O banco de dados Brainwash, criado por pesquisadores da Universidade de Stanford, continha mais de 10.000 imagens e quase 82.000 cabeças anotadas nos registros no fim de 2018.
Na sociedade vigiada em que vivemos, câmeras em elevadores, estações do metrô, trens, ônibus, aeroportos, repartições públicas e até no prédio onde você mora se tornaram rotina. Ninguém está livre de ser monitorado 24 horas por dia, nos locais públicos da cidade ou da estrada. Mas o processo de invasão da privacidade avança para ter todos os seus movimentos, com muito mais precisão, por meio do reconhecimento facial.
Dezenas de bancos de dados de pessoas estão sendo compilados, sem o conhecimento delas, por empresas e pesquisadores, com muitas das imagens sendo compartilhadas em todo o mundo, no que se tornou um vasto ecossistema que alimenta a disseminação da tecnologia de reconhecimento facial. A denúncia foi tema de reportagem no fim de semana do The New York Times.
O banco de dados Brainwash, criado por pesquisadores da Universidade de Stanford, continha mais de 10.000 imagens e quase 82.000 cabeças anotadas nos registros, no fim de 2018. E as empresas contratadas para compilar essas imagens não precisam quebrar a cabeça para descobrir onde você anda. Você acaba fornecendo a matéria-prima. Basta estar circulando nas ruas ou aglomerações.
“Os bancos de dados são formados com imagens de redes sociais, sites de fotos, serviços de encontros como o OkCupid e câmeras colocadas em restaurantes e em quadras universitárias. Embora não haja uma contagem precisa dos conjuntos de dados, os ativistas da privacidade localizaram repositórios que foram construídos pela Microsoft, Universidade de Stanford e outros. Um deles contém mais de 10 milhões de imagens, enquanto outro teve mais de dois milhões”, diz o NYT.
As compilações de rosto estão sendo impulsionadas pela corrida para criar sistemas de reconhecimento facial de ponta. Essa tecnologia aprende a identificar pessoas analisando o máximo possível de imagens digitais usando “redes neurais”, que são sistemas matemáticos complexos que exigem grandes quantidades de dados para construir o reconhecimento de padrões.
Essa ação, que aos poucos também chega ao Brasil, é extremamente invasiva, uma vez que todos os rostos que passam diante das câmeras são gravados e armazenados num verdadeiro Big Brother, levando a múltiplos questionamentos, porque a maioria das pessoas não gostaria que sua vida privada fosse gravada e arquivada.
“Gigantes da tecnologia, como Facebook e Google, provavelmente acumularam os maiores conjuntos de dados faciais, que eles não distribuem, de acordo com documentos de pesquisa. Mas outras empresas e universidades compartilharam amplamente sua imagem de pesquisa com pesquisadores, governos e empresas privadas na Austrália, China, Índia, Cingapura e Suíça para treinamento de inteligência artificial, segundo acadêmicos, ativistas e jornais públicos”, diz o NYT.
Ainda segundo o NYT, empresas e laboratórios reuniram imagens faciais por mais de uma década, e os bancos de dados são apenas uma camada para a construção da tecnologia de reconhecimento facial. Mas as pessoas muitas vezes não têm ideia de que seus rostos estão nelas. E, embora os nomes normalmente não sejam anexados às fotos, os indivíduos podem ser reconhecidos porque cada face é exclusiva de uma pessoa.” Já nos acostumamos a ver em filmes de ficção a facilidade com que investigadores jogam uma fotografia de suspeito no computador e a rapidez com que ele processa e identifica essa pessoa. Isso não é uma ficção. Já existe.
Isso também é o resultado de uma paulatina evolução, que começou lá atrás, quando você fazia o cadastro numa empresa. Com a Internet e as redes sociais, essa vulnerabilidade se agravou., porque dados pessoais se transformaram em ouro puro, não sendo raro, como acontece no Brasil, de cadastros inteiros serem roubados e comercializados. Todas as quadrilhas gostariam de acessá-los.
Essa vigilância à la “Big Brother”, intensificou-se a partir dos atentados terroristas ocorridos em Madrid, em 2004, quando 192 pessoas morreram na estação do metrô de Atocha; em Londres, em 2005, quando 52 pessoas foram vítimas fatais em ataques simultâneos no metrô e num ônibus e no maior ataque ao território americano, no World Trade Center, em 2001. A partir do atentado, o governo Bush utilizou poderes bastante discricionários para vigiar os cidadãos e reprimir atentados, poderes esses aprovados pelo Congresso, sob a emoção das quase três mil vítimas fatais do atentado de 11 de setembro de 2001.
