O governo americano foi surpreendido pelo vazamento de 251 mil documentos secretos do Departamento de Estado pelo site WikiLeaks. Dirigido pelo jornalista australiano Julian Assange, esse site se especializou em vazar documentos considerados confidenciais, desde que tenham interesse político. Eles fazem o marketing com uma chamada tentadora, para quem gosta do tema: se existe algo sigiloso, que envolva política, governos, conexões internacionais, estamos prontos para divulgar. , que não concorda muito com a tese, considerou o vazamento uma ameaça à política externa americana. Tentou embargar a divulgação dos documentos, alegando razões de estado e segurança, mas já era tarde. Os jornais New York Times, The Guardian, Der Spiegel, El País e Le Monde que receberam os documentos do site, com prioridade, já tinham divulgado partes do explosivo material. O Wikileaks funciona assim. Consegue os documentos sigilosos, mas tem o respaldo ou conivência da grande mídia para espalhar a bomba.
Para quem não sabe, o WikiLeaks, há alguns meses, vazou 90 mil documentos secretos da guerra do Afeganistão, o que também levou o governo americano a protestar. Obama avocou a segurança dos soldados americanos no exterior para tentar dissuadir a publicação. Não teve êxito. Os escândalos escancarados pelo site, no caso da guerra, vão desde ataques mortais a populações civis, por helicópteros e aviões americanos, até abusos de soldados contra prisioneiros. A resposta dos EUA foi burocrática e evasiva. A contundência só veio em forma de condenação pelo vazamento. A Secretária de Estado, Hillary Clinton, condenou a divulgação de informações que podem comprometer toda a política de segurança dos EUA.
Afora os propósitos do editor do site, que realmente parece gostar de ver o circo pegar fogo, o que de tão secreto contêm os documentos vazados para preocupar o governo americano? Certamente existem documentos sigilosos, principalmente aqueles que se referem a ações relacionadas com outros países e os ligados à segurança nacional ou de instalações militares e que constituem segredos de estado.
Mas até agora não apareceram informações tão escandalosas que ameacem a estabilidade do país ou o mandato do presidente. Se os segredos que a burocracia diplomática guarda se limitarem às fofocas sobre os hábitos sexuais de Berlusconi, a empáfia de Sarkozy e as posições do Brasil frente aos Estados Unidos, não tem qualquer importância o vazamento. Apenas fofocas de diplomatas. O medo dos governantes e negociadores é que venham à tona exatamente aquelas conversas de bastidores, quando ninguém aguenta uma gravação. Nesses encontros, sempre saem comentários que fariam apenas corar os diplomatas e governantes. Nada mais.
Em 6 de dezembro, apareceram entre os documentos vazados indicações de lugares estratégicos dos EUA e outros países, até mesmo o Brasil, que merecem contínua vigilância, por representarem alvos de terroristas. As autoridades condenaram essa divulgação, sob o argumento de que fornecem indicações precisas de alvos para os terroristas. Essa é uma questão bastante polêmica, também.
Os governos em geral têm medo do passado. Quando a poeira baixa e a história resolve escancarar sigilos, o filme "o passado me condena" parece incomodar governantes pelas decisões tomadas nos gabinetes oficiais. No caso dos EUA, ninguém desconhece a sua histórica vocação para se imiscuir nos negócios de outros países, principalmente aqueles que não se alinham com a sua política.
Durante a guerra fria, ninguém desconhece o papel dos Estados Unidos, principalmente na década de 60, para desestabilizar regimes políticos democráticos na América Latina, sob a bandeira de proteger o mundo contra o comunismo. No Brasil, o golpe de 64 foi acompanhado de perto pelos americanos e as ações todas monitoradas por Washington, que respaldou e deu cobertura à intervenção militar contra João Goulart. Assim também em outros países do Continente. Talvez os bastidores desse período é que hoje envergonhem os falcões de Washington.
Mas diante do vazamento proporcionado pelo WikiLeaks, cabe perguntar. Governos deveriam ter tantos segredos, a ponto de não suportarem a abertura de documentos, como acontece agora com os Estados Unidos? Por princípio, todas as ações dos governos deveriam ser públicas. Ressalvados aqueles assuntos realmente secretos e que devem permanecer em segredo pelo menos por 50 anos, como prevê a lei brasileira, não deveria haver temas sigilosos nas ações dos governantes.
Autoridades não gostam da revelação dos bastidores. Até porque aqueles tapinhas nas costas dos encontros multilaterais não passam de pantomima teatral para a mídia e os incautos. Por trás da cortina, eles não dissimulam as diferenças, como agora aparece nos documentos vazados pelo WikiLeaks, que revelou ciúmes da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, em relação à preferência de Obama pelo presidente Lula. Ou comentários jocosos dos americanos sobre o então presidente da Rússia, Vladimir Putin.
Mas até que ponto, sob a bandeira da transparência, jornalistas e sites podem revelar segredos de estado, a ponto de ameaçar relações bilaterais de países e até a segurança de pessoas? Essa é uma resposta que nem os governos e os jornalistas conseguem dar com segurança. As novas mídias representam um desafio para os profissionais usarem com responsabilidade o direito de informar. Representa também uma ameaça aos governos pouco transparentes, até porque o WikiLeaks, até agora, não nos brindou com documentos secretos de regimes ditatoriais como China, Coreia do Norte ou Cuba. Só aparecem documentos de regimes democráticos. De qualquer modo, em torno desse tema, não se conseguiu ainda chegar a um consenso.
Governos e autoridades precisam se acostumar com a possibilidade de qualquer informação, mesmo sob o rótulo de "top secret" poder vazar. Não existem mais segredos num mundo em que qualquer cidadão com um celular pode enviar imagens e textos de e para qualquer lugar do mundo. Não há limites para vazamentos. Mas não cabe aqui matar o mensageiro.
Apesar de Assange ser hoje um dos jornalistas mais temidos da internet e figurar na lista da revista Forbes como um dos homens mais poderosos do mundo, os governantes não precisam se apavorar com a próxima série de vazamentos do site. Basta que suas ações possam estar à prova do escrutínio público, uma prática que deveria ser a rotina de quem passa o dia tomando decisões que interferem no destino e no futuro de tantas pessoas.
Prisão do mensageiro
Em 7 de dezembro, o jornalista Julian Assange foi preso na Inglaterra, ao se entregar, depois de saber que era procurado pela Interpol, acusado de estupro e abuso de menor, na Suíça. A prisão do jornalista, que alega inocência e sexo consentido, diante das acusações, não significa que o WikiLeaks acabou sua missão. O site foi perseguido e teve seu servidor bloqueado nos Estados Unidos e outros países, que se sentiram atingidos pelos vazamentos. Mas no mundo conectado em que vivemos, há risco de que com esse ou outro nome, documentos secretos continuem a aparecer, para desespero dos governantes e diplomatas. (08/12/10)