Após a série de tragédias que se abateu sobre o Rio de Janeiro nos primeiros meses do ano, principalmente a última enxurrada que acabou na morte de várias pessoas, a prefeitura da cidade resolveu declarar guerra às Organizações Globo.
Em extensa, inusitada e confusa Nota à lmprensa, cheia de adjetivos e expressões inusuais numa nota oficial, a Subsecretaria de Comunicação Governamental da Prefeitura do Rio de Janeiro veio a público “manifestar surpresa e repúdio à linha editorial da TV Globo na cobertura dos efeitos das chuvas que castigaram a Região Metropolitana nos últimos dias“ e que deixaram um saldo macabro de pelo menos 16 mortos.
Muito rara no relacionamento entre os órgãos públicos e a imprensa, principalmente no caso do Rio, onde a TV Globo tem a sede, essa “declaração de guerra” desgasta e prejudica muito mais a prefeitura e o prefeito, em particular, do que a própria Organização Globo. Pra começar, a maioria dos telespectadores da Globo não tomou conhecimento da Nota. Significa que a TV Globo não vai perder audiência por causa do ataque do Prefeito. A repercussão nas redes sociais foi normal, principalmente no segmento que não gosta da Rede Globo ou são partidários do prefeito.
Para o jornalista Francisco Viana*, “sem dúvida, a atitude da prefeitura é exagerada. A TV Globo, a exemplo dos demais veículos - jornal e rádio - da Organização nada mais fez do que exercer a liberdade de imprensa e de expressão, alicerçada em fatos. Se a prefeitura, desejava se manifestar que ocupasse democraticamente o espaço, dando a sua versão.”
A postura que o prefeito interpreta como antagônica, de oposição ostensiva do Grupo, faz parte do jogo democrático. O governante sempre corre esse risco. A distância entre o amor (apoio irrestrito de determinados veículos) e ódio (cobertura mais dura, cobranças e até ataques) na política e na administração pública é muito pequena. Não raro, políticos governam com ostensiva oposição da mídia.
Getúlio Vargas, por exemplo, apanhou da imprensa toda, durante 15 anos de poder, no primeiro governo (1930-1945), após a Revolução de 30. Nenhum jornal (o veículo de maior força na época) o apoiava no primeiro mandato. Ele precisou financiar e fundar um jornal (Última Hora) para ter espaço, no segundo governo, na década de 50. Leonel Brizola governou o Rio (1991-1994) literalmente banido pela Globo. Citar o nome dele era proibido, o que mereceu até mesmo um antológico direito de resposta, do governador, em horário nobre, no "Jornal Nacional, em 1994. Donald Trump governa sob tiroteio de grande parte da mídia americana. Ele grita, desdenha, ofende, mas os veículos não ligam. Continuam batendo. Faz parte do jogo.
Ainda segundo Viana, “Quanto à nota da prefeitura, o erro está no seu conteúdo. Além dos lugares comuns “pôr na boca“ do Prefeito, “sangue nas mãos“, “linchamento público“, a nota se volta mais para o passado do que para as providências para conter os efeitos das chuvas. 16 mortos é muito. Um morto já seria extremamente lamentável. Imagine 16!”
Passados quatro dias do desabamento do prédio, nem a prefeitura, nem a polícia, têm qualquer pista dos responsáveis pelas construções irregulares na comunidade de Muzema. Os meliantes tinham todo um esquema de cobrança montado pela venda e pelo aluguel de apartamentos, construídos à revelia do poder público, dos órgãos fiscalizadores, do CREA, da Defesa Civil e dos Bombeiros. Eles invadem áreas com grande risco de desmoronamento e continuam construindo, sem autorização ou laudo dos órgãos fiscalizadores. Os moradores, naturalmente, no desespero de adquirir um imóvel, caem no conto das milícias e depois têm medo de denunciá-los, porque tudo ali cheira irregular. A completa inoperância do poder público nesse e em outros casos alimenta essa indústria da exploração.
