igrejacatOs especialistas em crises de imagem asseguram que nenhuma organização está imune à crise. A máxima serve como uma luva para uma das mais tradicionais instituições da história, a Igreja Católica. Em dois mil anos certamente enfrentou crises graves.

Papas tiveram que fugir para outros países. Seus dogmas foram questionados pela Reforma de Lutero, no século XVI. Sua trajetória registra a página negra da inquisição. Agora, a Igreja Católica se vê diante de uma avalanche de denúncias que não poupam nem a figura, vista como intocável, do Papa Bento XVI.  

Notícias sobre escândalos sexuais na Igreja não são recentes. Nos Estados Unidos, desde 2002 a Igreja Católica tem feito acordos judiciais com vítimas de abusos ocorridos em educandários e igrejas do país. Nas dioceses de Los Angeles, Boston, Portland e pequenas cidades a Igreja foi condenada a pagar indenizações de US$ 1,2 bilhão para 2.250 vítimas. A justiça americana identificou cerca de 50 propriedades da Igreja disponíveis para venda com vistas a cobrir as ações de indenização.

Esses casos foram tratados isoladamente e pareciam não atingir diretamente o Vaticano, por se tratar de acusações contra padres ou dioceses, em particular. Agora é diferente. Após os escândalos nos Estados Unidos e em outros países, o fato mais recente aconteceu na Irlanda. No fim do ano passado, o Ministério da Justiça da Irlanda divulgou relatório sobre abusos cometidos por padres contra crianças entre 1975 e 2004. Em nove anos de investigação, existem evidências de que milhares de crianças e jovens sofreram abusos na Irlanda. As ações arrolam quatro bispos.

O relatório critica a Igreja Católica por ter priorizado a preservação da própria imagem, a fim de evitar um escândalo, e não a proteção das vítimas e a punição dos culpados. O Papa divulgou uma carta com desculpas pelos abusos na Irlanda, o que não amenizou as críticas, principalmente na imprensa da Grã-Bretanha, bastante severa em relação ao comportamento dos líderes católicos no episódio.

O arcebispo de Canterbury, em Londres, Rowan Williams, quebrou o protocolo e afirmou na sexta-feira santa que a Igreja Católica na Irlanda perdeu toda a credibilidade. Pelo exagero, acabou se desculpando um dia depois.

Em Milwaukee, Wisconsin (EUA), entre 1950 e 1974, 200 meninos surdos sofreram abusos do Pe. Lawrence Murphy. Membros da diocese teriam descoberto e denunciaram o padre à Santa Sé, em Roma. O New York Times  divulgou documentos que mostram que o Vaticano foi alertado e teria ignorado as denúncias. O agravante é que o cardeal responsável em 1996 por essa área se chamava Joseph Ratzinger, ou seja, o Papa Bento XVI. O padre acusado nunca foi punido pela Igreja, nem denunciado às autoridades e morreu com 72 anos.

Estados Unidos e Irlanda, como se vê agora, eram apenas a ponta do iceberg. Denúncias de abusos sexuais contra menores também apareceram na Itália, Alemanha, Áustria, Austrália, Espanha, Suíça, Holanda e Brasil. Outro relato na Alemanha também chega perto de Bento XVI. Em 1979, um padre acusado de abuso sexual contra um menor foi transferido para a arquidiocese de Munique. O arcebispo era Joseph Ratzinger (Bento XVI), que concordou com a transferência, apesar de passado do religioso. Pelo menos até 1998, o acusado voltou a cometer os mesmos crimes após transferências sucessivas de paróquias.

A maneira como a Igreja vai administrar essas acusações irá determinar como ela se sairá desta crise, uma das mais graves da instituição, nos últimos anos. A Igreja não tem tradição de trabalhar com transparência. Mas essa crise parece bater no “core business” da instituição. O jornal Corriere dellla Sera, da Itália,  ao noticiar o escândalo, disse na semana passada que “a maré de denúncias nos EUA e Europa finalmente alcançaram a janela acima da Praça de S. Pedro (o Papa Bento XVI) com força destrutiva”.

As reações da Igreja, por meio do Osservatore Romano e de porta-vozes isolados, foram conservadoras e reativas. Os pruridos provocados pelo incômodo tema, ao ser abordado pela mídia, principalmente em países de tradição católica, como Brasil, Espanha e Itália, também não contribuem para esclarecer. As raras manifestações de autoridades eclesiásticas voltam-se mais para desqualificar críticas ao pontífice, do que para esclarecer ou lamentar as acusações. Ou seja, de início a Igreja preferiu o silêncio conformado ao enfrentamento da crise.

Como a Igreja administra a crise

Sob os princípios de gestão de crise, a Igreja trilha caminhos equivocados. O primeiro ao fazer pouco caso das denúncias e evidências de crimes contra crianças. A omissão teve o propósito de abafar o escândalo e preservar um desgaste maior da imagem da Instituição. Se a Cúria Romana soube dos fatos e se omitiu, preservando os religiosos acusados, para evitar a publicidade do escândalo, errou. E induziu toda a instituição ao erro, porque, ao não denunciá-los, minimizou os abusos, contribuiu com a impunidade, afrontou a honra das crianças ultrajadas e permitiu que o fato se repetisse em outros locais.

