Ano passado, na época do Natal, publicamos um artigo sobre a transformação do Natal na festa do consumo. Nada mudou de lá para cá. Piorou. Em alguns países, como Portugal, surgiu um movimento “Não ao consumo desenfreado no Natal”. Até os consumidores cansaram dessa mercantilização da maior festa da Cristandade.
Com o mundo numa das maiores crises econômicas dos últimos tempos e convulsões se disseminando pelo mundo, talvez o Natal seja uma boa ocasião para repensarmos nossos conceitos em relação à nova religião que o capitalismo teima em nos induzir a aderir.
Por oportuno, reproduzo aqui o texto publicado no ano passado, até porque o nascimento de Cristo, a festa da família, da confraternização acabou realmente se transformando, lamentavelmente, numa grande feira livre.
No meio do shopping, empurrada pela multidão, que se acotovela para disputar uma mercadoria em promoção, uma criança é espremida contra uma prateleira de brinquedos. Ela é mais uma compradora potencial, fisgada pela indústria do consumo ao sentir na pele essa roda viva de sedução, que transforma qualquer comemoração festiva em cifrões. Perguntem para essa criança, que aniversário ela irá comemorar dia 25? Certamente não saberá.
É isso mesmo. O nascimento de Cristo, o aniversário de Jesus é apenas um detalhe. A civilização do século XXI levou ao extremo o ritual de transformar tudo em mercadoria. Natal é apenas a senha para que a publicidade invista milhões na conquista de consumidores, seduzidos pelos encantos das ofertas. Cada vez menos pessoas associam Natal à maior festa da Cristandade. Comemorado pelos mais diferentes povos, do Ocidente ao Oriente. Não importa a religião, não há quem fique indiferente ante a proximidade das festividades do Natal. Mas os efeitos musicais e de luzes, embora mexam com o emocional, não estão lá para lembrar a chegada do Messias, mas para encantar consumidores que ainda relutam em resistir às tentações.
Falar em festa do nascimento de Cristo poderia soar estranho para essa criança, mesmo que seus pais a tenham criado com presépio, árvore de Natal, canções religiosas e coisas do gênero. Só que o som da publicidade e da indústria do consumo é bem mais sedutor. E é isso que ela ouve.
O chamado espírito de Natal só existe como obrigação utilitária, de comprar presente, viajar, mesmo à custa de filas e atropelos, adquirir supérfluos e reunir a família numa ceia. Com muita bebida, de preferência. Quase ninguém se dá conta de que nessa noite se comemora um nascimento que, para os cristãos, mudou a história da Humanidade. E que vai muito além de corridas às compras, engarrafamentos, apertos, descontos, sorteios, shoppings e bebedeiras. Mas quem se lembra disso?
Por que o Natal perdeu o encanto de anos passados, quando não havia a febre do consumismo desenfreado. Meninos, em sua maioria, contentavam-se em ganhar uma bola de borracha, um carrinho de madeira. Meninas sonhavam com uma boneca, de qualquer tipo. Podia ser de pano. E que festa faziam esses presentes, mostrados para os amigos no dia 25. Dormia-se cedo, porque se as crianças ficassem acordadas até muito tarde, o Papai Noel (embora ninguém acreditasse), poderia passar ao largo e não deixar o presente. A festa do dia 25 era de Cristo, o aniversariante. Melhores roupas, melhores sapatos, todos para a igreja. Nós éramos meros coadjuvantes.
Hoje os presentes são impostos. E os papais-noéis andam pelo shopping e não nas residências. No trabalho, inventou-se a troca de presentes na festa do amigo secreto ou oculto, com preço pré-estabelecido. Importa mais quanto o presente custa, do que o valor simbólico. Corre-se o risco de sortear como “amigo” exatamente aquele com quem passamos o ano com diferenças profissionais.
Os filhos impõem presentes aos pais, mesmo que durante o ano tenham feito pouco para merecê-los. Não importa, aqui vale menos o mérito do que o ritual. Os pais, mesmo com o orçamento apertado, fazem mais uma dívida para comprar presentes. Para não fazer feio ou para não deixar o filho psicologicamente abalado perante os vizinhos. Bola? Boneca? Não. Bicicleta, Play Station, telefone celular. Por que não um iPod? Quem sabe um carro? Não apenas um, mas vários presentes. Afinal, pode-se pagar em 80 meses.
Ou seja, as crianças exigem e concorrem com os adultos no preço e na tecnologia. Não aguardam um presente, impõem. É uma disputa pelo produto mais moderno e diferente, não importa quanta custa. De preferência o da moda. Afinal, para que existem as promoções? Natal é sinônimo de promoção. É a hora de comprar. Quanto mais supérfluo, melhor. Pois todo mundo compra. Aqui também funciona o efeito manada.
A idéia de que precisamos comprar e ostentar para sermos felizes é falsa. Já existem estudos sobre consumo e felicidade que mostram: mais valem experiências, como viagens, shows, cursos, passeios do que acúmulo de bens materiais. Ou seja, aproveitar mais, com menos. O que fortaleceria nossos vínculos sociais e contribuiria para a felicidade. É por isso que nos lembramos com saudades das boas reuniões festivas, seja de Natal, Ano Novo, aniversários, quando os encontros com parentes e amigos foram mais importantes do que presentes caros de que não nos lembramos mais.
O mundo capitalista transformou os shopping-centers em catedrais do consumo. Conseguiram transferir as comemorações do aniversário de Jesus para as caixas registradoras, regadas a cartão de crédito e cheques pré-datados. Ou seja, Jesus aniversaria, mas quem ganha presente são as indústrias, o comércio, a publicidade. Enquanto isso, o chamado espírito de Natal é apenas um mote para criar belas peças publicitárias. Embora convidadas para o aniversário, as crianças realmente estão preocupadas com outras coisas. Não sabem o que aconteceu na noite de 24 para 25 de dezembro. Jesus, possivelmente, irá comemorar o aniversário cada vez mais sozinho.