Hollywood já está de olho nos “meninos da caverna”. Realmente, vivemos nas duas últimas semanas um roteiro de cinema. O último membro do time de futebol “Javalis Selvagens” e seu assistente técnico foram retirados de uma caverna inundada no norte da Tailândia, pondo fim a uma provação de quase três semanas, que levou a um esforço internacional de resgate e cativou audiências em todo o mundo. Não havia quem não torcesse pelos meninos e pelos mergulhadores. De uma escolinha em São Paulo, aos craques da Copa do Mundo, que se pronunciaram nas redes sociais e na imprensa, incluindo Cristiano Ronaldo. O drama dos meninos foi objeto de comentários de chefes de governo aos de celebridades.
O 12º garoto e seu técnico foram os últimos a serem resgatados na terça-feira, 10, depois de uma operação complicada de vários dias de meticuloso planejamento, cooperação e até de exercícios de simulações. Foram três dias para libertar a equipe dos Javalis, que ficou presa desde 23 de junho, quando a água das enxurradas, comuns na região nesta época, os isolou nas profundezas da caverna, a cerca de 4 km da entrada principal e da base montada pelas autoridades. Descobrir onde estavam já foi um feito inesquecível para a equipe de dois mergulhares britânicos e para os meninos. Depois de várias horas mergulhando e explorando a caverna, que tem várias passagens estreitas e perigosas, sem pistas, os mergulhadores conseguiram emergir das águas, como por milagre, na frente das 13 pessoas perdidas, na escuridão. Eles estavam num lugar mais alto para fugir da enxurrada, que acabou alagando a caverna, muito rapidamente.
Nos últimos 18 dias, o que começou como uma busca local pelos 13 desaparecidos, se transformou em uma complexa operação de resgate, envolvendo centenas de especialistas de vários países para ajudar, muitos deles voluntários. Cerca de 90 mergulhadores, sendo 40 da Tailândia e 50 de outros países faziam parte da equipe de salvamento. Ao todo, especula-se que cerca de mil pessoas, entre policiais, soldados, mergulhadores, médicos, enfermeiros, voluntários e espeleólogos (especialista em exploração de cavernas) de todo o mundo se reuniram para descobrir um meio de tirar os 12 meninos e o técnico das profundezas da caverna, sem riscos. Sem falar de jornalistas de todo o mundo que foram à Tailândia para cobrir o acontecimento.
Os pais dos meninos mantiveram uma vigília constante fora da caverna, desde que eles desapareceram, fazendo uma corrente religiosa e apoiando os voluntários, que cozinhavam e davam suporte às equipes de resgate. Ao fim da operação dos últimos remanescentes, todos os meninos e o treinador foram transportados de helicóptero e de ambulância para um hospital próximo, onde oito dos companheiros de equipe já se recuperavam, depois de serem resgatados no domingo e na segunda-feira. Para se ter uma ideia da dificuldade do resgate, a última operação durou nove horas, desde o momento em que os mergulhadores entraram na caverna para trazer os meninos e fazer o percurso de volta. Uma tarefa extremamente cansativa e perigosa, porque havia passagens subterrâneas apertadas e alagadas, com altura de no máximo 60 centímetros.
O desafio do resgate
Com idades entre 11 e 16, os meninos não tinham qualquer experiência em mergulho, mas rapidamente foram instruídos dos rudimentos básicos de uso da máscara de mergulho. Mergulhadores tailandeses e estrangeiros fizeram treinamentos simulados com os garotos, dentro das limitadas possibilidades físicas deles, próximo à enlameada plataforma, onde eles foram encontrados. Em 3 de julho, a expectativa ainda era de que esse resgate poderia durar meses, tendo em vista a dificuldade de montar uma operação com baixo risco. Foi preciso primeiro estudar as alternativas que poderiam ser usadas, não descartando a hipótese de ser aberto um buraco na montanha para chegar até os meninos. Algo que se mostrou inviável ou demorado.
A história de resiliência dos meninos e do professor, sob circunstâncias extremamente difíceis, cativou a atenção das pessoas ao redor do mundo. “Eles estão sendo forçados a fazer algo que nenhuma criança fez antes. Não é, de jeito nenhum, normal para crianças irem mergulhar em uma caverna aos 11 anos”, disse em entrevista à rede BBC, Ivan Karadzic, dono de uma agência de mergulho na Tailândia. Além disso, com corpos debilitados pela falta de alimentos, alguns certamente com problemas respiratórios pelo frio e a umidade, colocar uma máscara de mergulho, mesmo para proteção e sob alta tensão, seria algo extremamente arriscado.
