O lançamento da série da HBO – Chernobyl – intensificou o interesse pela maior tragédia nuclear, ocorrida há 33 anos e que até 1991, quando acabou o regime soviético, sempre esteve envolta numa cortina de mistério e mentiras.
Nunca se soube, e provavelmente nunca se saberá, a extensão do que realmente aconteceu em abril de 1986, na pequena cidade de Pripyat, no interior da Ucrânia. Mas Chernobyl foi o acidente que mais perto chegou do potencial de um desastre nuclear de dimensões continentais, desde que a energia nuclear começou a ser explorada.
Fora as grandes guerras e os genocídios que respondem pela morte de milhões de pessoas, qual a tragédia da humanidade – não levando em conta desastres naturais - que poderia ser considerada a pior crise ou o pior acidente dos tempos modernos? Não é difícil tentar adivinhar. Certamente o acidente nuclear de Chernobyl despontaria como o “maior desastre antropogênico da história da humanidade”, segundo Viktor Sushko, vice-diretor-geral do Centro Nacional de Pesquisa Médica de Radiação (NRCRM), localizado em Kiev, Ucrânia.
Mas por que, de repente, a tragédia começou a ser comentada, investigada, até porque na época em que ocorreu, três anos antes da implosão da União Soviética, a região fazia parte das repúblicas soviéticas, extremamente fechadas a qualquer abertura ou transparência sobre o que acontecia de ruim atrás da chamada “cortina de ferro”. O mundo nunca soube direito o que aconteceu em Chernobyl.
Foi a série “Chernobyl”, da HBO (veja abaixo em artigos), que, de repente, abriu uma cortina sobre esse acidente nuclear de que pouco se falava. A série, em cinco capítulos, já está sendo considerada uma das melhores da história. Com classificação 9,6 de 10, é a mais bem cotada de todos os tempos no site da IMDb (Internet Movie Database). O programa levou a um aumento do número de visitantes às ruínas do que foi a usina e à cidade fantasma vizinha, Pripyat.
Apesar de ex-empregados e dirigentes da usina terem se manifestado sobre o enredo da série, com críticas, e de historiadores soviéticos apontarem alguns equívocos, a liberdade ficcional de "Chernobyl" não chega a comprometer o compromisso histórico e verdadeiro do que aconteceu, segundo a maioria dos críticos. Presidente do Comitê do Partido Comunista na Usina Nuclear de Chernobyl à época do desastre, Sergii Parashyn afirma que a minissérie da HBO, que estreou em junho no Brasil, descreveu corretamente a descrença inicial na gravidade do acidente.— Eu não entendi o que estava acontecendo até o amanhecer, até que vi com meus próprios olhos que tudo estava destruído — conta.
No entendimento do advogado João Paulo Seixas em análise para o Instituto Liberal, publicado no site falauniversidade, a mais impressionante e envolvente contribuição trazida pela série Chernobyl é o retrato bem construído de mentiras e tensão existentes no cenário politico da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Principalmente no Brasil, ele diz, o estudo sobre a realidade da URSS – e de quase todos os regimes socialistas – é jogado para escanteio pelos currículos escolares e universitários. Os horrores do Nacional-Socialismo e do Fascismo são, com razão, muito discutidos. Pela distância ideológica do Brasil com a ex-URSS, agravada pelos 20 anos do regime militar, mesmo em 1986 foi difícil dimensionar como um acidente dessa magnitude pôde ser tão esquecido.
A negação de liberdades fundamentais aos indivíduos, o líder condutor e a união nacional voltada ao Estado grande, características clássicas dos movimentos totalitários, são delicadamente retratadas via diálogos e situações particulares em toda a série. A preservação da imagem do regime e a percepção pública eram as preocupações primordiais dos burocratas soviéticos, por isso o controle e a manipulações dos fatos e das consequências reais do incidente eram corroídos por mentiras, desinformações e obstruções.
O retrato mais perfeito de como foi a gestão de crise de Chernobyl já aparece na primeira reunião, de um suposto Comitê de Crise, no primeiro capítulo da série. O personagem Zharkov, experiente membro do comitê executivo de Pripyat, diz aos participantes, após indagação de um dos integrantes, que “O Estado nos disse que a situação não é perigosa. O Estado diz que quer impedir o pânico. Prestem atenção! Quando o povo faz perguntas que não são do melhor interesse dele, apenas devemos dizer a todos que se concentrem no trabalho e deixem os assuntos de Estado para o Estado.” E diante dos argumentos contrários de um técnico presente, certamente ciente da gravidade dos índices do vazamento nuclear, o chefe toma uma decisão na contramão da boa gestão de crise, sob aplauso dos demais áulicos e medrosos participantes da reunião. Ali está o mote de como o mundo acompanhou a evolução dessa tragédia. E da série.
A tragédia e os mistérios
O resumo do que aconteceu foi objetivamente retratado na apresentação do livro “Vozes de Tchernóbil” – a história oral do desastre nuclear", da vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Aleksiévitch. “Em 26 de abril de 1986, uma explosão seguida de incêndio na usina nuclear de Tchernóbil, na Ucrânia – então parte da finada União Soviética - , provocou uma catástrofe sem precedentes em toda a era nuclear: uma quantidade imensa de partículas radioativas foi lançada na atmosfera da URSS* e em boa parte da Europa. Em poucos dias, a cidade de Prípiat, fundada em 1970, teve que ser evacuada. Pessoas, animais e plantas, expostos à radiação liberada pelo vazamento da usina, padeceram imediatamente ou nas semanas seguintes”.
