O transporte aéreo é uma das indústrias mais vigilantes, preparadas e treinadas, quando se fala em crise. Empresas aéreas, administradoras de aeroportos ou controladoras de voos têm protocolos e matrizes de risco muito rígidos, sempre com o objetivo de evitar acidentes, que acarretem prejuízos e, principalmente, perda de vidas. Milhões de pessoas voam todos os dias no mundo. A aviação tem um índice de acidentes relativamente baixo, a ponto de o avião ser apontado como dos mais seguros meios de transporte de todos os tempos.
Um pequeno avião, um grande caos
E por que um problema no pneu de um avião de pequeno porte, ao aterrissar, num acidente sem vítimas, levou o caos às operações do aeroporto de Congonhas, com repercussões negativas à malha aérea brasileira? As empresas aéreas constroem uma rede de transporte toda conectada; um voo tem conexão com o próximo e os aviões não podem ficar parados ou deixar de pousar no destino sem afetar outras viagens. Qualquer decolagem ou pouso depende de outros voos e horários rígidos. Foi o que aconteceu em Congonhas, em 9 de outubro, domingo. Um avião particular pousou às 13.30h e não conseguiu frear, travando a roda. Em consequência, um dos pneus furou, levando o aparelho para fora da pista, quase no limite do aeroporto. Ninguém ficou ferido.
A partir daí, a Infraero - empresa pública administradora do aeroporto - suspendeu todos os pousos e decolagens em Congonhas, o segundo aeroporto mais movimentado do país, até se certificar de que a pista e adjacências não tinham sofrido avarias. Mas o problema estava longe de ser resolvido. Aguardou também que a empresa responsável pelo avião providenciasse a retirada, conforme prevê a legislação, para, então, retomar as atividades. Só que essa providência demorou nove horas.
A obrigação de retirada de aeronave sinistrada no aeroporto é da empresa dona ou gestora do aparelho. A Infraero por cláusulas de seguros, que preveem vistoriar o acidente e os danos no aparelho, previstas no Código Civil Brasileiro, não pode intervir nessa operação, a não ser colaborar para que rapidamente se resolva o impasse. A demora de nove horas nessa operação foi alvo de muitas críticas, pelas empresas aéreas e milhares de passageiros, que ficaram ilhados naquele aeroporto e em quase todos os demais aeroportos do país. E por que nove horas? Esse é o problema e o motivo do agravamento desse pequeno incidente, que acabou se tornando uma crise de grandes proporções.
A legislação, ao atribuir à empresa dona do avião a retirada do equipamento, acaba provocando um dano colateral: uma demora excessiva, que, no caso, criou transtornos em cadeia pelos principais aeroportos do País.
Consequências
Segundo a Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas) e a Infraero, cerca de 630 voos foram afetados em todo o país, em pelo menos 20 aeroportos, causando um prejuízo às empresas aéreas estimado em R$ 15 milhões. A crise exigiu remanejar voos, pagar hospedagem, alimentação, transporte para passageiros que, após quase dois dias de espera em Congonhas, precisavam ter apoio e acomodação para minimizar os atrasos. Foram mais de dois dias de caos em Congonhas. Somente na tarde de terça-feira, dia 11, os voos foram normalizados naquele aeroporto e nos demais.
Onde está a falha
A Infraero poderia ter retirado o avião rapidamente? Sim, se tivesse a colaboração da empresa dona da aeronave e se a legislação ultrapassada permitisse outras ações. A burocracia e entraves legais acabaram gerando esse caos em cadeia, o que mostra uma falha grave na legislação, que precisa ser corrigida. Especialistas reconhecem que precipitar a retirada seria um risco à investigação do acidente, principalmente quanto às responsabilidades. Mas não se justifica deixar milhares de passageiros sem informação e retidos nos aeroportos porque Congonhas não podia liberar voos. É inconcebível nos dias atuais um transtorno dessa magnitude. E não se viu a opinião ou intervenção rápida da Anac, pelo menos para tentar minimizar o problema e explicar por que um pequeno avião, preso na lateral de um aeroporto causa um prejuízo monumental para empresas aéreas e passageiros, durante três dias.
Para o especialista em aviação Omar Daniel, “a Anac tem autoridade e expertise, que lhe permite explicar de quem é a responsabilidade e o que diz a legislação vigente. Pode também esclarecer onde estão os óbices para uma retirada rápida de aeronaves acidentadas das pistas e o que se pode fazer para impedir que fatos assim se repitam.”
Uma outra discussão suscitada pelo acidente é sobre a permissão para aviões de pequeno porte utilizarem Congonhas, durante o horário de ‘pico’ do aeroporto. A Abear divulgou um comunicado dizendo que a circulação dos aviões pequenos na pista principal de Congonhas é uma preocupação antiga e que esses voos de pequenos aviões deveriam ser concentrados em determinados horários. Em todo o mundo a aviação procura alternativas para facilitar a vida dos passageiros. Até porque, com o aumento do fluxo de passageiros, nos últimos anos, e as exigências de segurança após o atentado ao World Trade Center, em 2001, os aeroportos se tornaram um modal de transporte estressante e confuso, que não deveriam ser agravados por incidentes como esse.
Antes da pandemia, o fluxo de passageiros vinha aumentando. Um dos aeroportos mais movimentados do mundo, o de Heathrow, em Londres, processou em 2004, 67 milhões de passageiros. Em 2014, já eram 73 milhões e em 2019, antes das restrições da pandemia, subiu para 81 milhões. Nesse mesmo ano, em todos os aeroportos brasileiros foram transportados 120 milhões de passageiros, um recorde.
O que precisa melhorar
Para Miguel Dau, COO da CCR Aeroportos, conforme postagem no Linkedin, “A questão em nada tem a ver com o fato de ter ocorrido com uma aeronave da Aviação Geral ou Executiva. O problema repousa integralmente na legislação falha, que não ampara o Administrador aeroportuário a remover a aeronave acidentada, tão logo as autoridades aeronáuticas (CENIPA) liberem a cena do acidente. Nesse caso, a liberação foi bem ágil por parte da FAB. Apesar de o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) e outros regulamentos da ANAC permitirem esta ação por parte dos Operadores de aeroportos, o Código Civil Brasileiro, instância maior dentro da hierarquia das Leis, não blinda uma possível ação por parte do proprietário ou operador da aeronave e da sua seguradora para a cobrança de possíveis danos pela remoção da aeronave. Este conflito entre Leis e Regulamentos tem que ser urgentemente eliminado, sob pena de assistirmos novamente a este vergonhoso episódio”, conclui.
O executivo lembra fato semelhante ocorrido no Aeroporto Viracopos, de Campinas, em 2012. “Não faz muito tempo que assistimos o sofrimento com o impacto do acidente do cargueiro MD-11 da Centurion, que teve problema no trem de pouso, ao aterrissar.” O Aeroporto permaneceu fechado por 46 horas, dando prejuízos milionários às empresas aéreas e à Infraero. Ou seja, há dez anos esse impasse, que acaba se tornando uma grande crise, já existia e até hoje nada foi feito.
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