"Nós chamamos essa missão impossível porque choveu todos os dias ... mas com nossa determinação e equipamentos nós lutamos contra a natureza", disse Narongsak Osatanakorn, governador da província de Chiang Rai. Especialistas se preocupavam que a angustiante jornada pudesse deixar os garotos em pânico, causando um acidente debaixo d’água, como o esgotamento precipitado dos tubos de oxigênio. Essas preocupações levaram os socorristas a aprovarem o uso de um sedativo leve para acalmá-los, antes do resgate. Segundo os médicos “um calmante de dosagem mínima” foi usado para tranquilizar os garotos diante do terrível mergulho para a liberdade – grande parte feito pela água suja e barrenta, em condições de pouquíssima, ou nenhuma, visibilidade. Se um deles entrasse em pânico, poderia colocar toda a equipe de mergulhadores que o acompanhava em perigo. Tudo que facilitasse o resgate foi utilizado, após minucioso planejamento. Cada menino foi acompanhado no trajeto por dois mergulhadores.
No início do mês, quando os meninos foram encontrados, mergulhadores experientes, como Peter Wolf, da Associação de Mergulhadores de Caverna da Austrália, asseguravam que “provavelmente existem muito poucas pessoas no planeta que podem realmente levar comida para eles.” Para se ter ideia do quanto representou de desafio o resgate nas circunstâncias atuais, como ocorreu, no início de julho, Edd Sorenson, da International Cave Rescue and Recovery, dizia que “nenhum dos rapazes pode nadar ou mergulhar, e advertiu que seria “incrivelmente perigoso” para alguém sem experiência navegar na caverna com visibilidade quase nula e água corrente.” E que a melhor opção seria deixá-los lá, esperando alguns meses, até que a água baixasse, dando-lhes conforto de alimentação, assistência psicológica, religiosa, abrigo e oxigênio. Daí se deduz como foi difícil tomar uma decisão sobre a forma de resgatá-los.
“Desde que as crianças saibam que sabemos onde elas estão, elas têm comida, uma maneira de manter os sistemas de aquecimento, água ou filtragem e luz, seria realmente mais seguro esperar. Mas levá-los na água seria extremamente perigoso para as crianças e o treinador, mas também para os socorristas ”, concluiu o executivo.
Um case de sucesso
A torcida pelos meninos assemelhou-se à que foi feita, em 2010, quando 33 mineiros chilenos ficaram presos numa galeria da mina San José, que desabou, em Copiapó, nas montanhas do Chile. Os 33 mineiros ficaram 17 dias sem contato, quando foram achados e contactados pela equipe de resgate, que perfurou a rocha e organizou um sistema de comunicação. Esse processo foi o primeiro para dar tranquilidade ao grupo e, assim, permitir organizar a forma como eles seriam monitorados no confinamento. O desabamento ocorreu em 5 de agosto de 2010. Não havia precedente de um resgate feito em igual profundidade. O Chile foi humilde em buscar auxílio em países que já tinham certa tecnologia em resgates, como Estados Unidos, Austrália, Rússia e Japão.
O gerenciamento desta crise é citado como um case de sucesso, graças à gestão do hefe do ministério da Mineração do Chile, Laurence Golborne, que durante quatro meses esteve presente, tanto para prestar todas as informações, com a maior transparência, para centenas de jornalistas de todo o mundo que acorreram ao Chile, quanto para gerenciar a parte operacional do resgate. Ele nunca prometeu o que não poderia cumprir. Muitos especialistas duvidaram da empreitada. O sucesso veio no dia 13 de outubro de 2010, dois meses antes do previsto, quando um a um, durante horas, os mineiros foram resgatados das profundezas, numa espécie de “nave” espacial, construída para essa finalidade. A audiência pelas TVs de todo o mundo, da transmissão ao vivo do resgate, teria sido de mais de 1 bilhão de pessoas.
