Entendemos crise como uma ruptura, capaz que causar um alto nível de incerteza. As crises também representam uma ameaça a alguma coisa. A sensação hoje pela manhã do mundo todo, não importa se nas ditaduras asiáticas ou nas democracias ocidentais, era de perplexidade diante do resultado da eleição americana. E a surpresa se transformou também numa grande interrogação. Ou estamos diante de uma grande ameaça?
Para quem não entende muito de política internacional, principalmente o cidadão comum, que repudiou Donald Trump pelas posições xenofóbicas e desrespeitosas para com imigrantes, negros, muçulmanos, refugiados, imigrantes, mulheres e demais minorias, a sensação é de insegurança, frustração, raiva. Até pelo fato de não entender por que 50% da população de um país como os EUA apostaram nesse aventureiro, aprendiz de político. Para o resto do mundo, mesmo quem conhece os bastidores da política, a surpresa se transformou num estado de letargia, tentando entender qual o recado das urnas americanas.
Mas a palavra crise também permite ver que dela pode emanar algo novo, muitas vezes não sem antes um longo período de sofrimento e purgação. O sociólogo, jornalista e escritor italiano Carlo Bordoni admite, no livro Estado de Crise*, escrito em parceria com o sociólogo Zigmunt Bauman, que a noção de “crise” transmite a imagem de um momento de transição de uma condição anterior para uma nova – de uma transição que se presta necessariamente ao crescimento, como prelúdio de uma melhoria para um status diferente, um passo adiante decisivo.” Pode significar também que estamos mudando de patamar para o bem ou para o mal.
A vitória de Trump, contrariando todas as pesquisas, sondagens e estudos de cientistas políticos e sociais e jornalistas é daqueles choques que a humanidade vez por outra leva e não sabe como reagir. Hoje pela manhã houve quem comparasse o 09/11 ao 11/09 de 2001, numa analogia ao fatídico dia do atentado terrorista ao World Trade Center, que de certo modo mudou a história americana, tragédia que, simbolicamente, também marca o início do século XXI. A chegada de Trump ao cargo mais cobiçado do Planeta, com uma plataforma que coloca em xeque muito do que o capitalismo, a democracia e a sociedade moderna têm conquistado nos últimos anos, pode ser o prenúncio iminente de uma grave crise, principalmente se dez por cento das sandices que ele prometeu forem realizadas.
Trump pode ser o “turning point” na forma de fazer política. O eleitor americano, a exemplo do que aconteceu com o do Reino Unido, com o plebiscito do “Brexit”, que possibilitou optar pela saída da União Europeia, mostrou que não se satisfaz com o mais do mesmo. De certa forma, exatamente o que representava Hillary Clinton, um arremedo de Bill Clinton, sem ter o carisma e o brilhantismo de Barack Obama. Entretanto, Trump ganhou mais pela decepção da sociedade americana tradicional com o modelo de gestão do país do que pelas limitações de Hillary Clinton. Mostra também que dinheiro, marqueteiros competentes e amplo apoio da mídia e de celebridades já não conseguem conquistar o coração do eleitor e eleger presidentes. É isso que Trump mostrou. À revelia do seu partido, confrontando valores que os americanos descontentes - uma minoria branca e conservadora - aprenderam a cultivar nas últimas décadas, quanto mais batiam nele, ele crescia nas franjas do interior americano, principalmente dos estados de minoria branca, sem instrução superior, onde a crise de 2008 bateu mais forte.
Por que não se desesperar
Em 1980, o mundo e os Estados Unidos de certo modo foram surpreendidos pela vitória de um ator americano, que concorria para presidente contra a máquina do Partido Democrata, que estava no poder. Ronald Regan venceu o presidente Jimmy Carter nas eleições e tomou posse em 1981. Carter era um líder carismático, mas cometeu alguns erros na política internacional durante o mandato, principalmente por não agir com rigor no sequestro de 52 norte-americanos, por fanáticos no Irã, retidos na embaixada americana por 444 dias. Decepcionado, o eleitor não quis lhe dar uma segunda chance. Foi assim que o ator de filmes de faroeste, alto, com pinta de caubói, chegou à Casa Branca.
Mais experiente do que Trump, porque tinha feito um bom governo na Califórnia, em dois mandatos, Reagan, um anticomunista convicto, chegou na presidência com desconfianças semelhantes às do atual magnata americano. Eram tempos difíceis, em plena Guerra Fria, quando as relações Estados Unidos e Rússia andavam sempre sob alta tensão. Além disso, os EUA enfrentavam uma crise econômica, o rescaldo da Guerra do Vietnã, e a crise do petróleo batia em cheio nas classes média e mais pobre.
