Lindy_chamberlainA Austrália tem o seu caso Escola Base, se assim podemos classificar uma sucessão de erros da polícia, mídia, opinião pública e autoridades, que culminou num calvário de 32 anos para um casal. E a condenação de inocentes.

É um drama que tem todos os ingredientes do caso Escola Base (ver abaixo), ocorrido em S. Paulo, em 1994. O enredo dessa novela da vida real australiana já virou filme e inúmeras reportagens e livros.

Em Uluru, no outback australiano, território sagrado para os aborígenes, em 17 de agosto de 1980, ocorreu o desaparecimento de um bebê, de nove semanas, chamado Azaria Chamberlain, de uma tenda dos seus pais, num camping próximo às montanhas. Azaria teria sido levada por um dingo* – um cachorro selvagem das estepes australianas. Seu corpo nunca foi encontrado. Essa sempre foi a versão dos pais.

A história de Azaria também se assemelha ao da menina Madeleine McCann, de 4 anos, desaparecida de um resort, num balneário de Portugal, em 2007, enquanto seus pais passavam férias, e até hoje desaparecida.

A mãe de Azaria, Lindy Chamberlain, apesar de sempre alegar que a filha foi levada pelo dingo, visto por ela rondando a barraca, foi acusada de mentir, execrada pela polícia e pela mídia; julgada, condenada por assassinato e enviada para a prisão. O filme sobre ela, "Um Grito no Escuro", estrelado por Meryl Streep, gerou milhares de piadas: "Um dingo está com o meu bebê" , era uma delas.

História sem fim

Na semana passada o pesadelo pelo menos teve um fim. Lindy e seu ex-marido, Michael, finalmente receberam, em 11 de junho, dia em que a menina completaria 32 anos, o que sempre tentaram provar: uma certidão de óbito confirmando que a causa da morte de Azaria decorreu do ataque do animal. Mas o tema certamente ainda vai render muito material.

Mídia e analistas jurídicos de todo mundo perguntam: por que demorou três décadas, dezenas de milhões de dólares, um caso criminal que mereceu apelo na Suprema Corte da Austrália, uma comissão real e quatro inquéritos para estabelecer a inocência de Lindy Chamberlain? A pergunta é de Julia Baird, jornalista australiana, autora de “Media Tarts: How the Australian Press Frames Female Politicians”, que escreveu artigo no New York Times sobre o caso.

Nesse período, a população da Austrália foi de de 14,5 milhões para quase 23 milhões. Segundo Baird, o caso é um exemplo espetacular da pobreza da ciência forense, uma síndrome, sobre "mães demoníacas" e suspeitas de religiosidade - os Chamberlains são membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia. O caso foi erroneamente retratado como um assassinato para um ritual religioso. Até rumores de que Azaria significava "sacrifício no deserto", em hebraico, e não "abençoada por Deus" circularam.

Na época, foi realizada uma grande varredura no deserto para achar sinais do bebê. Roupas da menina, com resquícios de sangue, teriam sido encontradas a quatro quilômetros da tenda. Dois anos antes do desaparecimento, o xerife daquela região havia escrito às autoridades alertando para o perigo de dingos se aproximarem de zonas habitadas e causarem uma tragédia. Isso não foi levado em conta, no processo. Uma jaqueta, que os pais alegavam o bebê vestia, foi descartada pela polícia. Só foi achada em 1986, nas montanhas, próxima a um habitat dos animais.

A maioria dos australianos seguiu a mídia: pensaram que o dingo era uma desculpa esfarrapada. Segundo Baird, “poucas pessoas, exceto os guardas do parque, acreditavam que um dingo atacaria um bebê, e as evidências dos indígenas, de pegadas perto da barraca, foram desprezadas. Em uma pesquisa de 1984, 76,8 por cento dos australianos admitiam que Lindy Chamberlain era culpada, e a investigação fez pouco para mudar as suas mentes”.

Hoje, os australianos estão convencidos de que os dingos podem atacar os humanos. Talvez na época não quisessem admitir, porque o animal era um representante da fauna australiana e o ataque iria provocar sua caçada. Entre 1996 e 2001, houve 39 ataques em humanos por dingos da Ilha Frazer, um dos quais resultou na morte de um garoto de nove anos.

Segundo Julia Baird, além dos erros no processo, “ a mídia se encarregou de construir a figura de Lindy Chamberlain como a mãe desnaturada, meio bruxa. Achavam-na muito "sexy" e "fria". Sua postura no tribunal, quando acusada, com aspecto frio, sob grandes óculos escuros com um corte curto de cabelo, ombros nus, bronzeados, um guarda-roupa expansivo e seu estoicismo se encarregaram do resto”.