As milícias chantageiam e constrangem os moradores. "Os técnicos da fiscalização municipal necessitam de apoio da Polícia Militar para realizar operações no local", diz a prefeitura. O que choca nesse episódio, onde já se registram 16 mortos e 9 desaparecidos, é a quantidade de prédios de até sete andares, que foram construídos como se fosse um loteamento, sem que a prefeitura, o MP e o Crea tomassem qualquer atitude. Fala-se em 17 notificações de interdição, às quais as milícias não deram a mínima atenção. Só podia resultar em tragédia.
Voltando ao comunicado da prefeitura, notas oficiais devem conter fatos e estarem atreladas especialmente aos acontecimentos. Não discursos beligerantes. Ou ideológicos.
Para Viana, “a expressão “pôr na boca“ do prefeito é um erro crasso. Dessa forma toda a argumentação cai por terra já no início. Amadorismo em estado puro. Que nem para brigar serve. Com a declaração de guerra e a nota de repúdio, perde a população do Rio. A prefeitura em lugar de esclarecer, confunde ainda mais o cidadão que, no final, deveria ser alvo de atenções e não alvo de jogo de manipulação.”
Como a verdade é sempre complexa, a Prefeitura continua devendo a sua versão sobre os impactos das chuvas na cidade do Rio. A briga entre prefeito e a Rede Globo, sustentada por diferenças religiosas e empresariais de um concorrente, amigo do prefeito, não ajuda em nada a prefeitura resolver os problemas do cidadão. Pode ser bonito para a plateia do prefeito, mas muito ruim para a cidade.
*Francisco Viana é jornalista e doutor em Filosofia Política (PUC-SP), especialista em reputação e gerenciamento de crise e autor de vários livros sobre comunicação empresarial.
Nota da Prefeitura do Rio de Janeiro
A Subsecretaria de Comunicação Governamental da Prefeitura do Rio de Janeiro vem a público manifestar surpresa e repúdio à linha editorial da TV Globo na cobertura dos efeitos das chuvas que castigaram a Região Metropolitana nos últimos dias:
1) De forma desrespeitosa, os jornalistas da TV Globo têm dirigido perguntas ao prefeito Marcelo Crivella, na tentativa de pôr na boca do prefeito declarações que não foram feitas pelo alcaide;
2) A TV Globo tem faltado ao respeito com milhões de cidadãos cariocas, que passam horas do dia assistindo a um simulacro das ações do governo municipal, que sozinho luta para recuperar a infraestrutura de uma cidade que há décadas não recebe investimentos suficientes;
3) É importante destacar que os milhões de reais que a TV Globo recebeu de publicidade para divulgar ações marqueteiras da gestão anterior seriam mais do que suficientes para concluir as obras nas 31 comunidades, paralisadas ainda na gestão passada;
4) A verdade é que as Organizações Globo têm sangue nas mãos. Os mais de R$ 170 milhões recebidos da gestão passada, para divulgar o “Sonho Olímpico”, poderiam ter salvado vidas de pessoas que, lamentavelmente, nos deixaram, por falta de recursos que hoje não temos;
5) Esses mesmos inquisidores (que não podem ser chamados de jornalistas), que hoje se arvoram em condenar uma administração que herdou uma cidade quebrada, não viram os desmandos de anos que levaram o Estado e a Cidade do Rio à bancarrota?
