papa francisco“A Europa perdeu o seu caminho, suas energias foram solapadas pela crise econômica e por uma remota burocracia tecnocrática. É cada vez mais uma espectadora em um mundo que se tornou "cada vez menos eurocêntrico", e que, frequentemente, olha para o Continente "com indiferença, desconfiança e às vezes, suspeita."

Essa foi um dos trechos do pronunciamento do Papa Francisco, no Parlamento Europeu semana passada. Em artigo publicado no The New York Times, Andrew Higgins, diz que “o último papa a discursar no Parlamento Europeu, João Paulo II, alegrou-se com o que ele descreveu como um "momento especial na história deste continente" em Outubro de 1988, quando o comunismo estava desmoronando e a Europa estava se unindo mais. Na terça-feira, depois de uma pausa de mais de um quarto de século, outro papa, Francisco, voltou aqui para a mesma configuração, mas com um diagnóstico sombrio”.

Apesar de gentil, sua fala foi negativa, diz o articulista. "Em muitos lugares nos deparamos com uma impressão geral de cansaço e envelhecimento, de uma Europa que é agora uma " vovó ", não mais fértil e vibrante", disse o papa, um argentino, ao Parlamento onde geralmente reinam discursos de trivialidades comerciais ou tecnicalidades entorpecentes, segundo o articulista do NYT.

"Chegou o tempo em que nós devemos abandonar a ideia de uma Europa auto-absorvida que está com medo", acrescentou o Papa. Apesar de a Igreja Católica Romana ter perdido continuamente seguidores na Europa há décadas, o que o papa diz ainda carrega peso. Seu discurso, que ele descreveu como uma "mensagem de esperança e encorajamento", elevou-se a uma crítica surpreendentemente franca de mal-estar na Europa, vinda ainda do primeiro pontífice não-europeu em mais de um milênio.

John Thavis, um escritor americano especializado em Igreja Católica e autor de "Os Diários do Vaticano", disse que o Papa Francisco teve uma visão muito diferente da Europa que os seus dois antecessores imediatos, um polonês e, em seguida, um alemão, para quem "a Europa era o centro do universo."

Segundo Andrew Higgins, em contrapartida, Francisco deu pouco incentivo direto para discursos "mais Europa", ao contrário, ecoou algumas das queixas de políticos populistas que vêem a União Europeia como uma força intrometida que inibe ao invés de promover a ambição e o crescimento econômico.

"Nos últimos anos, como a União Europeia tem se expandido, há crescente desconfiança por parte dos cidadãos em relação às instituições consideradas distantes, empenhadas em estabelecer normas percebidas como insensíveis aos povos individuais, se não francamente prejudicial", disse Francisco, trajando vestes clericais brancas quando se dirigiu ao salão lotado, segundo o NYT.

Para o articulista, "o descontentamento público com a burocracia da União Europeia, amplamente vista como um auto-serviço, um desperdício, e ainda elitista, ajudou a impulsionar partidos de extrema-direita como a Frente Nacional da França e vários outros grupos nacionalistas que prometem resultados melhores nas eleições de maio para o Parlamento Europeu. Na França, a Frente Nacional chegou à frente de todos os outros partidos."

O Parlamento Europeu, que mantém enormes instalações e equipes, tanto na cidade onde se realizou a reunião, perto da fronteira alemã, e na capital belga, Bruxelas, tem-se tornado um emblema de desapego das preocupações das pessoas comuns que têm retirado o seu apoio de meio século para uma maior integração e agora tem ajudado a ascensão de nacionalistas anti-europeus.

Segundo Andrew Higgins, “em seu discurso, no entanto, o papa apelou por mais compaixão em relação aos imigrantes e também mirou políticos populistas, muitos dos quais exigem freios afiados sobre a imigração e denunciam os imigrantes como aproveitadores”.

O apelo tem sido uma característica regular da agenda do Vaticano desde que Francisco tornou-se papa, após a aposentadoria surpresa de Bento XVI no ano passado. Em sua primeira viagem fora de Roma após a sua eleição, o novo papa denunciou a "globalização da indiferença", durante uma visita à ilha italiana de Lampedusa, perto de onde um grande número de imigrantes se afogaram ao tentar chegar à Europa em barcos frágeis a partir da África.

O artigo acrescenta: "Não podemos permitir que o Mediterrâneo se torne um vasto cemitério", disse o papa terça-feira. "Os barcos que desembarcam diariamente nas margens da Europa estão cheios de homens e mulheres que precisam de aceitação e assistência."

