*Francisco Viana
Cassio: Reputação, reputação, perdi minha reputação! Perdi a parte imortal, senhor, de mim mesmo – e o que resta é animal. Minha reputação!
Iago: Honestamente, pensei que havia recebido algum ferimento no corpo, que é bem mais grave do que na reputação. Reputação é uma invenção inútil e fabricada, muitas vezes conseguida sem mérito e perdida sem merecimento (…)
O diálogo entre dois personagens de Shakespeare em Otelo dá medida da oposta que hoje a chamada grande mídia brasileira faz ao tratar do tema da reputação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que governou o país por dois mandatos consecutivos. O que de fato existe por trás, por exemplo, das múltiplas denúncias a envolver o triplex em Santos e o sítio em Atibaia, ambos envolvendo também a construtora OAS, ré na Operação Lava Jato? Aos temas em foco somam-se as denúncias, também contra Lula, sobre a operação Zelotes, relacionada com a venda de Medidas Provisórias e tráfico de influência.
É um cerco em muitas frentes. De um lado, a mídia passa a transmitir a percepção de que o governo Dilma Rousseff é corrupto, ineficiente e mentiroso. Portanto, fora do lugar, contrário aos interesses de crescimento e harmonia do país. O conflito dos valores do governo e os interesses brasileiros estariam na irrupção do escândalo da Petrobras, que teria falido a estatal. O impeachment da presidente passaria, assim, a ser indispensável para que uma nova etapa se inicie. De outro lado, há o ataque frontal a Lula. Ele é o principal líder político brasileiro no momento, de profundas raízes entre os trabalhadores e a gente simples. Como líder sindical, parou a produção. Como líder político, ganhou singular projeção internacional.
Se sua reputação é triturada, o governo da presidente Dilma Rousseff será, como desdobramento, também triturado. E a saída do PT e seus aliados do poder se tornará, por essa ótica, uma questão de tempo. Entre um extremo e outro chovem incessantemente as notícias negativas sobre o país. A associação é fácil: se o PT governa o país nos três últimos mandatos, obviamente é o responsável pelo caos brasileiro. Será?
Na forma, o cerco é uma reedição da onda conservadora que emerge na chamada grande imprensa sempre que o país se vê diante de um momento de decisão ou de mudança ao longo de mais de 135 anos, a contar da proclamação da República. No conteúdo, é bastante diferente. Na tragédia shakespeariana, o tema da reputação – o drama da perda, da sua construção e do merecimento – surge no contexto de ingenuidade de Otelo, o personagem central, que é persuadido por Iago de que sua mulher o trai e enlouquecido pelo ciúme mergulha no desequilíbrio emocional e na barbárie.
Como jamais encontraria prazer no mal, nem recorreria ao mal para ver concretizado seus interesses, ele jamais desconfiaria que alguém da sua confiança pudesse tramar o mal em benefício próprio. Justamente o que aconteceu. Seria, comparativamente ao que ocorre hoje, se a sociedade questionar o que deseja a grande mídia? Convencer a população de que Dilma-Lula representam o mal e, em consequência, devem ser afastados da política, é uma necessidade imperativa da realidade ou uma narrativa construída em nome de interesses de uma classe que sempre sonhou com uma república sem povo, uma democracia sem participação? O Governo é, de fato, incompetente? O triplex e o sítio são de propriedade do presidente Lula? Existe um lado obscuro na reputação do ex-presidente Lula que a sociedade precisa saber? Que lições se pode aprender com as posições da mídia nos diferentes momentos da história brasileira? São questões que afloram das contradições e ambiguidades do noticiário.
Em relação ao passado, a novidade é que a mídia não possui mais o mesmo poder de convencimento do passado. Nem, de longe, congrega a mesma credibilidade. No início do século XX, era comum que as pessoas se reunissem nas praças públicas, nos bares, nas casas, enfim, em diferentes lugares para discutir as notícias dos jornais. O que era noticiado continha muito valor emocional. Havia confiança. Claro, continua tendo, mas agora existe o contrapoder das mídias sociais. Tanto que jornais, revistas e emissoras de televisão e rádios são estigmatizados como parciais ou mesmo manipuladores ou mentirosos. Tanto que tudo de relevante que é noticiado na mídia tradicional, merece resposta imediata nas mídias sociais, em jornais, em blogs na Internet.
Há uma verdadeira guerra informativa (ou seria guerra de desinformação?), uma guerra de versões e confrontos em busca do controle dos cordões da opinião pública. Cabe ao cidadão, nesse ambiente de confronto em fatos e versões, de ilusões, interesses e, evidente, verdades que são construídas ao longo do processo comunicacional, separar o que é falso do que é fato. Separar o que é ideologismo do que é vontade de mudança, o que é ilusão do que é realidade, aqui entendida como o relacionamento do homem com a produção e destes consigo próprio e com os outros, o que é utopia concreta do que é devaneio ou distopia.
No final sangrento de Otelo, tragédia escrita em 1603 ou 1604, o personagem, antes de descobrir que foi traído pela sua boa fé, diz: “Ah, tolo, tolo!”. Fora traído por Iago que abusara da sua credulidade e tirara partido da própria reputação de homem justo e sábio. O leitor, o eleitor, o cidadão não pode repetir Otelo. Não pode ser tolo, nem se deixar iludir. A alternativa é refletir, pensar, sobretudo pensar. Só assim é que saberá se a mídia merece ou não credibilidade, se existe ou não isenção no que é noticiado e, em especial, saber o alcance dos interesses em jogo. De todos os protagonistas. Como ensina Shakespeare, “Todos devem parecer o que são ou então não parecê-lo”. Infelizmente, geralmente parecer não é ser.
*Francisco Viana é Doutor em filosofia política (PUC-SP), jornalista e consultor de consultor de comunicação.