Ana Negreiros e João José Forni*
A escuridão do Amapá ilumina a falta de processos preventivos de crise no Brasil. Noites e dias escuros. Fornecimento de água paralisado. Bancos fechados e caixas eletrônicos desligados. Postos de combustíveis racionando gasolina. Comidas jogadas no lixo. Sensação de impotência e medo. Na escuridão, aconteceram saques e vandalismo. O cenário descrito é o vivido há uma semana por cerca de 90% da população do Amapá, aproximadamente 765 mil pessoas. Cenas de um filme “noir”.
A rotina da população da capital e de mais 12 municípios (o estado tem 16 municípios) foi quebrada pelo incêndio que um raio provocou numa subestação de energia na capital. O acidente cortou totalmente o fornecimento de energia de grande parte do estado, incluindo a capital. O acidente foi exatamente na subestação que garante o abastecimento de energia no estado. O Amapá está conectado ao Sistema Interligado Nacional (a rede de linhas de transmissão), desde 2015, por meio de uma única linha.
Sem energia, a população se viu num processo que beirou o caos. Sem o fornecimento de água encanada, houve corrida para a água mineral e o gelo. Internet e serviços de telefonia também foram atingidos e a maioria parou de funcionar. Até agora, a volta completa à normalidade é incerta, já que a cada momento o Ministério de Minas e Energia apresenta uma data diferente. Até lá, como a população enfrentará a crise e se livrará dos "borrachudos", que atacam à noite, em meio ao calor natural do estado?
Apesar de, após quatro dias de apagão, tivesse previsão de fornecimento de luz por 6 horas, em forma de rodízio, há regiões onde a energia voltou por apenas duas horas. A subestação incendiada voltou a operar apenas com um transformador, em conjunto com a hidrelétrica. A situação só deve ser normalizada a partir desta semana, segundo autoridades do setor elétrico.
Prevenção
O setor elétrico é um dos mais rígidos em normas. Para todo tipo de ação, um protocolo e planos de contingências que precisam ser eficazes. Mas o que se viu no Amapá foi uma combinação de fatores que vão da falta de gestão de riscos do setor elétrico, no caso, gerenciado por uma empresa concessionária, e o despreparo dos governos para gerenciarem crises graves, principalmente aquelas que afetam diretamente as pessoas, nas suas necessidades mais básicas. Isso acontece em enchentes, queimadas, deslizamentos, etc.
A falta de energia no Amapá começou em 3 de novembro, quando um transformador da subestação da Zona Norte de Macapá incendiou. Houve uma explosão no local. Segundo o Ministério de Minas e Energia, havia três transformadores e todos foram comprometidos. Dois deles precisam ser substituídos e o terceiro já estava em manutenção, desde o fim do ano passado. De ressaltar que a gestão da energia no estado está a cargo de uma empresa concessionária, a espanhola Isolux, que entrou em recuperação judicial. Isso explica um gerador com defeitos desde o ano passado.
No caso, se o transformador estava em manutenção desde 2019, qual era o plano de mitigação de riscos adotado pela empresa responsável? A hipótese de um acidente, explosão, sabotagem ou até mesmo raio estava considerada na matriz de riscos da empresa?
Gestão privada
De acordo com relatos do Coletivo Nacional dos Eletricitários -CNE, apresentados à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, a empresa estava com um transformador em manutenção e um outro apresentou vazamento. Ainda segundo a CNE, o vazamento potencializou o incêndio, após o transformador ter sido atingido por uma descarga elétrica.
Se o acidente era previsto, por que não havia um planejamento de crise, que evitasse um apagão no estado do Amapá, nas dimensões em que aconteceu? As autoridades não foram de todo surpreendidas pelo acidente, porque a subestação, pelo visto, tinha problemas. Uma das dificuldades do setor público, de modo geral, em situações de crise, é a lentidão na tomada de decisão, o que não condiz com a urgência que a crise exige. O caos instalado no Amapá é o resultado do despreparo dos órgãos envolvidos, da falta de prevenção e da dificuldade de os governos tomarem decisões rápidas e eficazes, quando a crise está instalada. Mostra também grave falha da fiscalização, que deveria ter alertado a empresa e o controlador sobre o risco de cortes de energia.