“As perguntas sobre os conjuntos de dados estão aumentando porque as tecnologias que as grandes redes ativaram, agora, estão sendo usadas de maneiras potencialmente invasivas”, diz o jornal.
O New York Times faz uma denúncia grave. “Documentos divulgados no último domingo revelaram que funcionários da Agência de Imigração e Alfândega empregaram tecnologia de reconhecimento facial para escanear fotos de motoristas e para identificar imigrantes indocumentados. O F.B.I. também passou mais de uma década usando esses sistemas para comparar a carteira de habilitação e as fotos de vistos contra os criminosos suspeitos, segundo um relatório do Government Accountability Office do mês passado. Na quarta-feira, uma audiência do Congresso abordou o uso da tecnologia pelo governo.”
Não há supervisão dos conjuntos de dados. Ou seja, a coleta de dados é feita livremente, sem pesos e contrapesos. “Ativistas e outros grupos de direitos humanos disseram que ficaram irritados com a possibilidade de que as semelhanças das pessoas tenham sido usadas para construir uma tecnologia eticamente questionável e que as imagens possam ser mal utilizadas contra elas. Pelo menos um banco de dados de rostos criado nos Estados unidos foi compartilhado com uma empresa na China que tem sido associada ao perfil étnico dos muçulmanos uigures da minoria do país. Ou seja, a tecnologia utiliza a síndrome da segurança, que a cada atentado se exacerba no mundo, para vigiar os inimigos políticos.
Nas últimas semanas, algumas empresas e universidades, incluindo Microsoft e Stanford, removeram seus conjuntos de dados de rosto da Internet, por causa de preocupações com a privacidade. Mas, dado que as imagens já estavam tão bem distribuídas, elas provavelmente ainda estão sendo usadas nos Estados Unidos e em outros lugares, disseram pesquisadores e ativistas.
Segundo o NYT, "você percebe que essas práticas são intrusivas e percebe que essas empresas não respeitam a privacidade", disse Liz O'Sullivan, que supervisionou um desses bancos de dados na empresa de inteligência artificial Clarifai. Ela disse que deixou a empresa em Nova York em janeiro para protestar contra essas práticas.” "Quanto mais onipresente o reconhecimento facial se torna, mais expostos estamos todos a fazer parte do processo", disse a supervisora.
"Não queremos que nossos rostos sejam armazenados em vastos bancos de dados, sejam eles públicos ou privados", assim se manifestou o jornal britânico The Guardian, em Editorial, no último dia 9 de julho. Segundo o The Guardian, "O grupo de pressão Liberty denunciou o reconhecimento facial automático como “arsênico no suprimento de água da democracia”. Tem o potencial de abolir a privacidade em lugares públicos. Em um país como a Grã-Bretanha, que já tem a maior densidade de câmeras de CCTV no mundo ocidental, isso poderia significar que não havia lugar em nenhuma cidade que alguém pudesse andar com o rosto descoberto sem ser potencialmente visível para a polícia. Já tivemos um antegosto desse aspecto do futuro no processo judicial instaurado no País de Gales por Ed Bridges contra a polícia por seu julgamento da tecnologia lá. Bridges, um ex-vereador do Lib Dem, cuja foto está em toda a Internet agora, afirma que o uso da tecnologia de reconhecimento facial automático é totalmente desproporcional aos benefícios de combate ao crime. A cidade de São Francisco já barrou o uso de reconhecimento facial automático por policiais com base semelhante, e a Liberty argumenta que isso mostra que o uso e a disseminação da tecnologia não são inevitáveis."
Durante o carnaval, câmeras rotineiras, instaladas no Terminal de ônibus de Salvador, mas com reconhecimento facial, flagraram um indivíduo procurado há anos pela polícia. Com base no reconhecimento facial, foi fácil monitorar os passos do fugitivo e prendê-lo. Não há dúvidas de que é um poderoso instrumento para prevenir ou descobrir eventuais crimes. Mas, da mesma forma, a sensação de estar sendo vigiado por câmeras 24 horas por dia não é das mais agradáveis. A não ser em casos excepcionais, essas imagens não podem ser usadas pelas autoridades como se fosse um capricho tecnológico ou mesmo para ajudar numa investigação ou vigiar alguém, sem autorização judicial. Mas certamente você não sabe o que estão fazendo com suas imagens. O Big Brother, o verdadeiro, preconizado por George Orwell*, realmente chegou.
*George Orwell é autor, entre outros livros, de "1984", publicado em 1949. É uma distopia futurista, de uma sociedade onde todos são vigiados pelo Grande irmão.
Fotos: CreditOpen Data Commons Public Domain Dedication and License, via Megapixels, The New York Times.
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