Reagan surpreendeu os EUA e o mundo em pouco tempo. Foi aos poucos usando o carisma para conseguir vitórias importantes no Congresso e nas relações internacionais. Segundo artigo de Eduardo Szklarz, para o site "Aventuras na História", “Reagan ajudou a inventar os anos 80 em questão de meses. Durante os míticos 100 primeiros dias, ele estabeleceu um novo sentimento nacional. Com a máxima “o Estado não é a solução, é o problema”, Reagan lançou uma política econômica conhecida como "Reaganomics", baseada em cortes no orçamento federal e redução de impostos para incentivar a produção e os investimentos.”
Apesar da pinta de caubói e matuto, atrapalhado na língua e na cultura - colecionou várias gafes, principalmente em relação a países com os quais não era familiarizado, inclusive o Brasil - o ator tirou os EUA da recessão, derrubou a inflação e criou 18 milhões de empregos. Como o bolso é a parte do corpo mais sensível do americano, segundo o folclore, os eleitores lhe deram um segundo mandato, sem chances para os democratas. E não se arrependeram. Reagan saiu e propiciou nova vitória para os Republicanos, passando o bastão para George Bush, o pai.
Reagan também demonstrava decisão em situações extremas. Tinha uma habilidade especial para resolver crises. Em 1981, por exemplo, mais de mil controladores aéreos entraram em greve. Reagan lhes deu 48 horas para voltar ao trabalho. Diante da recusa, demitiu todos – e ganhou 67% de aprovação popular. Foi com essa empatia que ele se reelegeu em 1984, ano em que transformou as Olimpíadas de Los Angeles num festival de patriotismo.
Com uma política altamente ideológica, contribuiu para o colapso da União Soviética, que ocorreu em 1989, debelou o comunismo na América Latina e sepultou a Guerra Fria. É famosa uma frase dele, que se eternizou, quando num encontro em Berlim, em 1987, próximo ao muro que dividia a cidade entre o mundo livre e o fechado pela URSS, ele disse: "Tear down this wall!" (Sr. Gorbachev, derrube esse muro!). O Muro de Berlim caiu no dia 9 de novembro de 1989, mesmo dia em que Donald Trump se tornou presidente. Ao deixar a Casa Branca, em 1989, sua popularidade beirava 60% – um feito raro no país. Segundo Szklarz, “O mais impressionante é que, desde então, ela só vem aumentando. Numa pesquisa do Gallup em fevereiro de 2001, Reagan foi eleito o maior presidente da história americana, com 18% dos votos. Ou seja, para grande parte dos americanos, ele é maior que o superpopular Abraham Lincoln, presidente entre 1858 e 1865, ou que George Washington, o herói da independência.”
Certamente, o dia 8 de novembro de 2016 vai entrar para a história dos EUA não apenas por ter eleito o 45º presidente do país, mas também por ser a eleição de uma das candidaturas mais polêmicas e contestadas do mundo moderno. Donald Trump se elege após chegar ao auge de uma campanha explosiva, populista e polarizadora que levou implacável objetivo às instituições e ideais de longa data da democracia americana. A história deu uma oportunidade para Donald Trump. Ele tem quatro anos para mostrar a que veio, num país dividido e com promessas extremamente polêmicas, que terá muita dificuldade para implementar. “A chave do relativo sucesso de Reagan foi a sorte que ele teve com suas limitações”, disse o economista Paul Krugman em artigo no jornal The New York Times.
A perplexidade e até o repúdio à eleição de Trump vão dos eleitores frustrados aos formadores de opinião. Um sentimento de certo modo refletido pelo colunista David Remnick, editor da revista New Yorker, no artigo "An American Tragedy": "A eleição de Donald Trump para a presidência é nada menos que uma tragédia para a república americana, uma tragédia para a Constituição e um triunfo para as forças, no país e no exterior, de nativismo, autoritarismo, misoginia e racismo. A vitória chocante de Trump, sua ascensão à presidência, é um evento doentio na história dos Estados Unidos e da democracia liberal. Em 20 de janeiro de 2017, vamos despedir-nos do primeiro presidente afro-americano - um homem de integridade, dignidade e espírito generoso - e testemunhar a posse de um "cara" que fez muito pouco para desprezar o endosso pelas forças de xenofobia e supremacia branca. É impossível reagir a este momento com nada menos do que repulsa e profunda ansiedade."
Trump, pela idade, provavelmente não tem grandes aspirações políticas, a não ser, provavelmente, concorrer de novo daqui a quatro anos. O povo americano não perdoa quem erra. A pressão sobre ele dos sindicatos, lobbies e da poderosa mídia americana será implacável. Essa a vantagem da democracia estável dos EUA. A avalanche de votos para Trump, em estados-chave - apesar de ter perdido na soma do voto popular - ainda está sendo deglutida. Talvez nem ele esperasse um desempenho tão arrasador. Terá que superar as próprias limitações, a inexperiência política e vencer a resistência dos caciques republicanos, além de tentar explicar que o ódio que semeou não passava de uma rasteira retórica política. Ou ele governa para todos, e abre mão de algumas ameaças que fez, ou vai ter uma crise permanente nos próximos anos.
*O Estado de Crise. Bauman, Zygmunt; Bordoni, Carlo. Zahar, 2016.
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