Brumadinho barragem 7Cristiano Cecatto*

Envolvimento e atuação plena de conhecedores da área pode ser vital na prevenção e combate de situações de emergência. Desabamentos do edifício Palace II e da Ciclovia Tim Maia. Rio de Janeiro, 1998 e 2016. Incêndio da Boate Kiss. Rio G. do Sul, 2013. Rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho. Minas Gerais, 2015 e 2019. A lista de tragédias no Brasil tem nestes episódios apenas um início. Se uma pesquisa por outros casos for intensificada, a quantidade de ocorrências só vai aumentar e, com ela, surge uma característica comum para cada episódio: a ausência de um planejamento para a gestão de emergências.

João José Forni é professor de Comunicação Pública e das Organizações em cursos de pós-graduação país afora e o maior especialista nacional em gerenciamento de crises. Em consulta a ele sobre o tema, recebi uma explicação contundente sobre os motivos que fazem de uma nação como o Brasil ser, infelizmente, um lugar onde acidentes de tal porte proliferam. A omissão do poder executivo nas esferas municipal, estadual e federal, das secretarias do meio ambiente e de outros organismos que trabalham com segurança e para a preservação do meio ambiente é a grande fonte de acidentes como os citados.

São eventos que tiram a vida tanto de pessoas comuns quanto de funcionários que trabalham nessas obras. O especialista é incisivo ao afirmar que no Brasil, quando ocorre uma tragédia, há uma grande comoção e autoridades visitam a área atingida como de praxe. À primeira vista parece que o País vai levar a sério, fiscalizar, punir quem não seguir as normas, só que o assunto cai invariavelmente no esquecimento.

Dito isto, não tenho dúvidas ao afirmar que profissionais da área de segurança no trabalho têm grande importância e responsabilidade na prevenção a esse tipo de situação. Todos nós temos o preparo e o conhecimento técnico necessário para alertar arquitetos, engenheiros civis, projetistas e gestores públicos dos riscos intrínsecos às grandes obras civis de caráter público ou privado.

O papel dos profissionais de SST em tragédias

No exterior, a pauta também preocupa. Joselito Ignacio, diretor adjunto do programa de defesa química no Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos é consultor químico, biológico, radiológico e nuclear da Agência Federal de Gestão de Emergências daquele país. Em artigo recentemente publicado no exterior, destacou que tais profissionais serão, provavelmente, convocados para servir em um comitê de gerenciamento de emergências em caso de um acidente, como tantos que assustaram os brasileiros. Ele defende que ter uma compreensão estratégica de como os planos de gerenciamento de emergência são desenvolvidos e a expertise sobre a proteção da força de trabalho antes e durante uma crise é algo vital. De fato, nossa competência nessa área ajuda a integrar setores, como saúde, segurança e o gerenciamento ambiental da força de trabalho nas operações de resposta a acidentes.

Compreender a crise

Ignacio listou os seis passos criados pela agência da qual é integrante para assegurar uma preparação prévia às crises. O primeiro deles envolve montar o time que tomará na prática as medidas cabíveis e engajar toda a comunidade. As pessoas à frente de uma construtora ou de uma administração pública, por exemplo, precisam entender, conforme mencionei, que trabalhadores e a população próxima são os diretamente afetados por uma crise de tamanha amplitude. Nesse ponto entra o conhecimento dos profissionais de segurança no trabalho.

É fundamental identificar o número de trabalhadores, suas posições no local afetado e as funções que exercem. Saber quais são os indivíduos em risco (como pessoas com necessidades funcionais) que podem exigir assistência adicional e identificar casas ou locais públicos dentro da área impactada e locais críticos – como unidades de saúde ou Corpo de Bombeiros – que podem ser afetados pelos perigos são outros pontos exigidos. Isso é exatamente o oposto ao que aconteceu em Mariana e, três anos depois, em Brumadinho, de acordo com Forni.

Para ele, os fatos ocorridos demonstram que as empresas que trabalham com produtos perigosos ou em uma indústria com alto potencial de risco de acidentes no caso, a mineração – não têm feito o dever de casa com a gestão de risco. Se estavam colocando em prática, houve alguma falha. Nas duas tragédias, lembra o especialista, os avisos de alerta falharam. Ele cita também reportagem publicada no dia 13 de fevereiro deste ano no prestigiado jornal “El País”, que previa o salvamento de, ao menos, 150 pessoas, caso os alertas tivessem funcionado. Quem se salvou só sobreviveu porque houve tempo de escapar ou porque outros empregados conseguiram avisá-los, argumenta Forni. Não foi a empresa que emitiu o alerta por qualquer mecanismo que tivesse. Talvez seja por causa disso o grande número de vítimas fatais em Brumadinho, dada à rapidez com que a barragem desabou e encobriu tudo que encontrou pela frente. Ou seja, nos dois acidentes houve falha grave nos alertas à população e aos empregados.