Quando ela não chorou na hora, ninguém imaginou que poderia ter sido vítima de choque ou trauma, diz a jornalista. “Pior ainda, ela foi acusada de fazer pose para as câmeras, constantemente focadas no seu rosto. Ela estaria mais interessada em posar com olhar bonito do que na morte de sua filha”.

Para Baird, “Esta foi uma mulher, como a acusação disse, capaz de matar um bebê com uma tesoura de unhas, no banco da frente de seu carro, antes de empalhar o corpo para colocá-lo numa câmera. Quando um perito forense afirmou que havia manchas de sangue na frente do carro do Chamberlain, os acusadores vibraram. E comemoraram: Culpada! As pessoas cuspiam nela, quando entrou na sala do tribunal. Passaram-se muitos anos para se verificar que as marcas no carro eram de um spray químico e de um leite antigo, e não sangue.”

Quando o filme "Um Grito no Escuro" foi lançado em 1988, apresentou um desafio significativo para a opinião pública. Ele surgiu na esteira de uma comissão que suspeitou de sérias trapalhadas nas provas apresentadas pela polícia e o judiciário e anulou a condenação de Lindy Chamberlain, que ficou presa três anos. Ela e o marido foram absolvidos das acusações. Em 1992, ela recebeu US$ 1,3 milhão do governo australiano como compensação por erro processual.

O filme ofereceu um retrato simpático de uma mulher atingida por uma tragédia inexplicável e, em seguida, acusada de um crime também inexplicável. Até então, ela já tinha dado à luz na prisão ao quarto filho, que morou com os pais adotivos até que a mãe fosse libertada. Após o filme, muitas pessoas escreveram cartas questionando a condenação. Somente após o quarto inquérito, e um dos processos mais longos da história da Austrália, uma médica-legista fez a última conclusão de que um dingo poderia ter realmente levado o bebê e causado sua morte.

Segundo Blair, “quando a médica-legista declarou entre lágrimas, semana passada, os Chamberlains inocentes, e deu-lhes o certificado da morte correta de Azaria, houve um sentimento surpreendente de tristeza e vergonha na Austrália. Comediantes, que fizeram piada, anos antes, com o fato, divulgaram um pedido de desculpas públicas a Lindy Chamberlain; canais de TV noticiaram o fato com ar grave e emocional.

"O que ocorreu a 17 de Agosto de 1980 foi que pouco depois de a sra. Chamberlain ter colocado Azaria na tenda, um dingo ou dingos entraram na tenda, levaram Azaria e carregaram-na e arrastaram-na imediatamente da zona", afirmou a legista Elizabeth Morris.

"Estamos aliviados e felizes de chegar ao fim desta saga", disse Lindy Chamberlain-Creighton à imprensa, ao deixar a corte. "A Austrália não poderá mais dizer que dingos não são perigosos."

O historiador australiano Michelle Arrow, que também co-editou um livro sobre o caso, acredita que esse foi um espetáculo envolvente, que ainda tem uma "cicatriz psíquica" para curar. “Parte da caça às bruxas, certamente, era sobre a maneira dos europeus brancos verem a terra indígena, como um lugar remoto onde as coisas sinistras aconteceriam, um lugar de magia negra, onde uma jovem mãe teria cortado a garganta do seu bebê como um sacrifício a Deus”.

A jornalista australiana admite agora, 32 anos depois, que “nossa vontade de acreditar foi um fracasso coletivo de empatia. Partimos do pressuposto de uma mulher inocente como culpada. Nós atiramos pedras em uma mãe de luto. E uma nação fundada por presos de alguma forma se esqueceu da presunção de inocência”. Ela abre o artigo com uma confissão: “Ela é inocente. Nós somos culpados”. Ou com a conclusão um tanto sinistra do jornalista Tim Flannery, ao analisar o drama dos Chamberlain, no The Guardian: "A Austrália é uma terra de perigosas criaturas". Só os australianos não sabiam. (JJF)

* dingo (Canis lupus dingo) é uma sub-espécie de lobo, assim como o cão doméstico, originária da Ásia e que se encontra atualmente em estado selvagem na Austrália e sudeste asiático. A origem dos dingos permanece incerta mas crê-se que resultem de uma das primeiras domesticações do lobo. Os dingos pesam entre 10 a 24 kg e apresentam pelo curto e amarelado. (Fonte: Wikipedia)

Foto: Patrina Malone/AFP/Getty Images

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