imprensa e chaliePassada a semana do terror, em que a mídia internacional foi inundada de imagens chocantes, como se estivéssemos assistindo a uma guerra, começam a pipocar artigos, análises, reportagens sobre até onde a paranoia sectária vai nos levar.

Da Europa à América, passando por líderes de todo o mundo, um mantra parece ter emanado do covarde ataque à redação do jornal Charlie Hebdo: a liberdade de expressão é incondicional. Respeitadas as diferenças de credos, ideologias e civilizações, a imprensa livre é uma conquista e fica muito difícil, até mesmo para quem não concorda, a ela se contrapor.

A cena de líderes de potências ocidentais de braços dados com o primeiro-ministro de Israel, na mesma corrente do lider dos palestinos, não foi um ícone apenas para os fotógrafos.Tem um simbolismo muito maior. Só faltou Barack Obama (mal assessorado no episódio) e o Papa Francisco para ser a "cena do século". Vai demorar algum tempo para termos uma imagem tão emblemática.

Entre tantos bons artigos e análises publicados na semana passada, cabe destacar o do colunista do The Times, Philip Collins: "Não há paz a menos que os muçulmanos façam uma reforma".

"O Islã já foi uma vez uma religião de iluminação. Ele deve virar as costas aos radicais terroristas e redescobrir suas verdadeiras raízes".

“Todo mundo já afirmou a mesma coisa, a coisa certa. Nós não seremos intimidados. Vamos publicar, porque sabemos que não será censurado. Render-se ao assassinato dos cartunistas do Charlie Hebdo e limitar a liberdade é contribuir para a obra do diabo.

Muitas vozes muçulmanas se juntaram à concórdia de desgosto. "Nada é mais imoral, ofensivo e abusivo contra o nosso amado profeta que um ato tão cruel de assassinato", disse o Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha. A Liga Árabe emitiu uma condenação. Mesmo o Dar Al-IFTA, o instituto egípcio, que em 2005 emitiu um pronunciamento oficial contra os cartunistas dinamarqueses por sua desfaçatez em desenhar imagens satíricas do profeta, conseguiu encontrar palavras de desaprovação.

É difícil encontrar algo encorajador, no rescaldo de um assassinato tão brutal como este, mas pode haver algum consolo se a determinação das democracias liberais para enfrentar a tirania se redobrar. É um momento de enfrentar duras verdades e uma é que a influência venenosa da crença religiosa não pode ser subtraída deste evento sombrio.

Salman Rushdie tem mais motivos para lamentar isso que a maioria. A fátua foi revivida pelo clero iraniano no ano passado; a cabeça de Sr. Rushdie vale uma recompensa. Assim, sua bravura impõe respeito e atenção quando ele disse ontem exatamente o que precisa ser contemplado:

"A religião, uma forma medieval de irracionalidade, quando combinada com armamento moderno torna-se uma ameaça real para as nossas liberdades".

Não é por acaso que, quando eles invadiram a reunião editorial de Charlie Hebdo à procura do editor do jornal Stéphane Charbonnier pelo nome, Said e Cherif Kouachi proclamaram: "Allahu Akbar", "Deus é grande". Eles não gritaram, nem poderiam ter: "Em nome do pluralismo" ou "All Hail John Stuart Mill".

Algumas ideias, tomadas até os seus extremos emocionais, concedem um álibi para o assassinato e outras não. A "perversão" do Islã é uma forma tóxica de certeza religiosa, enquanto uma perversão do liberalismo não é o liberalismo, cujo liberdades estendem-se a todos. É por isso que o clérigo muçulmano Anjem Choudary é livre para usar a liberdade que ele quer reduzida para publicar uma peça nos EUA hoje, em que ele acusa o governo francês de provocar os assassinos.

Isto, para ficar claro, é uma patologia compartilhada pelo pensamento religioso em todos os lugares. Não é exclusivo ao Islã, nem é mesmo historicamente mais comum lá. A história flagrante do Cristianismo mostra que quando as pessoas reivindicam a certeza sobre questões últimas, mais cedo ou mais tarde, haverá problema. Se a verdade tem sido, de alguma forma concedida a você pela divindade, então a dissidência não é fundamentalmente um desacordo, é uma blasfêmia. Eu não sou mais um interlocutor, sou um infiel.

A crença religiosa, nas cabeças erradas, pode ser devastadora. É, portanto, para a prática da religião que é preciso olhar para se assegurar contra o terrorismo, e houve um tempo em que o Islã foi exemplar a este respeito. Sob o califado iluminado de Harun al-Rashid, entre 786 e 809, bolsas de estudos árabes se espalharam pelo mundo. Pensadores vieram de todo o Globo para Bagdá com a tarefa de traduzir todo o conhecimento do mundo para o árabe e preservá-lo em uma vasta biblioteca conhecida como a Casa da Sabedoria.    

