vinha sendo duro e claro: as leis ambientais de fiscalização às empresas seriam flexibilizadas para o bem do crescimento econômico e suposto fim de outros males, como, por exemplo, um imaginário jeitinho brasileiro de licenciar empreendimentos no país, que ocorreria mediante propina a fiscais. E até mesmo o olhar complacente de políticos e governantes, regados a volumosas contribuições de campanha.
O acidente em Brumadinho atingiu em cheio o desejo de mudança do governo. E cristalizou a necessidade de uma imagem forjada por ações preventivas ainda mais rigorosas. Porém, uma imagem que tem sido um marco dos tempos atuais, dá bem o tom do que o desastre representa: foi por si só um choque de realidade no desejo “mudancista”. Dando a impressão de que a lama entrava pela tela da TV, invadindo milhões de lares brasileiros, o noticiário fazia a macabra contabilidade dos mortos e desaparecidos. Não bastasse isso, ainda havia o fantasma de 200 barragens, em todo o Brasil, com potencial de dano, ameaçando o sossego de empregados e moradores. Talvez os brasileiros não se dessem conta de que nas franjas das serras tão bonitas de Minas Gerais e outros estados brasileiros, esconde-se um negócio profundamente desumano e perigoso, onde o volume de dinheiro que emana das montanhas acaba difarçando a verdadeira dimensão da catástrofe ecológica que provoca.
A contagem dos corpos encontrados é minuto a minuto, nas rádios, nas TVs, na Internet e nas redes sociais. Um massacre, gerando um misto de compaixão e indignação naqueles que acompanham esperançosos o resgate das vítimas. O Brasil tem o condão de esquecer as tragédias muito rapidamente. Mas cada família que perdeu um ente querido naquele acidente da forma gratuita e irresponsável como ocorreu, jamais esquecerá o dia 25 de janeiro de 2019. O dia do juízo final, poderíamos dizer.
O que fazer com a Companhia Vale ? A Companhia é privada. Tem milhares de acionistas, mas grande parte das ações pertence aos Fundos de Pensão de estatais, o que significa que o governo tem voz ativa no Conselho de Administração da companhia. Isso não assegurou à mineradora uma ação de compliance e governança mais rígida em relação à gestão do risco de novos acidentes. Sua eficiência, portanto, foi posta à prova e a reputação definitivamente resta manchada para sempre. Tanto que não conseguiu impedir que se repetisse, passados apenas três anos, uma tragédia das proporções da que ocorreu em Mariana, também em Minas Gerais. Cometem-se erros elementares. Usa-se material precário, os rejeitos - barato, mas perigoso - para fazer a contenção das barragens, o que é o mesmo que dizer que os acidentes irão, cedo ou tarde, acontecer. Em paralelo não se tem o cuidado de assegurar informações aos familiares das vítimas, muitos sem saber se e quando o corpo do parente desaparecido será encontrado. Ou até mesmo se morreu.
O drama é que o desastre repercutiu mundialmente. Não há como evitar. Ecologia é pauta internacional. Sobretudo com um caso dessas proporções. Não há saída. O governo terá que rever sua política ecológica. Por que o que está em questão transcende Minas Gerais. A pergunta é: qual é a alma da democracia? A participação social. O debate, o diálogo, a justiça, a liberdade... Ou a vontade de um grupo, no poder, que a cada dia levanta mais desconfianças.
A tragédia de Brumadinho envolve todas essas questões. E mais o drama humano que, por sua vez, exige uma coerência social por parte das empresas que exploram o patrimônio público como é o caso da Vale. Mas onde está o Estado? Como proteger os cidadãos? É como ensina Maquiavel: entre o povo e a elite para o governante, a melhor escolha é sempre o povo, pois as elites mudam de lugar e podem surgir novas, enquanto o povo é sempre o povo. Uma vez abandonado, é certo que não atenderá aos apelos do governante quando dele precisar. É o que demonstra o processo histórico por toda parte.
*Francisco Viana é jornalista e doutor em Filosofia Política (PUC-SP).
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