belgica atentadoA falha de segurança da Bélgica nos atentados que vitimaram 35 pessoas no aeroporto de Bruxelas e num vagão do metrô, no último dia 21, ficou evidente. E levantou uma questão delicada para os vizinhos da União Europeia. A incapacidade da polícia e do serviço de inteligêncxia da Bélgica para investigar, conduzir e conter a ameaça terrorista. O fato desgastou o governo belga e levou dois ministros a pedirem demissão - não aceita - logo após a tragédia.

Esse despreparo ficou mais claro após o governo turco revelar que ano passado extraditou para a Holanda um dos homens que se explodiram no aeroporto belga, por suspeita de terrorismo. E avisou a Europa. O país aparentemente não levou em conta o alerta e falhou em gerenciar uma ameaça real quanto ao risco de um ataque à Europa e ao próprio território com a entrada do suspeito.

Não esquecer que havia um “alerta vermelho” da Interpol sobre ele. E tem mais: quatro dias antes dos ataques, a polícia local tinha terminado uma caçada de três meses, ao prender Salah Abdeslam, o único suposto autor dos ataques de Paris, em novembro passado, que se acreditava estar vivo. Ele está diretamente envolvido na preparação e execução dos atentados a casas noturnas de Paris, em 13 de novembro de 2015. O que faria um país vizinho à França, ameaçado pelo Exército Islâmico, caçando terroristas, e com todas essas evidências de suspeitos transitando pelo território, neste caso?  

Reconhecer o erro

A tragédia no aeroporto de Bruxelas, que matou até agora 35 pessoas e deixou 340 feridos, muitos com gravidade, poderia ser evitada? Difícil dizer. Mas já há um consenso entre os especialistas em segurança da Europa que o ato foi antecipado, devido à prisão de Abdeslam. Muito provavelmente ele e outros terroristas estavam preparando um grande atentado na Bélgica para os feriados da Semana Santa. O alvo deveria ser, como foi, o aeroporto de Bruxelas. A captura de Abdeslam os fez adiantar a ação, que, provavelmente, resultou no atentado daquela segunda-feira. Eles estavam com medo, certamente, que Abdeslam abrisse a boca e contasse os planos, o que levaria a polícia belga a estourar o esconderijo e a frustrar o ataque. Se há um lado bom nessa antecipação, foi o atentado não ter a dimensão que eles pretendiam.

A Bélgica admite que houve erros. Para o ministro da Justiça, Koen Geens “Erros muito provavelmente foram cometidos por nossas agências e neste caso as secretarias têm que assumir suas responsabilidades”. E colocou o cargo à disposição.

A Bélgica, país de 11 milhões de habitantes, está sob tiroteio dos críticos por causa da lenta resposta à ameaça terrorista – especialmente em relação aos cidadãos belgas que viajaram para a Síria – desde o atentado de Paris, em novembro, que deixou 130 mortos. A maioria dos participantes naqueles ataques foi identificada como cidadãos de nacionalidade belga ou francesa que viviam no país, onde os ataques, acredita-se, foram planejados. Mas se deslocavam para a Síria sem grandes percalços.

Os críticos têm argumentado que os sistemas de aplicação da lei e de políticas fragmentadas da Bélgica - afetados em parte por causa de divisões de poder entre os dois principais grupos linguísticos, francês e flamenco - têm ajudado extremistas e gangues criminosas que operam com impunidade próximo à fronteira da França. A grande Bruxelas, por exemplo, é dividida em 19 municípios e seis zonas, longe do apoio policial. A cidade tem perto de 600 conselhos municipais.

"O lugar está repleto de armas e explosivos", disse Christine Fair, especialista em terrorismo da Universidade de Georgetown. "Considerando que no resto da Europa é difícil conseguir essas coisas... Não é uma coincidência que os ataques de Paris foram planejados em Bruxelas."

Desde o atentado de Paris, a Bélgica está sob permanente vigilância. Mas o problema deixou de ser de segurança e passou a ser político, segundo os analistas. As autoridades descreveram como um dos problemas uma miscelânea na aplicação da lei antiterror e os serviços de inteligência do país em desavenças pela escassez de pessoal e pela pressão por resultados.