Muitas das obras clássicas da antiguidade, em especial os textos de Platão e Aristóteles, que foram "redescobertos" no renascimento italiano, só estavam disponíveis por causa da devoção ecumênica dos grandes estudiosos de Bagdá. Governantes estrangeiros derrotados teriam, muitas vezes, sido ordenados a não abrir mão de seu ouro, mas sim de seus livros. Enquanto a Europa estava na idade das trevas intelectuais, a época Dourada Islâmica, como ainda é conhecida, inspirou o florescimento mais extraordinário da vida intelectual da época.

Houve avanços notáveis no método científico, na astronomia, na ótica e, na biologia, a primeira observação da "luta pela existência", como um estudioso islâmico contemporâneo observou. A ideia de que os corpos celestes, como a Lua estavam sujeitos às mesmas leis da física existentes na Terra foi postulada, então, pela primeira vez. Estudiosos islâmicos reuniram conhecimentos médicos de todo o mundo. Nenhum médico faria o juramento de Hipócrates hoje, se não fossem os estudiosos da Casa da Sabedoria.

Em matemática, o progresso foi alcançado em cálculo elementar e na lei geral dos senos, em trigonometria. Foi por este período que devemos as palavras e conceitos de algorítmo e álgebra e foi através da Casa da Sabedoria que a ideia de zero e os decimais hindus foram transmitidos para a Europa. Bagdá era o centro do mundo do pensamento. Durante 700 anos, a linguagem da ciência era árabe.

Quão diferente é o mundo islâmico hoje. É claro que a tendência violenta de cada denominação é uma minoria sórdida vociferante. Contudo, tem que ser dito que o Islã moderado portou-se muito fracamente em protesto contra os radicais de seu meio. Mesmo que as vítimas dessas cruzadas venenosas sejam em sua maioria muçulmanos no conflito entre sunitas contra xiitas, o pensamento muçulmano liberal é fraco e debilitado. É notável, por exemplo, que não há nenhum movimento popular em coro entre os muçulmanos pela paz nos países mais atrasados em que seus companheiros devotos estão massacrando uns aos outros.

Após os atentados de Londres, Rushdie afirmou que o Islã precisa de "uma Reforma Muçulmana... abrindo as janelas para deixar entrar o muito necessário ar fresco". Ela terá de ser, como a Reforma Cristã foi, em parte, uma disputa sobre doutrina (os méritos dos santos) e, em parte, sobre o poder (autoridade papal sobre o purgatório). A Reforma do Islã tem que ser uma campanha pela educação livre dos grilhões da escritura e um retorno ao ethos científico da Idade de Ouro.

A lição de Paris não é a simplória afirmação de que a espada é mais poderosa que a caneta, ou mesmo vice-versa. Ela mostra que cartunistas armados com uma caneta não têm defesa contra assassinos armados com uma espada e também uma caneta. Em outras palavras, eles foram abatidos por idiotas que carregam uma Kalashnikov, juntamente com uma idéia estúpida.

Stéphane Charbonnier, o editor do Charlie Hebdo, disse: "Prefiro morrer de pé do que viver ajoelhado." Há um eco lá de Lutero, diante dos seus acusadores na Dieta de Worms: "Aqui estou, eu não posso fazer de outro modo”. A tarefa agora é fazer a álgebra, uma palavra árabe que significa "reunião das partes quebradas". A cura só pode acontecer quando a ideia estiver ganha. A batalha, porém, não é entre o Islã e o resto do mundo, mas dentro do próprio Islã."

Tradução: Jessica Behrens. Edição: João José Forni.

O artigo foi publicado na edição do The Times, de 09/01/14.

The Times

There is no peace unless Muslims can reform
Philip Collins

Last updated at 12:01AM, January 9 2015

Islam was once a religion of enlightenment. It must turn its back on terrorist radicals and rediscover its true roots
Everyone has said the same thing, the right thing. We will not be cowed. We will publish because we know we will not be damned. To capitulate to the murder of the Charlie Hebdo cartoonists by limiting freedom is to do the devil’s work.

Many Muslim voices have joined the concord of disgust. “Nothing is more immoral, offensive, insulting against our beloved Prophet than such a callous act of murder,” said the Muslim Council of Britain. The Arab League issued a condemnation. Even Dar Al-Ifta, the Egyptian institute that in 2005 issued a fatwa against the Danish cartoonists for their effrontery in drawing satirical images of the Prophet, managed to find words of disapproval.