No caso, o foco do Gabinete de Crise tem sido prioritariamente restaurar o fornecimento de energia. Mas outros problemas gerados pela crise estão a exigir pronta ação do governo: abastecimento de água e de alimentos para a população, o atendimento aos doentes, especialmente aqueles que dependem de energia em suas residências ou nos hospitais e unidades de saúde. Há cidades pequenas, onde a energia não chegará tão cedo, que precisam de atendimento especial.
Outra questão em pauta é da responsabilidade pela crise. O Palácio do Planalto tratou a companhia de energia como estadual. Mas a supervisão e fiscalização está na esfera federal. O apagão foi consequência da falha de uma empresa que deveria ser fiscalizada pela ANEEL, sob supervisão do Ministério de Minas e Energia.
Outra pergunta. Assim como na Amapá não havia resposta convincente, quatro dias depois do incêndio, sobre quando a energia elétrica seria restabelecida no estado, é de se entender que não existia plano de crise nos governos, para esses casos, ainda que, a responsabilidade primeira fosse da empresa concessionária. Se não existe um plano consistente, o risco de acontecer em outras regiões também existe?
Justiça dá prazo
A crise do Amapá é tão grave que levou a Justiça Federal do Amapá a determinar o retorno de 100% da energia, no prazo de três dias, sob pena de multa de R$ 15 milhões à empresa. A Isolux também deve apresentar em até 12 horas um plano de ações para o restabelecimento de serviço, determinou o Juiz no despacho..
Além disso, foi ordenada a instauração de um inquérito do Tribunal de Contas da União (TCU) e Polícia Federal (PF) para apurar o caso, e a criação de um grupo de trabalho com o Ministério das Minas e Energia, Eletronorte, Isolux e Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA). Quanto à determinação da Justiça, pareceu mais um ato simbólico, como resposta no âmbito do Judiciário, para atender ação do Senador Randolfe Rodrigues, do que um ato que poderia levar à solução rápida do problema. Até porque o ministério já explicou que, a rigor, não poderá resolver o problema completo em apenas três dias.
A criação desse Grupo de Trabalho não tem muito sentido, no momento, porque já existe um gabinete de crise, criado pelo ministério de Minas e Energia, que está conduzindo as operações de recuperação da subestação. Neste domingo (8), o estado completou mais de 100 horas sem o retorno completo da energia. No sábado (7), a energia voltou de forma parcial em algumas regiões do estado, com 65% do serviço e rodízio de turnos de seis horas. Mesmo assim, há localidades que ficam 12 horas sem energia. O cronograma dos horários de fornecimento e suspensão ainda não foi divulgado à população. Na sexta, o governador Waldez Góes (PDT) assinou decreto que estabelece situação de emergência por 90 dias nas cidades atingidas.
No sábado, o ministro Bento Albuquerque disse que até final desta semana a energia do Amapá deve ser restabelecida 100%. Ainda que a recuperação do sistema aconteça até antes desse prazo, o fato concreto é que esta crise não deveria ter acontecido. É o tipo de situação que afetou de forma grave a população e que deveria ter um monitoramento rigoroso. Infelizmente, o Amapá serviu como laboratório para uma situação de caos que poderá ocorrer em outros lugares. A pergunta que fica é: quem falhou nessa crise grave? E quais as lições que ficam, a partir desse lamentável acontecimento?
*Ana Negreiros é especialista em comunicação em crises nas organizações públicas e privadas, atuando em Gestão de Imagem e Reputação, Narrativas Corporativas Crises e Riscos.
*João José Forni, Jornalista, Consultor de Comunicação, autor do livro “Gestão de Crises e Comunicação – O que Gestores e Profissionais de Comunicação precisam saber para enfrentar crises corporativas”.
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