Flamengo incendio CT 2019Nem bem o País conseguiu assimilar a tragédia de Brumadinho, incêndio no alojamento do CT do Flamengo, no Rio de Janeiro, tira a vida de 10 adolescentes, reféns de instalações de alto risco que não tinham licença para funcionar. 

A triste rotina de acidentes graves que poderiam ser evitados se repetiu nesta sexta-feira, 8 de janeiro, no Rio de Janeiro. A morte de 10 adolescentes, entre 14 e 16 anos, é a crônica da crise anunciada. Eles dormiam em contêineres, adaptados para quartos. Cada cômodo tinha um aparelho de ar refrigerado. Confinados ali, quando o incêndio começou, quem acordou ainda teve alguma chance de se salvar. Mas já se admite que a maioria dos 10 garotos que morreram, nem chegaram a acordar, intoxicados por uma fumaça preta, altamente tóxica, emanada das paredes dos contêiners. A tragédia só não foi maior, porque muitos atletas foram dispensados e resolveram dormir em casa. Mesmo assim, 26 jovens estavam nos alojamentos no dia da tragédia.

Em crises como essa, a tendência das empresas é tentar se eximir de responsabilidade. Mas, numa análise preliminar deste caso, a realidade é uma só: os jovens estavam sob a guarda e responsabilidade do Flamengo. E ele se mostrou incapaz de garantir o bem mais precioso de qualquer ser humano: a vida. Não há qualquer argumento que exima a responsabilidade do clube. Em cadeia, a prefeitura do Rio e o Corpo de Bombeiros também podem ser responsabilizados. Como, em parte, aconteceu em Santa Maria.

O Flamengo defende o uso de contêineres do Ninho do Urubu, considerando o “alojamento confortável”. Nem uma coisa, nem outra. Especialistas ouvidos pela imprensa disseram que o contêiner não deveria ser usado para quartos. Pode servir para escritórios, onde o ar refrigerado está sempre monitorado. Além disso, surgiram dúvidas sobre o material utilizado nos contêiners, que conteria “poliuretano”, mesmo material inflamável usado no teto da boate Kiss, em Santa Maria, em janeiro de 2013, que deixou 242 mortos. Em contato com o fogo, produz uma fumaça altamente tóxica.

O contêiner, feito de metal, potencializou o calor das chamas e transformou o dormitório em uma verdadeira estufa. O espaço quase todo fechado e com gases acumulados alterou até mesmo a forma de carbonização dos corpos, que chegou a um alto grau de deterioração, explicam os peritos.

Diante da gravidade desse acidente, há uma tendência de se terceirizar a crise. Há outros intervenientes nessa crise. Dividi-la com os bombeiros, que não fizeram vistoria nos alojamentos; ou a prefeitura do Rio, que se limitou a aplicar multas, não alivia a responsabilidade do Flamengo. Supõe-se que uma das causas do incêndio podem ter sido picos de energia, provocados por temporal no Rio, e que teriam causado um curto-circuito no ar refrigerado. Isso, só a perícia poderá responder.

Comunicação pobre e omissa

Flamengo dez vitimasO Flamengo foi extremamente lento na resposta a essa crise. O incêndio começou pouco depois das 5 horas da madrugada. Às 10 horas (cinco horas depois da tragédia), o clube carioca não tinha feito qualquer manifestação oficial, enquanto proliferava a repercussão nas redes sociais e a mídia já ouvia especialistas, testemunhas, policiais, bombeiros, esportistas. E sequer o site do clube fazia qualquer menção ao acidente. Era como se o Clube dissesse: “não tenho nada a ver com isso”. Terrível pisada na bola de uma associação com milhões de seguidores nas redes sociais e milhares de sócios.

Após o meio dia, o presidente do Clube foi ao encontro da imprensa. Numa declaração curta, ainda tentou se desculpar, por não ter atendido antes, porque estava envolvido no acidente. Ele esqueceu que dar satisfação à opinião pública, sobre um fato grave, com 10 mortos, faz parte dos mandamentos da boa gestão de crise. Isso vale para uma empresa de aviação, para uma mineradora, como para um clube esportivo, não importa quantos tenham morrido. Só depois do pronunciamento do presidente, o Flamengo inseriu um link com a declaração do porta-voz (como se fosse uma Nota) e a palavra “luto”. Muito pouco, para quem devia explicações. 

