O Brasil ficou chocado, semana passada, pelas agressões estúpidas e covardes a um cliente negro do Supermercado Carrefour, em Porto Alegre, cometido por dois seguranças brancos. O violento ataque, que resultou em assassinato, foi filmado e divulgado à exaustão. Não houve no país quem não se revoltasse com as cenas, principalmente porque o ato foi cometido como se fizesse parte de um ritual, sem intervenção por parte do gerente da filial, da fiscal, que circulou ao redor do “ringue”, e de outros empregados uniformizados que se juntaram à plateia, como coadjuvantes. Nenhum outro empregado ou cliente interveio, até porque a fiscal ainda tentou constranger um cidadão que filmava o assassinato. Até o CEO global do Carrefour, Alexandre Bompard, achou as imagens "insuportáveis".
Não fosse um negro a vítima dessas agressões, o que caracteriza a violência também como crime de racismo, poderíamos especular que, se o alvo dos “pitbull” fosse um cliente branco, o crime teria sido de menor potencial? Absolutamente, sob qualquer aspecto que se analise, a reação desproporcional e criminosa dos seguranças do Carrefour, ela merece o repúdio de toda a sociedade. Não importa quem estivesse ali atacado. Mas, não há dúvidas de que por ser a vítima um cidadão negro, isso agravou o crime. E provocou inúmeras manifestações e protestos, em várias cidades do país, principalmente, nas lojas do Carrefour.
A coincidência de ter sido cometido às vésperas do Dia da Consciência Negra deu um tom ainda mais vil ao crime, evidenciando também que se trata de um delito recorrente no país. Casos recentes registram um jovem negro sufocado, no Rio, e outro torturado, em S. Paulo, todos em supermercados. Ataques verbais contra trabalhadores negros também têm crescido.
Não é atribuição dos seguranças ou guardas de qualquer empreendimento fazer justiça com as próprias mãos; e nem mesmo a detenção de alguém que, por si só, já seria ilegal. Para isso, existem as polícias locais, que deveriam ter sido chamadas, no caso, se o cliente – a confirmar - estava importunando ou agia em atitude suspeita, como insinuaram os seguranças. Além disso, a forma da abordagem, inobstante a tentativa de agressão ao segurança, na porta de saída para o estacionamento, não qualifica os empregados contratados pelo Carrefour, nem os autoriza a fazerem os papéis de polícia e juízes para reprimir, julgar e executar uma sentença de morte, como aconteceu. Que direito tinham aqueles brutamontes para constranger e bater em qualquer cliente? Ou era uma prática comum, admitida naquela unidade?
Crise grave
Do ponto de vista empresarial, trata-se de uma crise grave para a imagem do Grupo Carrefour. Num primeiro momento, as ações do Grupo, no Brasil, até tiveram uma leve alta, na sexta-feira, dia 20, provavelmente por apostas de especuladores; mas desde o dia 23 (segunda-feira) tiveram queda na Bolsa de Paris, sede da multinacional, o que foi interpretado como “um risco à reputação”. A empresa apressou-se em assumir o protagonismo da comunicação sobre o crime, apesar de um verdadeiro bombardeio de notícias e posts nas redes sociais, no país e até no exterior, pelo assassinato. Num primeiro momento, o Carrefour divulgou uma Nota repudiando o ato (veja abaixo). O presidente do Grupo, no Brasil, e o diretor de RH gravaram mensagens (abaixo), afirmando que a ação não faz parte da cultura da empresa. E que aquele dia era "o mais triste da história do Carrefour". O CEO global do Carrefour, o francês Alexandre Bompard, afirmou que a empresa "não compactua com racismo e violência. Ele pediu ao Carrefour Brasil uma "revisão completa do treinamento dos colaboradores e terceiros sobre segurança, respeito à diversidade e valores de respeito e repúdio à intolerância".
O jornal francês Le Monde disse, na quarta-feira (25), que o Carrefour “está contra a parede no Brasil, e tem imagem "manchada de sangue", com a morte de João Alberto. Para o jornal francês, por enquanto, nem as desculpas oficiais, nem a criação de um fundo de R$ 25 milhões para lutar contra o racismo no Brasil, nem o rompimento do contrato com a empresa de segurança Vector, onde trabalhavam os dois vigias acusados pelo assassinato, foram suficientes para apagar o incêndio. “Carrefour assassin!”, diz o jornal na chamada, grito que ecoa nas manifestações no Brasil. O desgaste para a marca é inapelável, mesmo que agora as ações realizadas e prometidas tentem amenizar o arranhão.