It is hard to find anything heartening in the aftermath of such a brutal murder as this but there may be some consolation if it redoubles the determination of liberal democracies to stand up to tyranny. It is a moment to face and state hard truths and one that, through sheer liberal politeness we are apt to gloss over, is that the poisonous influence of religious belief cannot be subtracted from this dismal event.

Salman Rushdie has more cause to lament this than most. The fatwa was revived by Iranian clergy last year; Mr Rushdie has a bounty on his head. So his bravery commands respect and attention when he said yesterday exactly what needs to be contemplated: “Religion, a medieval form of unreason, when combined with modern weaponry becomes a real threat to our freedoms.”

It is no accident that, as they stormed the editorial meeting of Charlie Hebdo seeking out the paper’s editor Stéphane Charbonnier by name, Said and Cherif Kouachi proclaimed: “Allahu Akbar”, “God is great”. They did not shout, nor could they have: “In the name of pluralism” or “All hail John Stuart Mill”.

Some ideas, taken to their emotional extremes, grant an alibi for murder and some do not. A “perversion” of Islam is a toxic form of religious certainty while a perversion of liberalism is not liberalism, whose freedoms extend to everyone. That is why the Muslim cleric Anjem Choudary is free to use the liberty that he wants curtailed to publish a piece in USA Today in which he accuses the French government of provoking the killers.

This, to be clear, is a pathology shared by religious thought everywhere. It is not unique to Islam, nor is it even historically most common there. The egregious history of the Christian church shows that when people lay claim to certainty about ultimate questions, sooner or later there is going to be trouble. If the truth has been in some way vouchsafed to you by the divinity then dissent is not reasoned disagreement, it is blasphemy. I am no longer an interlocutor, I am an infidel.

Religious belief, in the wrong heads, can be devastating. It is therefore to the practice of the religion that we need to look for insurance against terrorism, and there was a time when Islam was exemplary in this respect. Under the enlightened caliphate of Harun al-Rashid between 786 and 809, Arabic scholarship led the world. Thinkers came from all over the globe to Baghdad, their task to translate all the world’s knowledge into Arabic and preserve it in a vast library known as the House of Wisdom.

Many of the classic works of antiquity, particularly the texts of Plato and Aristotle that were “rediscovered” in the Italian renaissance, were only available because of the ecumenical devotion of the great scholars of Baghdad. Defeated foreign rulers would often be told to relinquish not their gold but their books. While Europe was in the intellectual dark ages, the Islamic Golden Age, as it is still known, inspired the most extraordinary flourishing of intellectual life.

There were notable advances in scientific method, in astronomy, optics and in biology the first observation of the “struggle for existence”, as a contemporary Islamic scholar put it. The idea that celestial bodies such as the Moon were subject to the same laws as physics as exist on Earth was first postulated then. Islamic scholars gathered medical knowledge from all over the world. No doctor would today swear theHippocratic oath were it not for the scholars in the House of Wisdom.

In mathematics progress was made in elementary calculus and the general law of sines in trigonometry. It is to this period that we owe the words and concepts of the algorithm and algebra and through the House of Wisdom that the Hindu decimals and the idea of zero were transmitted to Europe. Baghdad was the centre of the thinking world. For 700 years the language of science was Arabic.

How different is the Islamic world today. Of course the violent tendency of every denomination is a nastily vociferous minority. It has to be said, though, that moderate Islam puts up too weak a protest against the radicals in its midst. Even though the victims of these poisonous crusaders are mostly Muslims in the Sunni versus Shia conflict, liberal Muslim thinking is weak and enervated. It is notable, for example, that there is no concerted popular movement among Muslims for peace in the benighted countries in which their fellow devotees are slaughtering one another.

After the London bombings Rushdie said that Islam needs “a Muslim Reformation... throwing open the windows to let in much-needed fresh air”. It will have to be, as the Christian Reformation was, in part a dispute about doctrine (the merits of the saints) and in part about power (papal authority over purgatory). Reform Islam has to be a campaign for education free from the fetters of scripture and a return to the scientific ethos of the Golden Age.

The lesson of Paris is not the simple one that the sword is mightier than the pen, or even vice versa. It is that cartoonists armed with a pen have no defence against killers armed with both a pen and a sword. In other words, they were slaughtered by idiots bearing both a Kalashnikov and a stupid idea.

Stéphane Charbonnier, the editor of Charlie Hebdo, said: “I would rather die standing than live kneeling.”There is an echo there of Luther, before his accusers at the Diet of Worms: “Here I stand; I can do no other.” The task now is to do the algebra, which is an Arabic word meaning “reunion of the broken parts”. The healing can only happen when the idea is won. The battle though, is not between Islam and the rest but within Islam itself.

 

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