Na manhã seguinte, o diretor-executivo do Flamengo, Reinaldo Belotti, fez novo “pronunciamento” se defendendo, alegando que o alojamento era “confortável”. Mas não concedeu entrevista. “Aconteceu um acidente trágico. Não foi por falta de investimento do Flamengo, não foi por falta de cuidado...” que a tragédia aconteceu, disse o dirigente, que evitou comentar a informação da prefeitura do Rio de Janeiro sobre as 31 multas, como também a falta de licença do Corpo de Bombeiros. Tudo isso, inviabilizaria a utilização daqueles contêiners como dormitórios. O fato objetivo é que o uso daquelas instalações, como alojamento, era ignorado pela prefeitura, porque nem constava do projeto. Ou seja, no limite, era um dormitório clandestino.

Em resumo, ele declarou, novamente se esquivando de uma responsabilidade direta no incêndio: “O CT, suas licenças, seus alvarás, suas multas... Na realidade, isso não tem nada a ver com o acidente que ocorreu”. Só faltava o diretor dizer que o incêndio foi uma “fatalidade”, como torcedores e até jogadores sugeriram. Não foi.

Gerardo Portela, engenheiro de riscos e segurança, entrevistado pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, diz a respeito da tragédia que “quem gera o risco sempre é responsável pelas consequências desse risco, principalmente quando acontece uma tragédia com fatalidades."  Para o professor de direito da UERJ, Gustavo Binenbjom, da mesma forma, “a decisão dos dirigentes do clube de permitir o funcionamento de um centro de treinamento sem o alavará para funcionamento desse centro, significa assumir o risco de qualquer acidente, de qualquer problema que houvesse naquele local. E isso é uma responsabilidade num grau superior que a mera culpa, o que atrai para o caso uma responsabilidade baseada pelo menos no dolo eventual."

O Corpo de Bombeiros parece não concordar com a versão dos dirigentes. Além de confirmar a falta do alvará de funcionamento, tanto dos bombeiros, quanto da Prefeitura, o Comandante classificou as instalações como “puxadinho”.  No local, a autorização registrada na prefeitura era para funcionar um estacionamento.

Faltou gestão de riscos

Uma boa gestão de risco, inclusive sobre saídas de escape dos contêiners, treinamento de uso de extintores, brigada de incêndio (não se ouviu qualquer menção à brigada de incêndio) e monitoramento permanente das instalações elétricas, combinada com a do ar refrigerado, tudo isso poderia ter diminuído os riscos de um incêndio. Por que não havia alarme de incêndios? Havia alguém de plantão, vigiando os alojamentos, que ao primeiro sinal de fogo daria o alarme?

Não precisa ser especialista em gestão de risco para deduzir que os meninos estavam numa arapuca. A primeira coisa que salta aos olhos nas imagens da fuga dos que se salvaram é a extrema dificuldade de evacuação, pois havia uma única porta. Era uma “boate Kiss” em miniatura, sem rotas de fuga para o caso de um incêndio. Os meninos estavam ali, de certo modo, confinados e os que morreram não tiveram a mínima chance de se salvar. Os que escaparam foi porque acordaram e foram rápidos em descobrir que havia fogo nas instalações. As janelas dos contêiners tinham grades.

Em resumo. A tragédia que vitimou 10 jovens e feriu mais três é mais uma na conta de uma gestão falha, marcada pelo improviso, associada e um poder público leniente e omisso. Como um órgão público emite 30 multas e nada acontece? A sucessão de multas era o sinal para não pagar. O caminho natural seria: não pagou a primeira, interditar o local. Ali, de certo modo, como em tantos outros casos no Brasil, havia um pacto subliminar de conivência. A empresa (no caso o Flamengo) finge que tá cumprindo as normas ou corrigindo os problemas e a prefeitura finge que pune, aplicando multas. Não sabemos o que é mais grave, se o uso inadequado dos contêiners ou a omissão da prefeitura e do Corpo de Bombeiros.

Para o professor de ética e filosofia da Unicamp, Roberto Romano, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, “a responsabilidade é a base da democracia moderna. O que nos EUA chamam de “accountability”.  Aqui isso não existe, todo mundo acha que pode fazer o que quiser porque não vai pagar por isso, tanto a sociedade quanto as autoridades.” Para o antropólogo Roberto da Matta, acontecimentos ditos inevitáveis podiam ser prevenidos e “hoje todo mundo sabe disso”. A maioria dos especialistas diz que não temos cultura de segurança. Exemplo são casos como da boate Kiss em Santa Maria, do Museu Nacional ou do desastre de Mariana, com a Samarco. A dificuldade de apontar culpados acaba consagrando a impunidade. E a repetição de acidentes.

As vítimas da tragédia: Arthur Vinicius Silva, 14 anos; Athila Paixão, 14 anos; Bernardo Pisetta, 15 anos; Christian Esmerio, 15 anos; Gedson Santos, 14 anos; Jorge Eduardo, 15 anos; Pablo Henrique, 14 anos; Samuel Thomas Rosa, 15 anos; Vitor Isaías, 15 anos; Rykelmo Viana, 16 anos.

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