Seria o caso de perguntar: como chegamos ao atual cenário de crise, não previsto nessa dimensão pelos mais hábeis analistas econômicos e políticos? Resposta: pela incapacidade do governo de gerenciar as crises que surgiram nos últimos anos. Pela dificuldade da presidente da República articular-se com o Congresso e montar equipes econômica e política de peso, com discernimento e capacidade para construir um projeto de país. Pela omissão de um Congresso patrimonialista e comprometido com grandes grupos, sem representatividade, que prefere não discutir temas polêmicos que possam ferir interesses corporativos. Com isso, ele anda na contramão das necessidades do país.
Foram 13 anos de governos do PT, com duas fases bem distintas. Lula voou em céu de brigadeiro favorecido pelo preço das commodities, o crescimento da China, o preço do petróleo, tudo antes e durante a crise econômica de 2008, sem alterar muito a política econômica do governo FHC. Mas infelizmente não teve coragem de enfrentar as reformas de que o país precisa. A festa de Lula teve um preço. Ele deixou a conta para Dilma pagar, entre elas uma Copa do Mundo e as Olimpíadas. Mas Dilma cometeu tantos erros no primeiro governo, que acabou jogando por terra muitas conquistas dos anos anteriores. Nem o mago João Santana conseguiu mascarar a omissão e os tropeços do governo, escancarados na campanha presidencial. Tudo isso mergulhou o país no caos em que hoje estamos metidos.
Não é preciso uma análise muito profunda para refletirmos sobre o momento que vivemos e por que o país chegou a esse ponto de inflexão, como bem define a etimologia da palavra “crise”: ruptura, mudança. Se não, vejamos:
· A forma de governar de Dilma, arrogante, autossuficiente, centralizadora, irritadiça com ministros e burocratas, imprensa, parlamentares e até com o Judiciário, o que a levou a desempenhar vários papéis, sem assumir na completude o de presidente. Ministra da Fazenda, das Minas e Energia, tudo ao mesmo tempo. Na economia, com ministro e equipe fracos, que faziam o que ela mandava, jogou o país na pior recessão dos últimos 25 anos e uma das piores da história.
· Ao tentar controlar tudo, não controlava nada. Basta citar o escândalo da Petrobras. Presidente do CA da empresa, no governo Lula, e depois presidente da República, defende-se alegando não saber o que acontecia na maior empresa brasileira. Decisões estratégicas foram tomadas, segundo a presidente, com base num "paper" com informações incompletas. Teria sido enganada. Não estamos falando de um boteco qualquer. O argumento do ex-presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli, na CPI da Petrobras, de que era impossível controlar a empresa soa como um acinte a qualquer gestor nesse país. Imaginem os CEOs da Apple, Amazon ou Microsoft irem à mídia e dizer algo parecido? Por isso, o TCU já sinalizou: pode arrolar Dilma e demais membros do CA como responsáveis pelo prejuízo de US$ 792 milhões na compra da usina de Pasadena, nos EUA.
· A postura imperial de Dilma não ajuda em períodos de crise. Essa “arrogância” do líder, dizem os especialistas em crises, é fatal para dificultar a reversão de uma situação negativa. Uma liderança carismática consegue mais rapidamente a adesão dos constituintes. Esse é um problema difícil de ser solucionado.
· A falta de compromisso em conter os gastos públicos. Depois da farra de aumentos salariais do serviço público na era Lula e de gastos sem controle nos dois governos, Dilma sob pressão e cobrança da sociedade anunciou um "pacote" de cortes no governo. Até hoje o país espera uma redução significativa na quantidade de ministérios e nos milhares de cargos comissionados. Houve um arremedo de reforma, com a extinção de algumas secretarias. Mas ficou tudo para depois. Este é um exemplo de como o governo age, quando precisa tomar decisões que mexem com interesses. Ele transmite a sensação do não acontecer. Os brasileiros perderam a confiança no poder de o governo fazer alguma coisa.
· A sede com que militantes e companheiros se apossaram dos cargos públicos, pouco preocupados com o que deveriam fazer pelo país, mas muito mais – salvo exceções – no que poderiam amealhar para o partido e para o próprio bolso. Esse comportamento que, naturalmente, não é de todos, manchou para sempre a bandeira da ética, tão cara ao partido. José Dirceu, na Casa Civil no governo Lula, e mesmo depois, quando foi expulso do Congresso, é o personagem emblemático desse projeto de interferir em todos os negócios do país para se beneficiar pessoalmente e ao partido. Esse aparelhamento da máquina estatal pode ser avaliado pelo que ocorreu em algumas estatais, como os Correios e a Petrobras, para citar duas grandes empresas, esta pivô do maior escândalo de corrupção da história do país. Apenas os prejuízos e os estragos na imagem da empresa já seriam bastantes para o governo (tanto Lula quanto Dilma) serem responsabilizados. Afinal, os diretores responsáveis pelo saque, hoje presos, foram todos nomeados pelos dois governos.
