Exatamente um ano depois de uma das maiores tragédias da Coreia do Sul em tempos de paz, a rotina dos barcos e navios que partem dos portos em direção a cidades e ilhas mudou completamente. Estivadores preparam um ferryboat para uma viagem de quatro horas e meia para Mokpo, no sudoeste do país, e fazem a checagem da carga nos porões do navio. Caminhões são amarrados no convés e a tripulação entregou às autoridades portuárias o atestado de peso da carga.
A norma de segurança, uma tentativa de evitar a sobrecarga perigosa nos barcos e navios, é uma das medidas da série de mudanças regulatórias implantadas em consequência das graves falhas ocorridas no naufrágio do ferryboat Sewol, há um ano, segundo reportagem publicada no The New York Times (13/04).
Em 16 de abril de 2014, o ferryboat Sewol iniciou uma viagem de recreio, a partir do porto de Incheon, no noroeste do país. Transportava 459 passageiros, entre eles 325 alunos e 15 professores da Escola Secundária Danwon, em Ansan, próxima a Seul. Havia cerca de 30 tripulantes a bordo e mais de 150 veículos no compartimento de carga. O destino era a ilha de JeJun, onde os estudantes iriam passar o feriado. As idades variavam de nove a 16 anos.
Antes de chegar ao porto, o navio começou a naufragar, provavelmente por um deslocamento irregular da carga dos porões, e os estudantes receberam comandos errados da tripulação. Sem preparo e treinamento, estabeleceu-se o caos no resgate. A tripulação mandou as crianças ficarem nas cabines, ao invés de irem para o convés, onde o resgate e o salvamento seriam mais fáceis, ordem que, constatou-se depois, foi fatal para a maioria das mortes dos adolescentes. Quem obedeceu aos equivocados comandos da tripulação, em sua maioria estudantes, morreu preso nos compartimentos do ferryboat, que inclinou-se e naufragou rapidamente. Mais de 100 pessoas conseguiram se salvar pulando nas águas geladas e foram resgatadas.
O capitão do navio, a exemplo do que havia feito Francesco Schettino, o capitão do navio de cruzeiros Costa Concordia, em janeiro de 2012, na Ilha de Giglio, costas da Itália, fugiu do navio, misturando-se aos passageiros resgatados. Reconhecido, foi imediatamente preso. Tripulantes também se preocuparam mais em se salvar do que ajudar as crianças a sair do navio.
Cadeia de erros
O naufrágio que causou comoção na Coreia do Sul e até hoje gera protestos dos parentes, ocorreu por uma cadeia de falhas humanas, omissão das autoridades, combinadas com a irresponsabilidade e ganância dos empresários proprietários do navio. Não bastasse tudo isso, o resgate demorou 30 minutos para começar, numa operação lenta e sem coordenação.
“No passado, nós não pesávamos caminhões e nós não sabíamos o quanto os navios estavam transportando em carga", disse Oh Myung-o, um inspetor em JeJun, destino do ferryboat que naufragou. Ele está de volta ao trabalho, após ter enfrentado um julgamento, junto com mais quatro colegas, por não terem impedido a sobrecarga no navio afundado, uma das mais de dez falhas graves constatadas após o naufrágio. “Nós não suspeitávamos que o Sewol faria o jogo sujo com a sua água de lastro. Estávamos errados”, disse ao The New York Times.
Como os promotores descobriram mais tarde, o Sewol estava carregando duas vezes o seu limite legal de carga em sua viagem final, tendo despejado a maior parte da água de lastro que teria ajudado o ferryboat a estabilizar. Fraudou normas de segurança, para ganhar mais espaço com a carga. E ninguém fiscalizou.
A sobrecarga ajudou a condenar o ferry quando fez uma curva acentuada em correntes perigosas. Mal acomodada e pesando mais, o deslocamento da carga ajudou a afundar o navio. Mas esse foi apenas um dos inúmeros pecados de violação da lei, tão graves que fizeram a presidente da Coreia do Sul, Park Geun-hye, admitir que houve uma terrível cadeia de corrupção e omissão que contribuiu para o naufrágio.