“O gigante do varejo está em plena tormenta após a divulgação das imagens mostrando João Alberto Freitas sendo espancado até a morte por seguranças brancos de um supermercado Carrefour”, escreveu o site do jornal “Le Figaro”. “Estamos no olho do ciclone”, admitiu, no fim de semana ao jornal “Les Echos”, Stéphane Engelhard, vice-presidente responsável pela gestão de crises do Carrefour Brasil, que vai implementar um “comitê de diversidade” independente, para apoiar a empresa em ações ligadas ao tema. “Se não estamos vendo o problema com nossos próprios olhos, vamos pedir ajuda”, disse uma fonte na França, ao jornal Valor Econômico, sobre esse novo comitê e o plano de ações.
O lamentável episódio levanta dúvidas sobre a relação profissional entre grandes organizações e as empresas de segurança. Até que ponto os contratantes têm controle e monitoram a atuação dessas empresas? De certo modo, acabam agindo com muita liberdade, porque a fiscalização é falha, na medida em que as sedes dessas empresas geralmente são nos grandes centros e os seguranças são locais. Não são raras as crises envolvendo empresas de segurança, por erros ou excesso de força.
Como justificar, por exemplo, que um “policial temporário” fazia parte da dupla que assassinou o cliente, no Carrefour de Porto Alegre? A Polícia Federal assegura que essa prática é irregular. O Carrefour (na pessoa do gerente da unidade) sabia que havia um policial entre os seguranças? Esses profissionais, muitos deles armados, são indicados por escala, nem sempre fixos no mesmo local. Até que ponto as empresas contratantes têm o controle da ficha profissional, da formação e do treinamento desses empregados? Como se trata de uma atividade-meio, se atribui a eles uma autoridade que não deveriam ter, a não ser com um rigoroso sistema de controle e gestão. O que não acontece.
Algumas análises consideraram a gestão da crise do Carrefour correta, pela forma franca e despojada dos executivos se exporem na mídia e condenarem o ato. E pelas ações prometidas. É importante observar que a gestão da crise começa antes do fato negativo acontecer, ao se evitar que a crise aconteça. A prevenção, a preparação, o treinamento simulado fazem parte da gestão da crise. O que a direção do Carrefour está fazendo é contenção de danos e uma intervenção para a continuidade do negócio, porque o mal já foi feito. O que a empresa tenta é reparar o problema ocorrido, que atingiu em cheio a reputação. E evitar um prejuízo maior à imagem. Para se ter uma ideia da repercussão, no dia 14 de novembro, por exemplo, o Carrefour tinha cerca de 250 menções nas redes sociais; nos dia seguinte à crise da filial de Porto Alegre, atingiu 135 mil menções negativas, sendo 59% no Twitter; 33% em outras redes e 7% no Facebook.
A morte do cliente não poderia e nem deveria ter acontecido, se realmente houvesse uma gestão de crises competente na área de segurança. Como o próprio Carrefour reconhece, é preciso rever procedimentos, trabalhar a cultura da empresa para evitar a repetição, já que, no entender da empresa, foi um desastre o que aconteceu. A necessidade que a empresa sentiu de expor o CEO brasileiro, numa mensagem na TV, já mostra a dimensão e a importância que está dando ao fato. O que é positivo.
Apesar de ter assegurado em nota oficial que daria “todo apoio à família de João Alberto Silveira Freitas”, ainda na sexta-feira, a empresa demorou quase uma semana para fazer isso. É salutar que a empresa mostre “compassion”, nesse momento, e se junte ao grito de repúdio da sociedade. As promessas e juras de arrependimento certamente serão cobradas.
O passado me condena?
Se o cliente assassinado teria um passado pouco ilibado, como insinuaram mensagens que circularam nas redes sociais, e se em outras ocasiões importunou clientes ou funcionários, conforme sugere um dos agressores, o procedimento correto seria chamar a polícia, que tomaria as medidas de contenção cabíveis e encaminharia o caso.