· A falta de um projeto de país. Tanto na educação, quanto na saúde e na economia. Na Educação, houve avanços, com programas que possibilitaram pessoas de menor renda completarem o ensino superior. Mas os padrões da educação brasileira ainda figuram na rabeira dos ranking internacionais. A crise nas universidades públicas – greves, ocupações, falta de recursos - fizeram-nas despencar nos principais ranking internacionais. Até mesmo a Base Nacional Comum Curricular (BNC), proposta pelo MEC, ora em discussão, recebeu severas críticas de especialistas, por não contemplar uma melhoria acentuada de disciplinas como Português e Matemática, os grandes gargalos dos alunos brasileiros. Para resumir, é preciso uma autêntica revolução no setor educacional do país e não vai ser como a atual forma de gestão que conseguiremos atingir nem 30% dos padrões de países desenvolvidos, como EUA e Reino Unido, por exemplo.
· A saúde no Brasil continua internada na UTI. Sem perspectivas de sair. O governo, embalado pelo sonho de bilhões de reais que viriam do pré-sal, gastou os tubos com obras faraônicas para a Copa, com estádios inúteis, e para as Olimpíadas no Rio de Janeiro. Hoje, o Rio é o triste modelo da falência do sistema de saúde brasileiro. Filas, falta de médicos, de leitos e de equipamentos nos hospitais e UPAs lembram muito mais um país de terceiro mundo.
· No âmbito da economia, os empresários perderam a confiança no governo pela sucessão de erros na política econômica. Grandes grupos econômicos foram favorecidos com financiamentos, entre eles as grandes empreiteiras ou conglomerados, vendidos num projeto que o governo chamou de "campeões nacionais", de que são tristes exemplos o Grupo OGX, de Eike Batista, e a própria telefônica Oi. A pequena e média empresa ficou à margem, até porque as taxas de juros também subiram no ano passado. Não há segmento que tenha escapado dos efeitos da má administração. Desse modelo, só quem não perdeu foram os grandes bancos e as montadoras de veículos. Aqueles continuam dando lucros bilionários, porque o próprio governo estimulou a tomada de crédito, na chamada política anticíclica, como se tivesse descoberto a panaceia para a crise econômica, enquanto EUA e Europa amargavam a mais grave crise desde 1929. Deu no que deu: mais de 55% da população brasileira endividada. As montadoras foram beneficiadas com isenções fiscais, para estimular as vendas. E não faltou denúncia também nesse campo.
A Operação Zelotes apura lobbies de várias montadoras que teriam pago para escritórios intermediarem edição de Medidas Provisórias que as beneficassem. Mesmo com todo esse lobby, as montadoras não conseguiram vencer a crise sem demissões. A CPI do Carf, a PF e o MP suspeitam que gente graúda participou desse esquema, de ministros até Lula. O prejuízo, naturalmente, acabou caindo sobre o Tesouro e pode ser superior ao que foi apurado até agora no escândalo da Petrobras. A “nova matriz macroeconômica” de Mantega e cia. expôs a fragilidade do modelo dilmista: inflação subiu aos piores níveis da era Real e o país mergulhou na recessão. Tudo nos números do governo Dilma é "pior". Apenas em 2015, a CNC estima que 100 mil lojas foram fechadas e 185 mil postos de trabalho acabaram. No geral, em 2015 o país fechou 1,54 milhão de empregos formais, principalmente no setor industrial, da construção civil à indústria naval.
· A falta de coragem e tirocínio político do governo para enfrentar e levar ao Congresso projetos de lei que poderiam ter melhorado a gestão das contas públicas e, com isso, evitado recorrer a expedientes condenados pelo TCU, como as “pedaladas”, com o objetivo de mascarar o déficit fiscal. Entre eles, as reformas política, tributária e da previdência. Se o governo tivesse tido a coragem e espírito público de patrocinar esses projetos, talvez não estivesse na situação atual e teria ficado na história, ao encaminhar o país para um futuro melhor. Pressionado e refém dos interesses privados do Congresso e dos chamados “movimentos sociais”, preferiu fingir-se de morto e não enfrentou as corporações para melhorar o país. Deu no que deu. Perdeu-se 14 anos nesse rame-rame.