Ele acrescentou que o fracasso da União Europeia em encontrar uma resposta comum para o fluxo de imigrantes desesperados tinha levado certos países a adotar suas próprias medidas, "que não levam em conta a dignidade humana dos imigrantes e, assim, contribuem para o trabalho escravo e contínuas tensões sociais."

Guy Verhofstadt, líder da Aliança dos Democratas e dos Liberais do Parlamento, disse que concordava com o Papa que a Europa sofria de uma "falta de dinamismo" e aproveitou-se para inserir suas próprias demandas paralisadas a um "novo salto" rumo a uma maior integração europeia.

Sr. Verhofstadt afirmou que a Europa precisava de "uma nova visão, uma nova ambição, exatamente como em 1992," quando os 12 membros do que é hoje um bloco de 28 nações se transformaram para abrir suas economias à concorrência transfronteiriça como parte dos esforços para criar o chamado mercado interno até dezembro do mesmo ano.

Ainda assim, alguns dos mais fortes defensores do papa na Europa não são liberais do livre mercado como o Sr. Verhofstadt, mas esquerdistas como o líder da oposição grega Alexis Tsipras, um auto-proclamado ateu que visitou o Vaticano em setembro e apontou  Francisco como o "papa de os pobres."

O papa ganhou aplausos particularmente altos com as observações que pareciam desafiar uma política em grande parte dirigida pela Alemanha, enraizada na austeridade como a cura dos males econômicos da Europa.

"Chegou o momento de promover políticas que criem emprego", disse ele, "mas acima de tudo, há uma necessidade de restaurar a dignidade do trabalho, garantindo condições adequadas de emprego."

Em um segundo discurso para o Conselho da Europeu, em uma outra assembleia de Estrasburgo, num edifício palaciano, mas com pouca ressonância entre as pessoas comuns, Francisco afirmou: "É minha profunda esperança de que as bases sejam estabelecidas para uma nova cooperação econômica e social."

Para Andrew, ele observou que a Igreja Católica havia desempenhado um papel importante ao longo dos séculos na prestação de caridade para os pobres da Europa, mas acrescentou: "Quantos deles existem em nossas ruas! Eles pedem não só a comida que necessitam para sua sobrevivência, que é o mais elementar dos direitos, mas também pedem a redescoberta do valor de suas próprias vidas, o que a pobreza obscurece, e uma redescoberta da dignidade conferida pelo trabalho."

"Quando João Paulo II dirigiu-se ao Parlamento de Estrasburgo em 1988, ele denunciou o afastamento da Europa de suas raízes cristãs, alertando que a "exclusão de Deus da vida pública" colocava em perigo o futuro do continente. Seu discurso, apesar de otimista em relação a aproximação entre a Europa Ocidental e Oriental, atraiu fortes críticas de secularistas que insistiam que a religião não tinha mais lugar nas instituições europeias", diz o articulista.

O artigo do NYT diz que Francisco, ao contrário, não enfrentou oposição e sim repetidas rodadas de aplausos de membros do Parlamento. Ele também se referiu à herança cristã da Europa e os perigos de perdê-la, mas preferiu se concentrar em questões como a pobreza, imigração e desemprego.

O Parlamento Europeu tem geralmente evitados as questões de fé, vendo-as como fonte de divisão e como ameaça perturbadora para a meta de uma "união cada vez mais estreita" prevista no Tratado de Roma de 1957.

Martin Shultz, o presidente do Parlamento Europeu e anfitrião de Francisco, ajudou a liderar uma campanha bem sucedida em 2004 para bloquear um candidato italiano para o braço executivo da União porque ele tinha manifestado apoio pessoal aos ensinamentos da Igreja Católica sobre aborto e homossexualidade.

Ao mesmo tempo, a Europa continua a ser inundada com o cristianismo e sua paisagem permanece pontilhada com antigas - agora quase vazias - igrejas, além de hinos de muitos países em homenagem a Deus.

Mesmo a bandeira da União Europeia - um círculo de 12 estrelas amarelas sobre um fundo azul - tem uma mensagem cristã codificada. Arsène Heitz, um católico francês que desenhou a bandeira em 1955, originalmente para o Conselho da Europa, se inspirou em uma iconografia cristã da Virgem Maria com uma coroa com 12 estrelas. Mas as descrições oficiais da bandeira hoje não fazem qualquer referência a isso.

Tradução: Jessica Behrens. Edição: João José Forni

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