Por Francisco Viana*
A mídia, antes quase uma incógnita, agora é tema cotidiano do noticiário. Tornou-se lugar comum falar de uma crise sem precedentes que ceifa empregos, encolhe redações e não poupa grandes ícones da chamada grande imprensa. No Brasil, como em todo lugar, as raízes do problema, à primeira vista, parecem estar localizadas nos impactos das modernas tecnologias e, consequentemente, da rápida ascensão das mídias sociais.
É uma visão correta, mas incompleta. Ao lado das mídia sociais, com sua vitalidade instantânea e iconoclasta, há uma outra nuança, também de largo alcance. Nos idos do regime militar, o Dr. Roberto Marinho, como era conhecido o fundador das Organizações Globo, costumava dizer que não se fazia jornalismo sem a esquerda. Referia-se a profissionais que se destacavam pelo espírito crítico e religioso culto aos fatos. Esses pressupostos foram esquecidos, mesmo abandonados.
O que se assiste hoje é uma tomada de assalto das redações pelo conservadorismo. Acusa-se com base em intuições ou meras suposições. Se faz denúncias bombásticas baseadas em fontes anónimas. Repetem-se “recados” de fontes sem checar previamente as informações, se faz pesado jogo ideológico, de todas as colorações, como se o leitor fosse um ser distante e vazio. As bandeiras do conservadorismo, predominante nas redações, são conhecidas e podem ser sintetizadas no temor às mudanças. E na fidelidade ao catecismo, também conservador, dos donos dos jornais. Volta-se não à Idade Média, mas ao jornalismo descrito por Balzac no clássico “As Ilusões Perdidas”.
Como desdobramento da escalada conservadora, sobretudo a partir do primeiro governo de Luis Inácio Lula da Silva, a mídia tem se revelado incapaz de ler os novos tempos recusando-se a aceitar que há claro renascimento do pensamento de esquerda. Não se trata de ser contra ou a favor de Lula, não se trata de ser contra ou a favor do PT, nem de ser contra ou a favor da esquerda. Se trata de que a esquerda é uma realidade na cena internacional e hoje na cena brasileira. É um erro, um erro terrível, se abrir espaço para a esquerda apenas quando esta critica a esquerda. O espaço precisa ser permanente. Desde a Revolução Russa de 1917, a esquerda é uma interlocutora nos países do Ocidente. Por que não no Brasil? Simples: tudo que rescende o social é imediatamente etiquetado como comunista. Perde-se a visão crítica, perde-se o sentido da negação, vital para o aperfeiçoamento da democracia.
No passado perseguido por mais de meio século de visceral anticomunismo, a esquerda agora tornou-se parte indissociável e legítima, com voz crítica, da vida brasileira. Foi institucionalizada na vida política pela Constituição de 1988. Os jornais precisam atentar para esse fato. Colunistas conservadores têm direito a espaço, mas igualmente deve-se colocar ao lado uma visão de mundo contrária. Se cabe ao leitor julgar, precisa dispor de diferentes visões, diferentes formas de ver e interpretar o mundo. Como a visão é monocórdia, não houve renovação das fontes de informação e a esquerda não é convidada para o debate político, isto é, só existe para ser desmoralizada.
Igualmente traumática foi a extinção das diferentes correntes de pensamento nas redações. Dada a diversidade de formas de ver o mundo, havia uma relação dialética na divulgação dos acontecimentos, favorecendo à natureza progressista dos fatos. Passou a vigorar a tese da neutralidade que, na realidade, não existe. Se há o choque de percepções políticas, o jornalismo deixa de ser um mero produto para se tornar num corpo vivo e dinâmico. Passou a vigorar a visão meramente profissional, como se o jornalista fosse um ser à parte da sociedade. Uma forma rasa de ver o mundo, profunda como um pires.
Como a notícia tornou-se muito mais mercadoria do que serviço público, as informações, dessa forma, são elaboradas como se fossem um produto qualquer. Baniu-se de cena a liberdade do jornalista como intérprete da realidade, salvo se essa interpretação for repetitiva de discursos antigos, aqueles que como muito bem dizia o grande Cazuza, são ideias que “não correspondem aos fatos”. Vive-se, então, prisioneiro da face conservadora do século XX, sem que se acorde para o mundo novo que nasce neste século XXI. A sociedade, por sua vez, é discutida no seu dia a dia, não na sua estrutura (a responsável pelas mazelas do dia a dia), o que se torna discussão imperativa.
Nessa trilha, esvaiu-se o fogo sagrado de apurar, de perseguir a verdade factual e os posicionamentos como processo, não como verdade definitiva. Trabalhar na mídia, seja ela impressa, rádio ou televisão, exige um talento particular. Não se trata apenas do domínio da arte de escrever e da ética para retratar e analisar os fatos. É imperativo ter os olhos abertos para o novo. Isso o conservador não consegue fazer. Refratário à idades do tempo e aos imperativos da história, sua visão da sociedade é em preto e branco. Não vislumbra a nuança das cores. Procura a repetição do tipo fênix – um retorno ao mesmo - , jamais algo novo, algo que ainda não se viu.
Dai, método de estudar os temas e analisá-los nas suas contradições ser visto como secundário. Como são vistos como secundários a utopia, o sonho, a rebeldia, o debate, a cultura política – de Hegel a Marx, de Platão a Avicenna, de Aristóteles a filósofos como Ernst Bloch e Hannah Arendt. E o noticiário passou a ser monocórdio, sem conseguir capturar a atenção do público.
Mesmo a fonte dos escândalos vem se esvaindo, mesmo o espetáculo ou a propaganda disfarçada de notícia perde força. Nesse contexto, pode-se afirmar, sem temor de erro, que a crise das empresas de mídia espelha a crise do jornalismo (e vice-versa). A alternativa é mudar os paradigmas do modelo e pensar o jornalismo para uma sociedade plural nas ideias, democrática como construção. Não é destruir a mídia atual, é recriá-la. Que venham novos investidores na mídia. Investidores que saibam ler o tempo e revitalizar o sentido de fazer notícia para a sociedade democrática.
* Francisco Viana é jornalista, consultor de comunicação e doutor em filosofia política (PUC-SP)