A presidente da Coreia do Sul assumiu a culpa pelo naufrágio. Chorou em público e pediu perdão aos parentes das mais de 300 pessoas que morreram no acidente. Todos falharam e, por isso, uma das providências imediatas foi extinguir a Guarda Costeira, que não cumpriu o papel de fiscalizar o ferry boat.
Um ano depois, muitos especialistas de segurança e aqueles que trabalham na indústria naval dizem que mudanças importantes na legislação foram feitas, incluindo a aprovação de uma lei para proibir funcionários do governo de aceitarem presentes caros e outra para reprimir empresários cujas empresas estejam envolvidas em grandes catástrofes. Como foi o caso da proprietária do Sewol.
Outra lei foi aprovada depois que promotores constataram que a família proprietária do Sewol tinha desviado ilegalmente fundos da empresa de ferry, forçando seus gestores a sobrecarregar os navios de propriedade, violando medidas de segurança. Aquele ferry boat havia viajado 131 vezes durante um ano com excesso de carga, sem que fosse notificado, o que suspeitou-se, não aconteceu, possivelmente, por propinas pagas a funcionários públicos.
Mancha na reputação
A tragédia das crianças e adolescentes da Coreia do Sul é uma mancha na reputação do país considerado disciplinado, rigoroso e modelo de organização. Em 60 anos, conseguiu sair da lista dos países atrasados e pobres para o nível dos “tigres asiáticos”, desenvolvido e com um dos melhores padrões de vida e de educação do mundo.
Os críticos do governo e principalmente os parentes das crianças, que não perdoam o governo pelas falhas e fizeram inúmeras manifestações durante os últimos 12 meses, dizem que o governo está mais interessado em escapar ou apagar a tragédia que ameaçava tornar-se o seu maior legado (negativo) do que realizar uma investigação séria sobre o desastre e os erros no resgate, que teria sido a causa maior das mortes dos jovens. Muitos pais trocaram mensagens pelo celular com os filhos, durante o confuso e lento resgate das vítimas, enquanto os filhos presos nos compartimentos não sabiam como escapar. As mensagens trocadas são o maior testemunho de como as falhas graves contribuíram para a morte da maioria das vítimas.
Neste primeiro ano, certamente os protestos que periodicamente têm pipocado no país, serão mais intensos. Enquanto isso, o capitão fujão, para quem foi pedida a pena de morte, acabou sentenciado em novembro de 2014 a 36 anos de prisão, pena máxima na Coreia do Sul. Pouco antes do julgamento, os pais dos jovens que morreram tentaram arrancar o capitão das mãos da polícia para fazer justiça com as próprias mãos. Ele foi responsabilizado pelo juiz pelas mais de 300 mortes, por ter abandonado o navio e não ter coordenado o resgate com seus comandados. Toda a tripulação do ferry boat foi indiciada e pegou penas de prisão, conforme o grau de responsabilidade.
A tragédia do Sewol, que aconteceu por falhas gritantes de gestão de riscos e gestão de crises ficará como uma mancha na história da Coreia do Sul, particularmente na do transporte do país.
No último fim de semana, milhares de pessoas, incluindo 70 pais das vítimas do ferry Sewol, rasparam suas cabeças em protesto, marchando pelo centro de Seul exigindo que uma nova investigação seja aberta. Ou seja, eles não estão satisfeitos com os indiciamentos.
Enquanto isso, num gesto que alguns viram como um esforço para amenizar as críticas que recebe, diz o The New York Times, a presidente coreana – cujos índices de aprovação nunca se recuperaram após o naufrágio – anunciou nesta segunda-feira, que o governo iria considerar a onerosa tarefa de içar o ferryboat Sewol do local do naufrágio. Os corpos de nove passageiros – quatro deles estudantes de ensino médio – nunca foram encontrados.
“Durante um ano, temos orado e implorado a eles para ajudar a encontrar nossos entes queridos”, disse Lee Keum-hui, a mãe de um adolescente, cujo corpo ainda está desaparecido. “Mas nada mudou para nós”.
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