Embora seja muito difícil saber até hoje, para se ter uma pequena dimensão da tragédia, de acordo com observações diversas, em 29 de abril de 1986 foram registrados altos níveis de radiação na Polônia, Alemanha, Áustria e Romênia; em 30 de abril, na Suíça e no norte da Itália; nos dias 1º e 2 de maio, na França, Bélgica, nos Países Baixos, na Grã-Bretanha e no norte da Grécia; em 3 de maio, em Israel, no Kuwait e na Turquia... Mas não ficou aí, “Projetadas a grandes alturas, as substâncias gasosas e voláteis se dispersaram pelo globo: em 2 de maio foram registradas no Japão; no dia 4, na China; no dia 5, na Índia; e em 5 e 6 de maio, nos Estados Unidos e no Canadá. Em menos de uma semana, Tchernóbil se tornou um problema para o mundo inteiro” (Nota histórica, do livro “Vozes de Tchernóbil, p. 11).
A jornalista e escritora escreve a história de Chernobyl pelas “vozes” dos sobreviventes ou testemunhas. O livro transcorre como uma reportagem jornalística, abrindo uma nesga sobre a escuridão com que esse tema sempre foi tratado. E não poupa os dirigentes soviéticos. “Tão grave quanto o acontecimento foi a postura dos governantes e gestores soviéticos (que nem desconfiavam estar às vésperas da queda do regime, ocorrida poucos anos depois). Esquivavam-se da verdade e expunham trabalhadores, cientistas e soldados à morte durante os serviços de reparo na usina. Pessoas comuns, que mantinham a fé no grande império comunista, recebiam poucas informações, numa luta inglória, em que pás eram usadas para combater o átomo. A morte chegava em poucos dias. Com sorte, podia-se ser sepultado como um patriota em jazigos lacrados.” ("Vozes de Tchernóbil, 2ª capa).
Quantas pessoas morreram em consequência de Chernobyl? Estabelecer um número preciso no total de mortes ao redor do mundo decorrentes do desastre de Chernobyl é quase impossível. Talvez essa pergunta nunca possa ser respondida. Densa reportagem de pesquisa publicada pelo sites Uol, Terra, Globo e muitos outros veículos internacionais, de autoria de Richard Gray - da BBC Future, no último 10 de agosto – provavelmente pela intensa repercussão do tema, em função da série “Chernobyl” - mostra que são controvertidas as versões sobre o grau de letalidade desse acidente.
Segundo o artigo, "a Academia de Ciências da Rússia estima que cerca de 5 milhões de cidadãos da antiga União Soviética, incluindo 3 milhões na Ucrânia, tenham sido afetados pelo desastre de Chernobyl. Na Bielorrússia, outras 800 mil pessoas também foram atingidas pela radiação. Em janeiro de 2018, 1,8 milhão de pessoas na Ucrânia, incluindo 377.589 crianças, tinham o status de vítimas do desastre, segundo Sushko. Houve um rápido aumento no número de pessoas com deficiência entre esta população, passando de 40.106 em 1995 para 107.115 em 2018."
"De acordo com os dados oficiais, o número de mortos reconhecido internacionalmente aponta que apenas 31 pessoas morreram como resultado imediato de Chernobyl, enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 50 mortes podem ser diretamente atribuídas ao desastre. Em 2005, previa que mais 4 mil poderiam eventualmente ter morrido como resultado da exposição à radiação."
Diante das controvérsias da extensão do desastre, a cada lugar na região, uma versão sobre as vítimas: "Mas um relatório publicado por membros da Academia Russa de Ciências, que foi alvo de controvérsia, indica que poderia haver até 830 mil pessoas nas equipes de limpeza de Chernobyl. Eles estimaram que entre 112.000 e 125.000 destes - cerca de 15% - haviam morrido até 2005. Muitos dos números presentes desse estudo, no entanto, foram contestados por cientistas do Ocidente, que questionaram sua validade científica", relata a reportagem da BBC.
E o território contaminado?
Outra polêmica. Segundo Richard Gray: “No total, cerca de 150.000 km² da Bielorrússia, Rússia e Ucrânia são considerados contaminados e a zona de exclusão de 4.000 km² - uma área com mais que o dobro do tamanho de Londres - permanece praticamente desabitada." Mas a precipitação radioativa, carregada pelos ventos, espalhou-se por grande parte do hemisfério Norte e chegou até a América do Norte. Dois dias depois da explosão, altos níveis de radiação foram detectados em vários países da Europa, enquanto a contaminação de plantas e campos levou a restrições rigorosas à venda de cordeiros e de outros produtos ovinos durante anos, na Grã-Bretanha.
Vale a pena ler toda a reportagem, talvez antes de assistir à série. Como seria muito importante ler também o livro “Vozes de Tchernóbil”, da extraordinária jornalista Prêmio Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch.
Fotos: Cena da série 'Chernobyl' (HBO/Divulgação); vista aérea do reator destruído da usina de Chernobyl — Foto: Arquivo/Reuters; cientistas se preparam para entrar na usina - Foto Igor Kostin - Getty Images; The Planet: 25 Haunting Chernobyl Pictures - 25 years after the Disaster
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Fonte: Wordpress - Universidade de Toledo