Haveria divergências entre as forças policiais e a Polícia Federal; entre a Inteligência militar da Bélgica e a Segurança do estado civil, dificultando o fluxo de informações e ações conjuntas. Ora, todos sabemos que nas crises graves uma das condições básicas para ter sucesso é a confiança absoluta dos membros do gabinete de crise e o compartilhamento de informações, todos empenhados no mesmo objetivo e trabalhando para chegar lá. O que na Bélgica, se deduz, não acontece.

Ao mesmo tempo, a divisão do país em tudo, menos no nome, minou as instituições nacionais ou federais - incluindo a polícia, o sistema judicial e os serviços de inteligência. Políticos belgas agora pensam grande, em termos de suas "regiões" ou comunidades linguísticas, em vez de pensarem nos problemas em escala nacional. Os diferentes ramos dos serviços policiais e de segurança têm comunicação deficiente uns com os outros. Hans Bonte, o prefeito de Vilvoorde, uma cidade nos subúrbios de Bruxelas, uma vez chamou as medidas de segurança da Bélgica, de "um exemplo perfeito de caos organizado".

Reportagem assinada por Tim King, no jornal Político, de Portugal, diz que a “Bélgica é um estado falido”. Ainda assim, as autoridades belgas e seus defensores rejeitam como ridículo o rótulo de "Estado fracassado" que alguns críticos têm usado para descrever a nação. "As pessoas devem parar de dar lições à Bélgica," reagiu o Presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker. "Deixe que aquele que estiver sem pecado atire a primeira pedra. Houve o terrorismo na Grã-Bretanha e na Alemanha na década de 1970 e 1980. Houve terrorismo na Espanha, na Itália e muito mais recentemente na França".

Um estopim dentro da cidade

Autoridades acreditam que os ataques de Paris foram em grande parte planejados e conduzidos por militantes moradores do bairro de Molenbeek, na periferia de Bruxelas, que abriga cerca de 100 mil pessoas, muitas delas da segunda e terceira gerações, descendentes de marroquinos, que chegaram durante as décadas 1960 e 1970 para trabalhar na indústria siderúrgica, atualmente extinta. Esses jovens, pouco integrados na sociedade ocidental, pela dificuldade de emprego e até mesmo pela crença que professam, seriam facilmente cooptados pelos terroristas do exército islâmico, como aconteceu até mesmo com um estudante brasileiro.

Como se forma um terrorista?

Apesar da comunidade tentar integrar jovens muçulmanos em Bruxelas, em seus esforços enfrentam desafios assustadores. "Estes jovens são belgas, nascem aqui, mas eles sentem que não são reconhecidos como belgas," diz Bachir M'Rabet, um coordenador da juventude no centro de comunidade Molenbeek Le Foyer. Como tal, grupos jihadistas oferecem um sentimento de pertencimento a alguns daqueles jovens, que vivem sem rumo. "Eles procuram uma identidade em outro lugar."

Para complicar o trabalho da polícia, alguns dos jovens em Bruxelas se afastaram do crime comum para o extremismo violento, incluindo aqueles recrutados para atividades jihadistas na prisão - como alguns dos suspeitos em ataques Bruxelas de terça-feira, e alguns daqueles que participaram dos ataques a Paris em novembro passado.

Embora os especialistas de inteligência, tanto os EUA quanto na Europa, minimizem as eventuais falhas da inteligência belga, desde os ataques de Bruxelas, essas falhas que culminaram no ataque de terça-feira parecem tristemente compreensíveis para muitos moradores. Em entrevistas à revista Time, funcionários do distrito de Molenbeek e residentes que vivem há muitos anos no bairro descrevem um mundo paralelo, em que muitos moradores daquela região sentem-se tão abandonados pela polícia e pelos serviços públicos que mal se sentem parte da Bélgica em tudo, apesar de nascidos lá. Eles não se sentem belgas, dizem.

Nesse sentido têm sofrido ao longo das décadas, assim como as gerações que nasceram e se criaram no bairro. "Há muitas pessoas que não vivem na sociedade, mas vivem ao lado da sociedade", disse o prefeito de Molenbeek Mayor Françoise Schepmans. "Por isso, é fácil se esconder neste bairro."

A ausência de surpresa também faz sentido, porque muito antes do surgimento do jihadismo, Molenbeek tinha adquirido uma reputação de ilegalidade.  A maioria das pessoas em Bruxelas têm muito pouca compreensão do que significa o jihadismo que emerge do Iraque, da Síria e, no fim do ano passado, em Paris, , mas eles já estavam cientes de que Molenbeek tinha altos níveis de pequenos crimes: assaltos, tráfico de drogas e roubos. Sem imaginar no que isso poderia se transformar.