Ao formar um time de planejamento colaborativo, estabelece-se a intenção da liderança organizacional, criando o escopo do plano de controle emergencial, estabelecendo valores e riscos de nível estratégico. Ter esse controle logo no início do processo é crítico para a aceitação do que for estabelecido, especifica Ignacio. Juntos, líderes mais experientes e o time de planejamento colaborativo, podem formar uma estratégia compreensível, aceitável e gerenciável. Aqui, concordo totalmente com a afirmação dele sobre a relevância inquestionável do envolvimento mais cedo possível de profissionais de segurança e saúde laboral nas atividades de planejamento. Isso irá garantir a atenção adequada para a salvaguarda tanto de trabalhadores quanto das demais vítimas.

 Resposta à tragédia

A etapa seguinte estabelecida pela agência norte-americana de gestão de emergências fala sobre a necessidade de um processo lógico e analítico para a pronta realização de tarefas críticas de resposta às tragédias. É preciso apontar ameaças e perigos e avaliar os riscos, deixando claro qual é a intenção do plano. Todos os setores envolvidos devem ter representantes atuando com agilidade no processo de reunir e analisar informações, estabelecendo objetivos claros e levando em conta distintos pontos de vista para cumprir tais metas.

Nesta etapa, novamente podemos colaborar, listando recursos necessários e elaborando os critérios de desempenho esperados para que a missão de resgate e contenção de estragos seja bem atendida. O tempo necessário para isso vai depender diretamente da dimensão do acidente, da área e da população afetadas. São ações críticas para atender os objetivos do plano que devem ser integradas com outras que se mostrem essenciais.

O diretor adjunto do programa de defesa química do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos exemplifica essa fase, citando que implantar equipamentos de proteção pessoal para um segmento da força tarefa pode depender da comunicação, logística e da capacidade de reabastecimento e da avaliação situacional. Em suma, fatores de planejamento são a base para se tomar decisões. Se há a possibilidade de uma redução de pessoal em função de condições climáticas do acidente em si ou de dificuldades de locomoção até o local da ocorrência, surge como solução a possibilidade de interromper funções que não sejam essenciais, contratar suporte externo ou implantar uso de equipamentos de proteção individual e práticas seguras de trabalho aplicáveis para o pessoal que ainda estiver atuando.

Forni e Ignacio têm linhas de raciocínio que se encontram quanto à obrigação de se evitar iniciar um gerenciamento de crise a partir do zero. Todo e qualquer planejamento de gestão de emergências, eles ensinam, deveria ter como base planificações, acordos e regras previamente determinadas. Quem coloca em prática a ação precisa, então, apenas ter como base o que já existe para meramente efetuar alterações que venham a se fazer necessárias para atender às exigências pontuais e responder com eficácia ao desafio presente, conforme demonstrado no parágrafo anterior.

Em cenários impactantes como os de uma enchente ou de um desabamento, todos os perigos precisam ser levados em conta para que a equipe de gerenciamento possa elencar capacidades em comum para todos os perigos, dentro do que Ignacio cita como comunicação operacional. Quem controla a operação precisa ter essa preocupação. Sobre isso, Forni destaca que ninguém sabe até o momento se houve treinamentos de simulação com os empregados em Mariana e Brumadinho. Se tivessem existido, possivelmente os trabalhadores e diretores teriam descoberto – no próprio treinamento – que a ameaça era muito maior do que imaginavam.

Afinal, a unidade estava em processo de descomissionamento, significando que ela seria fechada, mas continuava recebendo líquidos que aumentavam o volume dos rejeitos ali depositados. Há que se considerar também que ela estava situada numa plataforma acima dos acampamentos e escritórios dos empregados e o sistema de alerta foi engolido pela avalanche, não tendo funcionado. Forni reconhece que a Vale, na segunda tragédia, aprimorou a comunicação pública após o acidente, sendo mais proativa do que foi em Mariana, mas na gestão de risco falhou conforme os experts têm constatado nas análises que ainda são preliminares.

O que aconteceria se essa barragem desabasse um dia? De acordo com ele, essa deveria ter sido a essência do treinamento. Então, se perceberia uma série de falhas que aconteceram e levaram à morte centenas de pessoas. Erros que poderiam ter sido evitados.