A responsabilidade da empresa no lamentável episódio fica patente, pela forma coordenada e uniforme com que os terceirizados partiram para cima do cliente. Evidencia-se ali a falta de treinamento e preparo psicológico dos seguranças. A atitude deles ultrapassa todos os limites das atribuições de um segurança, ainda que o cliente tivesse feito algo grave. Mesmo admitindo que o cliente não tivesse morrido, a simples abordagem com as agressões, com a violência utilizada, já seria um crime gravíssimo.
O que agrava a crise é o fato de o supermercado francês já ter no seu passado episódios que mostravam o descontrole dos serviços de segurança. Em 2018, foi manchete a morte de um cachorro, retirado de uma loja e que, minutos depois de ter sido levado por um segurança, apareceu morto.
A morte do aposentado é o desfecho de uma prática que há algum tempo tem se tornado rotina em grandes magazines, supermercados e shoppings. Seguranças se travestirem de policiais, para ameaçar, quando não, constranger, agredir e até prender em cárcere privado clientes suspeitos de delitos diversos, com roubo ou perturbação. E, na maioria dos casos, envolvendo pessoas negras.
O episódio do Carrefour não foi um caso isolado ou raro. Em 2019, um cliente foi morto por seguranças no supermercado Extra, no Rio de Janeiro, de forma semelhante ao ocorrido agora. Mesmo diante dos protestos da mãe da vítima, que estava presente. Nesse clima de arbitrariedades e abusos, aumentam os crimes contra pessoas negras e pobres, principalmente, constrangidas ou atacadas em estabelecimentos comerciais, como se fizessem parte de uma casta que devesse ter um tratamento diferenciado da maioria branca. A crise do Carrefour pode ser um divisor de águas? Sim. Se o Grupo Carrefour no Brasil cumprir o que vem prometendo, a partir desse crime. Se as empresas de varejo, financeiras e mesmo as repartições públicas fizerem uma revisão nos sistemas de seleção e treinamento do pessoal de atendimento, segurança e relações com os clientes. O episódio ocorrido em Porto Alegre violou o bem mais precioso que possuímos, a vida. Não é possível que se aceite isso como se fosse normal e sem indignação.
Comunicado Carrefour (20/11/20)
"Este dia que deveria ser marcado pela conscientização da inclusão de negros e negras na sociedade, está sendo o mais triste da história do Carrefour. Palavras não expressarão nossa angústia com a brutalidade. Daremos todo apoio à família de João Alberto Silveira Freitas e, em respeito a ele, nossa loja de Passo D'Areia fechou hoje e permanecerá fechada amanhã. Além disso, todo o resultado das vendas de hoje das lojas Carrefour hipermercados será doado para entidades ligadas à luta pela consciência negra. Amanhã, abriremos mais tarde para reforçamos o treinamento antirracista com todos os nossos funcionários e terceiros. Continuaremos com nossa transparência informando os próximos passos. Nada trará a vida de João Alberto de volta, mas estamos certos de que este momento de pesar se converterá em ações concretas que impedirão que tragédias como essa se repitam."
Nota divulgada na TV (22/11/20)
"Palavras não expressarão nossa angústia com a brutalidade. Daremos todo o apoio à família de João Alberto Silveira Freitas e, em respeito a ele, nossa loja de Passo D'Areia fechou ontem e permanecerá fechada hoje", afirmou o Carrefour. "Além disso, todo o resultado das vendas do dia 20 de novembro das lojas Carrefour Hipermercados será doado para entidades ligadas à luta pela consciência negra", acrescentou. O Carrefour disse ainda que as lojas serão abertas mais tarde neste sábado para reforço de "treinamento antirracista com todos os nossos funcionários e terceiros". A divulgação das ações vem após o presidente do Carrefour, Alexandre Bompard, se manifestar na tarde da véspera em sua conta no Twitter. "Medidas internas foram imediatamente tomadas pelo Grupo Carrefour Brasil, principalmente em relação à empresa de segurança contratada. Essas medidas são insuficientes. Meus valores e os valores do Carrefour não compactuam com racismo e violência."
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