James Bond não poderia ser um belga

Em uma entrevista em Bruxelas em Janeiro, Alain Winants, ex-chefe do Serviço de Segurança do Estado da Bélgica entre 2006 e 2014, disse à revista Time que os políticos do país durante anos marginalizaram funcionários da inteligência, e que a agência foi prejudicada no seu trabalho. "Não havia apenas uma falta de interesse, mas a desconfiança do mundo político nos trabalhos de inteligência", disse Winants, que agora é um promotor de justiça do Supremo Tribunal. "Era impossível fazer o que tinha que fazer", disse ele, acrescentando com uma risada, "James Bond nunca poderia ser um belga."

A polícia belga e funcionários de inteligência também têm enfrentado anos de cortes no orçamento e falta de pessoal, bem como um sistema político fraturado, com cismas profundos entre as populações de língua francesa e de língua holandesa do país. Em Bruxelas, uma cidade de 1,1 milhão de pessoas, há seis forças policiais separadas. Enfrentando uma profunda recessão, o governo em 2014 descartou planos para impulsionar o pequeno orçamento de segurança de US$ 217 milhões, concordando em aumentar os fundos para US$ 434 milhões de dólares, somente após os ataques de Paris, expôs as redes de terror profundas em Bruxelas.

               "O terrorismo é uma forma de controle da mente sobre populações inteiras que sequestra certas peculiaridades do nosso cérebro que diminuem a sua capacidade racional para avaliar o risco". (Ian Robertson)

Por que funciona nos EUA

A Europa não fez grandes alterações à forma como a inteligência é compartilhada, como as reformas feitas nos EUA após o fracasso para conectar e descobrir informações sobre os sequestradores do 11 de setembro de 2001. Os EUA criaram o  Escritório do Diretor de Inteligência Nacional e Centro Nacional de Contraterrorismo após os ataques dos aviões e reforçaram a quantidade de informações sobre terroristas suspeitos que abastecem as bases de dados centrais.

Os ataques mortais em Paris e Bruxelas renovaram as chamadas para os países europeus compartilhar mais informações sobre as redes criminosas de terrorismo. Nos últimos anos,  as agências de inteligência francesas têm aumentado a cooperação com as autoridades norte-americanas e britânicas, por exemplo. Mas os serviços de segurança alemães estão limitados pela legislação nacional, não podendo compartilhar alguns dados sobre cidadãos alemães.

Mas a Bélgica sai chamuscada desse atentado. Publicações britânicas e americanas não relevaram a imagem do país, mesmo num momento de dor: “Ataque em Bruxelas: as atrocidades cometidas pelo Isis expuseram falhas da Bélgica como uma sociedade” (The Independent); Belgium’s Security Failures Made the Brussels Attacks All But Inevitable (Time); Autoridades belgas reconhecem erros no ataque a Bruxelas (New York Times). A Bélgica tem se destacado como uma incubadora do jihadismo e não era um alvo de ataques terroristas. Segundo o jornal britânico, esse ataque fugiu ao padrão.

Embora o terrorismo esteja hoje confinado a uma área específica do gerenciamento de crises, classificado como mais um “cluster” de crise pela ONU, as ações preventivas em sua maior parte são informações reservadas dos países, porque envolvem alto nível de segurança. Mas cada vez que um atentado impacta o mundo pela forma vil dos ataques, contra inocentes, não há como evitar a abordagem do tema sob o aspecto da gestão de riscos.

Bruxelas tornou-se, por complicadas razões, o epicentro do jihadismo na Europa. O atentado ao jornal Charlie Hebdo foi discutido e contratado em Bruxelas. O atentado a casas noturnas de Paris, em novembro também foi tramado e executado por terroristas que moravam na Bélgica. E agora se descobre que o “inimigo morava ao lado”, ou seja, não foram infiltrados, muito menos refugiados, de quem os europeus cada vez têm mais medo, que entraram na Bélgica, planejaram e executaram o atentado. Gente de casa, vivendo na periferia de Bruxelas, esteve o tempo todo montando o cenário da tragédia. A polícia passou esses quatro meses correndo atrás. Mas, como nas grandes tragédias que ocorrem por detalhes que passaram despercebidos, chegou atrasada. Um case lamentável de falha grave na gestão de riscos.

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