· A falta de cultura política, de alguém com estatura de estadista nesse governo. Basta ver o nível do atual ministério, provavelmente o mais baixo na história do país. Com raríssimas exceções, nomes desconhecidos de técnicos ou políticos sem experiência, que vão para os cargos apenas para preencher a cota do partido, acabam transformando o ministério numa colcha de retalhos. O que um político de carteirinha ou um sindicalista que nunca desempenhou qualquer cargo de gestor vai fazer no ministério do Turismo, do Trabalho, das Comunicações, apenas para citar três? Algum tempo depois, os “companheiros” ou “aliados políticos” vão embora e descobre-se que o cargo foi usado não para solucionar os problemas da pasta, mas os do partido, dos correligionários ou o próprio. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o fundo de pensão Postalis, administrado por apaniguados que aplicaram milhões de reais em títulos da Venezuela e da Argentina. Alguém em sã consciência apostaria na Venezuela para aplicar volumosos recursos a longo prazo, destinados a garantir a aposentadoria de milhares de empregados? A conta sobrou para os contribuintes do Postalis. O pior é que essa prática não foi a exceção, mas tornou-se uma forma de gestão.
· Essa falta de um líder com perfil de estadista favorece o surgimento de lideranças capengas, de ocasião, que aparecem sabe-se lá de onde. O troca-troca nos ministérios impede a continuidade administrativa e gera uma administração por espasmos. A prioridade de um titular, acaba quando ele vai embora. Esse aparelhamento de ministérios e grandes empresas acaba baixando o nível das lideranças. O exemplo vem da própria presidente da República, sem experiência política e apenas com passagens pela área pública. Nos momentos cruciais do governo, principalmente nas crises, quando se exige do líder decisões corajosas, ela deixou de tomá-las porque estava atrelada a Lula, ao PT ou refém do Congresso. “A crise é o grande momento do líder”, diz o empresário Bill George. Sim, mas para isso é preciso ter aquele brilho que está na gênese dos grandes personagens, decisivos em momentos cruciais da história, como Churchill, De Gaulle, Kennedy, Gandhi, Mandela, Helmut Kohl e outros. “É evidente que a ausência de liderança amplifica a crise e a alonga no tempo. Faz a crise dentro da crise”, diz o cientista político Carlos Melo.
· A chegada de Lula ao poder foi comemorada e repercutiu no mundo por ter sido o primeiro migrante do Nordeste, operário de origem humilde, a chegar ao cargo máximo do país. Mas para isso ele teve que fazer concessões e acordos com partidos que estavam muito interessados, como sempre, no quanto o cargo poderia render para eles e os partidos, e não para os interesses do Brasil. Muito do que hoje estamos vendo sobre como os cargos são usados e como bilhões de reais foram desviados tem a ver com esse deslumbramento. Lula sempre desdenhou das denúncias ou do uso da máquina pública. A mídia que denunciava era acusada de fazer oposição e não ver o quanto de maravilhas o governo Lula fazia pelo país e, principalmente, pelos pobres, historicamente marginalizados. Irrigando os pequenos veículos de comunicação das capitais e interior com verba publicitária e sustentado por uma poderosa máquina de áulicos, como os movimentos sociais dos mais diferentes matizes, sindicatos, entidades estudantis, intelectuais de esquerda, movimentos religiosos, o governo conseguiu passar os últimos anos com altos índices de aprovação. Mas bastou chegar a crise, principalmente nos rincões do interior, para que a imagem do partido e do governante competente fosse posta em questão. Dilma foi a vítima, colhendo o pão que o diabo amassou. E também a culpada, segundo os analistas econômicos e os militantes mais fanáticos. O mensalão, com a prisão de vários "companheiros", as revelações do escândalo da Petrobras e outros tantos, a partir de 2014, quebraram o encanto do PT com a classe média.
· Tudo isso frustrou quem acreditou no projeto de poder do PT. Inclusive os militantes e milhares de filiados que são sérios. Muitos vieram para o governo para realmente trabalhar e colaborar para um novo Brasil. Infelizmente, faltou ao PT uma liderança que tivesse uma visão de estado. O partido perdeu bons quadros nos últimos anos. Lula cedeu ao grupos de poder e fez acordos com a chamada “vanguarda do atraso”, principalmente empreiteiras, sempre por trás dos grandes escândalos do país. Escolheu para presidente não a pessoa mais qualificada politicamente, mas, de forma pragmática, a que pudesse ganhar as eleições com o marketing de ser uma boa gerente, porque Lula sempre acreditou que poderia continuar controlando o PT e o governo. Após ter prometido o que jamais poderia cumprir na campanha política de 2014, no ano passado, bastaram alguns meses para o governo afundar. O resultado disso é um triste ocaso. O período Dilma ficará marcado como uma das piores gestões do país. Os analistas chegam a concluir que a única saída para vencer a crise seria o afastamento imediato da presidente, não importa quem assuma. Como nas crises graves, chegou o momento da ruptura, para o bem ou para o mal.
· Como diz o cientista político Carlos Melo, professor do Insper, “O fato é que o caldo entornou e entramos na crise grande, no tsunami, que está muito além das tempestades perfeitas. Não é o apocalipse, mas um brutal movimento dos solos. Terá consequências. Ninguém se iluda."