6) O Rio estava com suas contas comprometidas, desde 2016, como mostra o extenso voto do conselheiro do TCM, Ivan Moreira. Em sua exposição, “destacou pontos frágeis como a municipalização dos hospitais Rocha Faria e Alberto Schweitzer, que contribuiu sobremaneira para o déficit orçamentário verificado; a não adoção de ações sanativas para a situação do Funprevi; e os cancelamentos de empenhos, entre outros”, está escrito no site do TCM;
7) E sabe por que os jornalistas das Organizações Globo não viram isso? Porque muitos deles recebiam polpudas remunerações por palestras encomendadas pelo ex-presidiário Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio-RJ e que hoje tem que explicar os desvios de milhões de reais;
8) Matéria do site “Intercept”, de 9/11/2017, traz a lista de alguns desses valorosos e independentes jornalistas. Detalhe: alguns são apresentadores de Telejornais da TV Globo e que hoje cobram do prefeito Marcelo Crivella a aplicação de recursos. Caso consciências tivessem, devolveriam esse dinheiro aos cofres do Sistema S, que vive de subsídios que fazem falta aos gestores públicos;
9) Esse linchamento público voltou a acontecer hoje (11/4). Em entrevista coletiva, no Palácio da Cidade, o prefeito falava sobre as medidas já tomadas para trazer o município, em especial na área de trânsito, ao seu ritmo normal. De forma imperial, a repórter tratou o prefeito como se este estivesse em um tribunal e não numa entrevista coletiva. Vejam a batalha:
Repórter: Agora prefeito a cidade está parada ainda…
PREFEITO: não, não está parada…
Repórter: esperando para retomar, as pessoas estão demorando para chegar…
PREFEITO: não, não, não…
Repórter: Tem sete pontos de interdição ainda
PREFEITO: começa a sair, como se fosse encerrar a coletiva “Obrigado, obrigado”
Repórter: As pessoas têm realmente pressa de chegar…
PREFEITO volta: É impressionante como a Rede Globo faz campanha contra mim, não é contra mim não. A cidade não está parada, a cidade está se movimentando, a única cidade…
Repórter interrompe: Prefeito, desculpa, as pessoas têm pressa para retomar suas vidas…
PREFEITO tenta continuar: “A única, a única…
Repórter insiste: O senhor me permite
PREFEITO: Eu vou permitir. Mas é impressionante, é impressionante como vocês fazem oposição, não a mim, mas ao Rio de Janeiro…
Repórter: Prefeito, o senhor está enganado (interrompe de novo)…
PREFEITO: Não estou enganado não…
Repórter: Nós estamos reproduzindo o que as pessoas estão encaminhando pra gente. O senhor me permite…
PREFEITO: Você acabou de fazer a pergunta? Eu quero saber, se você acabou de fazer a sua pergunta?
Repórter: Sim, a minha pergunta é essa: o senhor não acha que tem uma demora?
PREFEITO: Quer fazer outra? Eu posso responder? É impressionante como a Rede Globo de televisão é absolutamente contra a cidade do Rio de Janeiro. É a televisão que anuncia o tempo todo os problemas do Rio, que faz drama sobre coisas corriqueiras que acontecem na nossa vida desde que eu nasci aqui (falando sobre a retomada do ritmo da cidade).
Repórter: O senhor acha que o que aconteceu foi um drama corriqueiro? Perdão prefeito, o senhor acha que o que aconteceu, a pior chuva em 22 anos, foi um drama corriqueiro?
PREFEITO: A cidade do Rio de Janeiro, a cidade do Rio de Janeiro…
Repórter insiste: dez pessoas mortas?
PREFEITO: Não, não, não, não vou falar com você, me dá licença, é um direito que eu tenho. A cidade do Rio de Janeiro, desde a minha infância, sofre problemas no trânsito. Esses que eu disse são corriqueiros. São problemas que a gente enfrenta porque temos dificuldades com a nossa topografia. Nós somos uma cidade com muitas montanhas, com muitos túneis, com vias estreitas e temos sim problemas com o trânsito. É claro que os desabamentos, que nós já temos uma Geo-Rio de 50 anos, procuramos evitar, mas nem sempre conseguimos. Lamentamos profundamente nossas tragédias. Agora é preciso aprender com elas e não fazer campanha política, não fazer exploração, o que a Globo quer é dinheiro na sua propaganda, o que ela quer é que a gente faça uma festa no carnaval e ela possa vender R$ 240 milhões com a Prefeitura pagando todo o carnaval. Isso está errado. Então, o que elas fazem é chantagem, é chantagem, isso não tem nada a ver com interesse da cidade. E seguramente não vão colocar isso no ar.
10) Não vamos ceder a pressões financeiras de um grupo de mídia que insiste em editorializar a cobertura sobre as chuvas, deixando de lado a prestação de serviço público, informação e orientação à uma população tão sofrida como a carioca.
Prefeito ataca a Rede Globo