Há um consenso entre teólogos, especialistas em crises de imagem e autoridades que a Igreja passou “uma sensação de traição” para as vítimas. A inação do Vaticano e, nos casos divulgados, do próprio Pontífice, quando Cardeal na Alemanha e no Vaticano, teria permitido a continuidade dos abusos. “A menos que o Papa possa convencer crentes e críticos de que ele está pronto para esclarecer os segredos vergonhosos, demitir todos os culpados pelos escândalos e tomar medidas efetivas para preservar futuros abusos de crianças dentro da Igreja, seu pontificado pode estar fatalmente comprometido, disse o jornal The Times, de Londres, em editorial no último dia 20 de março.

A imprensa, ao denunciar os fatos está cumprindo sua parte. Ninguém está atacando a Igreja como instituição. Isso pode acontecer com qualquer tipo de organização e com qualquer comunidade religiosa. A tradição secular da Igreja Católica ou o peso da autoridade papal no mundo não dão direito a autoridades eclesiásticas de se omitirem, quando há crimes, principalmente contra crianças. Não é porque agora se desvenda a verdade - por 50 ou 60 anos mantida sob o tapete – que vai se negar a importância histórica da instituição. É a forma de lidar com os abusos, denunciados por ex-alunos e até por outros religiosos, que expôs a vulnerabilidade da Igreja em lidar com suas próprias mazelas. O escândalo não foi inventado pela mídia, mas relatado pela mídia.

Os deslizes e crimes cometidos por religiosos, se de um lado desgastam a imagem da Igreja, de outro não desqualificam sua importância histórica, nem seu valor como instituição. Como em qualquer organização, os “pecados” de determinados membros não desqualificam toda a comunidade. Os padres pedófilos são a contrafação de personagens como Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, São João Bosco, São Vicente de Paula, Santa Terezinha, João XXIII, D. Paulo Evaristo Arns e tantos outros religiosos que escreveram uma belíssima página na história da Igreja. Não é a doutrina nem o capital religioso que estão sendo julgados, mas atos de gestão, omissões, que degradaram vítimas inocentes. Como diz o New York Times, o escândalo está testando a confiança do povo no líder católico.

O segundo erro da Igreja foi não apresentar à sociedade e não entregar às autoridades os religiosos acusados. No mínimo afastá-los. Essa não era uma prática da Igreja. Os padres continuaram a ter contatos com jovens, com a única restrição de mudar de cidade. Tapou-se o sol com peneira. Esse ato de cumplicidade e corporativismo arranhou a imagem da Igreja. A punição exemplar, se não banisse, teria pelo menos desestimulado outros abusos. A omissão manteve os crimes sob o manto do sigilo e da impunidade.

A conivência e silêncio dos superiores permitiu a impunidade, um erro que está custando caro à Igreja. Retórica e frases de efeito podem render manchetes, mas não resolvem a crise. O Vaticano não pode colocar seu poder, tradição ou pseudo-intocabilidade acima do direito das vítimas e seus familiares de denunciarem e nem da sociedade conhecer toda a verdade. Ou seja, o que uma boa gestão de crise exige é uma completa apuração e transparência de todas as denúncias e das falhas passadas de seus líderes, incluindo as do Papa, se houve.

O que a sociedade, incluindo os católicos e religiosos, quer é a punição dos culpados, o reconhecimento dos erros e a forma de repará-los. Indenizações financeiras não são suficientes para consertar a cicatriz na vida dos jovens que foram abusados. O dinheiro não apagará o sofrimento nem a mancha definitiva em suas vidas.

Os atos praticados por ministros da Igreja devem ser encarados como erros humanos e não confundidos com princípios doutrinários da Igreja. Os evangelhos nada têm a ver com a libido exacerbada de padres e leigos, que travestidos de ministros da igreja e protegidos pela capa preta da impunidade, do silêncio cúmplice dos superiores e da rígida hierarquia eclesiástica aproveitaram-se da ingenuidade de crianças para cometer abusos. Não há diferença essencial entre esses crimes e os perpetrados por pedófilos, que se aproveitam da internet para seduzir crianças. Aqueles podem até ser mais graves, porque cometidos por pessoas em quem as crianças confiavam, postas ali para educá-las e protegê-las.

Não há por que a Igreja ter pruridos para abrir a caixa preta, contar a verdade e ir atrás de quem cometeu delitos.  As organizações não podem, incluídos governos, igrejas, empresas, é compactuar com a impunidade quando alguém escorrega. Isso determina se a crise está bem ou mal administrada. Até agora a Igreja tergiversou. A imprensa só cumpre o seu papel em não esconder. Pior para a imagem da Igreja Católica se persistir qualquer tipo de nódoa na forma como administra essa crise. O prejuízo de imagem e o desgaste com milhões de fiéis será irreparável.

O Vaticano se defende com o argumento de que o Pontífice não tomou conhecimento dos fatos denunciados.  “Há um plano organizado, muito bem dirigido” para desgastar a Igreja, denuncia o Cardeal José Saraiva Martins, da Congregação para as Causas dos Santos. Na sexta-feira santa, o porta-voz do Vaticano comparou os ataques à Igreja e ao Papa com o antissemitismo. Teve que se retratar. Na Inglaterra, o Cardeal Keith O'Brien, o mais antigo no país, disse que as ações dos padres pedófilos deixou os católicos sentindo-se desmoralizados e confusos e causou profunda irritação no clero inocente.

Durante todos os sermões de Páscoa pelo mundo, cardeais e bispos, incluindo o Vaticano, manifestaram-se contritos sobre as denúncias de pedofilia. Mas entre todos os pronunciamentos, a nota do episcopado da Suíça parece resumir o mea culpa entre os próprios religiosos: Nós humildemente admitimos que subestimamos a extensão da situação. Tanto a diocese quanto as ordens religiosas cometemos erros”.

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