Lições de crise
O que podemos aprender em gestão de crises com esse interessante case da Tailândia, que mobilizou o mundo nos últimos dias? É até irônico a atenção global estar voltada para esses 12 meninos, presos numa caverna, por uma falha de segurança ou por um descuido do professor, em plena Copa do Mundo. Isso, porque a violência contra crianças, a fuga como refugiados, por territórios em guerra ou ocupados por terroristas, as lutas tribais, os atentados a minorias e as guerras matam milhares de crianças todos os dias, e o mundo parece ter-se acostumado com essa rotina. Apenas na guerra da Síria, cerca de mil crianças morreram, em 2018, em bombardeios ou tiroteios provocados pelo próprio líder do país e pelas forças de coalisão. A Tailândia estava mostrando, com o esforço e os recursos empregados, que valia a pena lutar pela vida.
Mas o resgate na Tailândia chamou atenção pela forma como os meninos ficaram presos dentro da caverna. O homem, historicamente, parece gostar desses desafios. Como disse um leitor em carta enviada ao New York Times, sobre o resgate, “a história em curso do resgate da equipe de futebol da Tailândia é uma antítese bem-vinda às notícias às quais nos acostumamos. É uma história de cooperação internacional; de aventura e desventura; da importância da perícia e dos fatos; de verdadeira coragem e sacrifício altruísta; de drama humano não relacionado à violência, raiva ou ganância; da agonia compartilhada e alegria dos pais em todos os lugares que estão seguindo os esforços de resgate.”
Foi isso que aconteceu na Tailândia. O governo do país, os militares, principalmente a Marinha, mais os voluntários, abraçaram a causa do time de futebol dos Javalis Selvagens e estabeleceram como meta tirar os meninos, sem ainda saber exatamente como. Logo em seguida mergulhadores e especialistas em resgate apareceram de todas as partes do mundo, incluindo alguns em férias na região. Pronto. Estava formada a corrente sob o comando dos militares da Tailândia (não esquecer que o regime lá é militar). Eles criaram uma “sala de guerra” próxima à caverna, de onde saíam as ordens e onde se estudava a melhor forma de tirar a equipe e o treinador da caverna. Em nenhum momento se admitiu que seria uma tarefa fácil.
No início, falaram que o resgate poderia levar meses, uma vez que a caverna estava inundada, dificultando levar cilindros de oxigênio e retirar crianças sem experiência em mergulho. Isso, provavelmente, foi uma estratégia da equipe de resgate para não criar falsas expectativas. No dia 4 de julho, um balde de água fria nas equipes de resgate foi a morte de um mergulhador. Na volta do trajeto, ele ficou sem ar, por um problema no cilindro, e acabou morrendo. Mesmo alguém experiente, como foi o caso de Saman Kuman, 38 anos, um militar do grupo de elite da Marinha e atleta de alto rendimento, sair da caverna, no escuro, por trajeto pouco conhecido, era um desafio para poucos.
Sala de situação e gestão de crise
Situações de crise grave como essa, sem uma tecnologia pronta para ser aplicada, onde grande parte da equipe pela primeira vez estava tentando fazer um resgate dessa natureza, exigem alguns requisitos básicos: um coordenador que tenha autoridade para resolver tudo, com rapidez, e liberdade para requisitar do governo, de empresas privadas e até de outros países o que for necessário para facilitar o trabalho de retirada dos meninos. No caso, o coordenador, junto com a equipe que ele estava liderando, tomou a decisão de resgatá-los rapidamente. Muito provavelmente, em vista das informações meterorológicas que davam conta de intensidade das chuvas no local, nos próximos dias, o que poderia agravar e impedir o resgate.
O que mais seria preciso? Uma excelente equipe de apoio, com especialistas em todas as áreas que poderiam ajudar no resgate e no socorro aos meninos: mergulho, explosivos, perfuração, inundação, clima, confinamento, espeleologia, medicina e saúde, alimentação e nutrição, assistência religiosa e social. A logística toda de uma tarefa dessas vai de coordenar os suprimentos às equipes (alimentação, equipamentos, vestuário, material de proteção, uniformes especiais), até equipes médicas de prontidão para eventuais acidentes; transporte, equipamentos de comunicações. É quase uma logística de guerra, porque o inimigo, nesse caso, era o tempo, tanto no sentido da pressão pela saúde dos meninos, quanto da meteorologia. Várias condicionantes poderiam dificultar o resgate. Mas, nada poderia falhar.
Nesses casos, não se pode prescindir de uma boa equipe de comunicação, até porque os parentes e a imprensa se dirigiram para o local do resgate, a mais ou menos 70 km da cidade, e precisavam de informação. Importante também ter experts em redes sociais. Algumas informações, certamente, não podiam vazar. Nem tudo poderia ser divulgado, por medida de segurança e preservação das vítimas. Por isso, alguém experiente para coordenar a área de comunicação, com cobertura 24 horas. Todas as entrevistas precisariam estar concentradas num único porta-voz para evitar o boato, informações desencontradas ou parciais, que pudessem tumultuar os trabalhos.
