Francisco Viana*
"Queres que eu tenha medo. Esqueça!"(1), analisa a reportagem de capa do Der Spiegel, ao tratar dos atentados terroristas do Estado Islâmico na sangrenta sexta-feira 13, em Paris. O Le Monde Diplomatique foi ainda mais claro: “Sejam livres, isto é uma ordem”(2). A percepção, em ambos os casos, é clara: alçar o tema dos atentados que mataram mais de uma centena de pessoas ao debate entre a democracia e obscurantismo.
No Brasil, o leitor, ficou com a ideia – generalizada, essa é verdade – de que se trata de uma guerra entre terroristas e as forças da lei, quase que um duelo entre mocinhos e bandidos. Ou foi levado a crer num relativismo primário do gênero a França está pagando pelos erros do passado. Ou, o que é igualmente dramático, induzido a pensar que a esquerda europeia se encontra sitiada pela força do terror e não tem voz para reagir.
Não é assim. O Der Spiegel traz uma análise de que os atentados, a despeito da barbárie, reforçam o sentimento democrático, passados 50 anos do início da globalização e, consequentemente, da imposição de um mundo onde as mercadorias seriam mais importantes que os valores e a ilusão, em consequência, mais dominante do que a realidade. Tudo tornou-se extremamente complexo, num ambiente estilhaçado onde a irrealidade tornou-se a realidade, mas a mobilização social, em grande escala e globalmente, desde o atentado, igualmente criminoso e sangrento contra a redação do jornal Charlie Hebdo (3), serviria de antidoto contra o medo. E essa é a percepção de fundo: estamos discutindo e procurando viver um novo renascimento. Assistimos ao fim de uma era e o terror nada mais é do que evidência desse ocaso.
O que se assiste na mídia, nesse momento, é uma tríade de confrontos. Há um confronto entre o terrorismo do Estado Islâmico e a Europa, tendo a França e sua simbologia da liberdade como epicentro. Nele, estão em choque uma visão moderna e outra visão medieval da vida, naquilo que a Idade Média conteve de antihumanista, de origem na ignorância da Igreja, agora substituída pela vertente criminosa do islamismo. É esse choque que nos conduz aos atentados e à reação militar contra o Estado Islâmico.
Há, igualmente, o confronto entre o iluminismo democrático e a resistência islâmica, esta não mais centralizada no Estado Islâmico, de que é preciso superar os ensinamentos do profeta, e caminhar no rumo ao Renascimento com a preponderância da ciência sobre a fé, do humanismo sobre os atavismos que separam os homens e, sobretudo, a afirmação do estado laico sobre o estado religioso. Se Maomé é tão poderoso, por que o mundo islâmico é tão atrasado e cruel, povoado por ditaduras? Essa, sem dúvida, é a pergunta que fazem os imigrantes que chegam à Europa tangidos pelas guerras no Oriente Médio.
E, há por fim, o embate entre a democracia e o autoritarismo. Acreditam os fundamentalistas islâmicos que quanto maior terror, mais a sociedade europeia recuará nas conquistas democráticas. Não recuará, como a América não recuou após o atentado de 11 de setembro. A esperança de um mundo melhor é maior do que o medo. Foi o que o Der Spiegel e o Le Monde Diplomatique, assim como grande parte da imprensa europeia, perceberam e tornaram públicos.
No Brasil essas nuanças ainda passam desapercebidas porque vivemos ainda um jornalismo imaturo para as grandes questões democráticas. A questão da superestrutura política e econômica, que desvaloriza a vida e o trabalho, ainda é muito incipiente entre nós. Inclusive, ao contrário da Europa, não temos tradição de imprensa de esquerda, salvo a clandestina, sem grande alcance, nem sequer de um pensamento marxista (e, portanto crítico) ativo. Nossa imprensa é do tamanho da nossa democracia. E não poderia ser diferente. Enquanto a imprensa europeia reflete cinco séculos de conflitos sociais, e conflitos atrozes, a nossa imprensa conhece a nossa tímida utopia social, com tradição republicana muito mais retórica do que existencial.
O homem humanista, essa “coroação da vida”, nas palavras de Thomas Mann (Doutor Fausto), ainda se encontra distante do nosso cotidiano. O anticomunismo que grassa no país desde o alvorecer da república desenvolveu o consenso de que humanismo é crime. Por que a esquerda foi torturada e morta senão por ser humanista e se posicionar contra uma economia política egoísta e excludente?
Terrorismos contra a natureza, como é o caso da mineração em Mariana, Minas Gerais, ou a destruição sistemática da floresta amazônica ainda são tratados como catástrofes, não como crimes, assim como são tratados como questões meramente policiais, não sintomas de grave crise social, a violência que nos cerca no cotidiano. É imperativo rever esses conceitos: não há segurança meramente repressiva. A segurança nasce da liberdade e da justiça social.
O nosso jornalismo, portanto, ainda tem muito o que evoluir. Precisa revolucionar a visão de democracia e de felicidade. Não basta apenas iluminar a face bolorenta dos problemas. É imperativo iluminar o arcaísmo das estruturas. A música que a imprensa toca, nas suas múltiplas versões, ainda é estridente e se encontra distante do espírito humanista. Hora de debruçar-se sobre a imprensa europeia. Hora de refletir sobre as percepções para não confundir democracia com guerra entre bandidos e mocinhos.
(1) Wolt, dass ich Angst habe Vergesst est!, nº 48, 19.11.2015.
(2) Soyez libres, c’est un ordre, fevereiro 2015,p. 28.
(3) 7 de janeiro de 2015, em Paris, resultando no massacre de 12 pessoas, entre elas parte da equipe do jornal satírico francês, que teria insultado o profeta Maomé com suas charges.
* Francisco Viana é doutor em filosofia política (PUC-SP) e consultor de comunicação.