criancas com pais* João José Forni

O país discutiu nas últimas semanas um tema polêmico. O direito de pais e responsáveis aplicarem castigos físicos e até palmadas nas crianças. O Executivo encaminhou ao Congresso Nacional projeto de lei – apelidado de Lei da palmada – que proíbe castigos corporais, tratamento cruel ou degradante a crianças e adolescentes. Ele altera dispositivos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Pais, professores e babás, por exemplo, não poderão mais bater, ter conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize os filhos. Ou seja, não devem mais corrigir crianças e adolescentes com palmadas, sob penalidade de advertência, encaminhamento a programas de proteção à família, orientação psicológica e ainda podem ser obrigados a encaminhar os filhos a tratamento especializado.

O projeto reafirma o que nós sabemos já ser proibido. Ele “estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante”. Até aqui, todos estamos de acordo. Mas, sob o argumento de que devemos coibir a violência doméstica, governo e Congresso começam a entrar numa seara bastante pantanosa. Com tanta coisa mais séria para discutir, suas excelências vão se debruçar sobre um tema que não tem a unanimidade nacional.

O assunto por si só é bastante controverso. Quem dos leitores mais velhos não levou uma palmadinha ou até mesmo surras dos pais na infância? Naturalmente, os tempos são outros. Até os castigos se modernizaram: tornaram-se mais violentos. A mídia todo dia mostra cenas explícitas de agressões contra crianças e adolescentes. São parentes ou responsáveis covardes, que aproveitam a presumida autoridade para agredir inocentes, sob o pretexto de educá-los. Conseguem apenas formar adultos revoltados, com baixa estima, que nunca esqueceram a violência.

Não se questiona a intenção, até porque o projeto bate numa tecla já prevista no ECA. Não seria preciso mais uma lei para impedir o excesso e a violência contra as crianças. É preciso apenas exigir o cumprimento da que já existe. O estatuto fala em “maus tratos”. Uma criança jamais poderá ser vítima de violência, agressões, tabefes, castigos físicos, como os aplicados por pais, padrastos, tios e até avós. Elas não podem ser válvula de escape para o stress da vida moderna ou ataque etílicos de parentes neuróticos.

A fronteira entre palmadas educativas e violência é bastante difusa, por isso a preocupação de educadores e psicólogos com a liberdade dos castigos físicos. Castigar fisicamente uma criança sempre foi contra a lei. No entanto, as estatísticas mostram aumento da violência no lar e em abrigos, de pessoas próximas às crianças. O interessante é que em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, divulgada na semana passada, 54% dos brasileiros são contrários ao projeto de lei que veta castigos físicos em crianças. 74% dos homens e 69% das mulheres já apanharam dos pais, revela a pesquisa. Nem por isso a população brasileira se transformou numa geração de neuróticos ou revoltados.

A polêmica é maior porque a palmada parece incorporada na cultura brasileira, como uma demonstração de autoridade. Provavelmente, a maioria da população é contra o projeto, não porque defenda a violência contra a criança, mas porque considera a proposta uma intromissão na privacidade do lar, uma interferência indevida na educação dos filhos, função que consideram atribuição prioritária dos pais. “É uma lei que quer regular a intimidade da casa, da relação pai e filho. Os casos extremos já têm medidas judiciais. Já temos recursos que funcionam”, diz Lino Macedo, do Instituto de Psicologia da USP.

A questão é: deveria o estado interferir no espaço do lar, num país onde os mais simples direitos individuais, principalmente de crianças e adolescentes, são desrespeitados? Violência maior não seria o fato de milhões de jovens estarem fora da escola, por falta de vagas ou condições, principalmente nas regiões mais pobres?

Mais importante do que aprovar mais uma nova lei, que acaba não cumprida, talvez seja mudar a cultura milenar de repressão. E que possamos substituir o castigo físico pelo castigo moral, aquele que pune certos privilégios, como sair no fim de semana, cortar a mesada, deixar de jogar vídeo game e outras coisas agradáveis que toda criança gostaria de fazer. Certamente, privá-las das regalias poderá ter um efeito educativo bem maior do que ficar com o time dos que fazem da palmada um passaporte para agressões mais violentas.

*Jornalista e Consultor de Comunicação.

Artigo originalmente publicado em 16/08/2010, no jornal Folha do Sul; Publicado como texto de leitura no livro Araribá Português (Áurea Regina Kanashiro - 3a. ed. São Paulo: Moderna, 2010, pág. 176-17).

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