O descanso dos guerreiros
'Eu posso dormir bem agora'. Nopparat Kanthawong, treinador da equipe, disse ao canal de TV CNN que a espera pelos meninos e seu assistente técnico foi de lenta agonia. "Estou muito mais feliz do que outros dias, porque esperamos por este dia há muito tempo", disse ele em uma entrevista.
Ele acrescentou: "Eu posso dormir bem agora e ter bons sonhos pelo menos por esta noite". Kanthawong disse que não sabia que os jogadores e o técnico estavam indo para a caverna. "Neste momento, agora que o treinador está fora, espere até que ele dê qualquer declaração e vamos apenas esperar por completo e descobrir (por que eles entraram na caverna) ao mesmo tempo", disse ele. Kanthawong disse que está ansioso para consolar seus jogadores agora que estão seguros. "Vou dar-lhes um abraço", disse ele.
Meninos resgatados se recuperam no hospital
A exemplo dos mineiros no Chile, após o resgate o trabalho não termina. Essa fase pós-crise é muito importante, quando os meninos precisarão não só de acompanhamento quanto à saúde, mas também quanto ao assédio da imprensa e de curiosos. Porque eles ficaram “famosos” e, de repente, podem se deslumbrar e cometer erros, inclusive com pessoas que poderão se aproveitar da ingenuidade dos pais, que são pessoas humildes. Será preciso gerenciar a forma como ficarão na escola, para não prejudicar o estudo deles. E nem serem explorados por espertalhões. Cada passo deles terá que ser gerenciado.
No início da terça-feira, mais detalhes surgiram sobre as idades e condições das crianças já libertadas da caverna. Todos os oito meninos resgatados no domingo e segunda-feira estão sendo tratados em uma ala de isolamento em um hospital de Chiang Rai. Autoridades médicas disseram a repórteres na terça-feira que estão saudáveis, livres de febre, mentalmente em forma e "parecem estar em alto astral". Alguns meninos e o treinador têm problemas nos pulmões.
O secretário da Saúde da Tailândia, Jedsada Chokedamrongsook disse que o primeiro grupo de meninos retirados no domingo tinha entre 14 e 16 anos. A temperatura do corpo era muito baixa quando emergiram, e dois são suspeitos de ter inflamação no pulmão. Mesmo assim, o estado geral deles é muito bom. Famílias dos quatro primeiros viram seus filhos através de uma janela de vidro, disse Chokedamrongsook. Eles também conseguiram falar ao telefone. Eles poderão entrar na sala se os testes mostrarem que os meninos estão livres de infecção.
A liderança do treinador
A exemplo do que aconteceu com os mineiros no Chile, em momentos como esse, com grupos perdidos na selva, confinados, como os garotos da Tailândia, sempre precisa aparecer alguém no grupo para ser o líder, que evite o pânico, baixe o estresse e administre de forma racional a crise. Importante destacar, nesse desastre, o papel do treinador e professor dos meninos, Ekaphol Chantawong, 25 anos, ex-monge budista, dentro da caverna, numa situação de extrema vulnerabilidade física e psicológica. Ele foi o elemento que manteve os meninos juntos, unidos e os alimentou, inclusive com o próprio sacrifício. Deixou de comer para alimentar os 12 garotos e por isso, segundo relatos, era um dos mais debilitados fisicamente. Não esquecer que eles passaram 11 dias sem alimento regular, até serem descobertos.
O auxiliar também usou técnicas de meditação para acalmar os meninos e ajudar no autocontrole, importante para situações em que as pessoas ficam presas, em confinamentos prolongados. O treinador poderia ser o vilão dessa história, porque, como único adulto, levou os meninos a uma situação de perigo de vida, entrando na caverna Tham Luang, apesar dos avisos de “perigo de inundações”. Eles já tinham feito um passeio nessa caverna, tempos atrás. Mas, como os meninos, ele acabou vítima da própria imprudência ou descuido. Pelo forma como administrou uma situação extrema de perigo com os menores, mantendo-os unidos e calmos, durante vários dias, sem alimentos, sem agasalhos e sem qualquer notícia externa, já pode ser considerado um herói.
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