Recuperação

Retomando as orientações explanadas por Ignacio, o terceiro passo implica uma descrição do estado final, que esclarece o que a organização vai olhar depois de uma grande crise e como será a implementação correta de ações de resposta e recuperação. A orientação é estabelecer o propósito e os objetivos operacionais primários com uma simples descrição de “quem, o que, onde, quando e porque”, algo que garantirá a manutenção das atenções no foco da missão.

Depois disso é necessário definir metas e objetivos para indicar a solução pretendida para os problemas identificados no planejamento. Nesse segmento são estabelecidas ações que podem ser realizadas durante uma operação. Em um desabamento, por exemplo, imagino que o cenário final deveria incluir, além do resgate de sobreviventes por colaboradores com equipamentos adequados para a própria segurança, ações para impedir novos abalos que possam atingir edificações vizinhas.

Atribuições

O próximo passo é desenvolver o plano com uma análise de vários cursos de ação fundamentais para executar as metas e objetivos. Desde o início da crise, um cenário tem que ser definido para especificar os pontos de decisão que vão, certamente, ser imprescindíveis. Aqui valem muito as ideias de todos os envolvidos para evitar que possíveis soluções deixem de ser postas em prática. A partir daí, é questão de estabelecer respostas para questões como qual é a ação e quem é o responsável por ela? Quando tal ação deve ser feita? Por quanto tempo ela deve ser tomada e por quanto tempo estará disponível? O que precisa ocorrer antes da ação? E depois? Quais recursos a pessoa ou entidade vai precisar para executá-la?

Para Ignacio, profissionais de segurança e saúde do trabalhador devem rever essas respostas de uma perspectiva diferente. Baseado no cenário, tais questionamentos devem ser: Quais são os males associados com estas ações? Há pessoal suficiente para cumprir as tarefas? Quais equipamentos de proteção individual são necessários para cumprir o objetivo de modo correto? Há controles de engenharia e práticas de trabalho seguro para efetuar essas ações? Os procedimentos atuais incluem a segurança e práticas saudáveis para realizá-las? Com tudo isso respondido, pode se determinar os recursos necessários.

Um guia do planejamento

Com a publicação “Desenvolvendo e mantendo Planos de Operações Emergenciais”, a Agência Federal de Gestão de Emergências dos Estados Unidos criou um verdadeiro guia passo a passo para estabelecer o rascunho final de um planejamento, que reproduzo abaixo:

 -redação clara e simples

-checklists e imagens de ajuda (mapas e fluxogramas)

-voz ativa e sentenças curtas para evitar frases vagas

-detalhes suficientes (conforme cada organização e escopo de operações)

-consideração de soluções e opções durante uma crise enquanto se evita discussões de políticas e regulamentações

-discussão limitada de procedimentos. Por exemplo, o plano não deve mostrar como é uma operação de retroescavadeiras

-facilidade de acessibilidades

-identificação do escopo e conceito de tarefas de respostas válidas e suposições razoáveis

-viabilidade baseada em ampla concordância entre o time colaborativo, liderança e a comunidade

Ignacio conclui a receita para colocar o plano em andamento com determinações para o treinamento de todos os participantes. Se houver tempo hábil, creio ser muito importante realizar uma simulação e revisão de cada etapa. Profissionais de segurança e saúde podem fornecer uma expertise técnica valiosa para identificar os perigos e controles necessários apropriados para proteger a força de trabalho durante a crise e devem atuar ativamente em todo processo. Mas muito antes de uma crise surgir, é obrigação de quem trabalha no setor de segurança marcar posição preventivamente. Isso, de acordo com Forni, é o verdadeiro gerenciamento de uma crise. Atuar antes que ela surja.

Temos que efetuar uma ação permanente de informação aos gestores, públicos ou privados, colocando em prática um esforço de conscientização sobre os riscos iminentes de tragédias sem a obediência às regras de fiscalização e controle dentro de uma obra, não importando de qual porte seja. Sobre isso, defendo de modo intenso que uma das coisas mais importantes é a capacitação prévia e contínua das áreas de diretoria e gerência, ambas formadas por pessoas de grande relevância para fazer qualquer programa de trabalho ter sucesso. Se não houver o comprometimento destes setores, dificilmente as demais alas de uma equipe vão se envolver com a dedicação ideal. Esse, asseguro, é o melhor e mais eficaz caminho para um futuro de mais segurança no Brasil.

*Cristiano Cecatto – Consultor e Diretor da SSO. Membro da ABHO. Eng. Mecânico e de Segurança no Trabalho. Mestre em Engenharia de Produção.

Publicado na Revista CIPA – julho de 2019.

 

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