O Brasil está no centro de uma polêmica que pautou a mídia internacional pelo menos desde 2008, quando estourou a crise econômica mundial. Da “marolinha” de Lula, desdenhando de que a crise chegasse ao Brasil, em 2008, à declaração de um empresário top brasileiro, neste fim de semana, de que “a confiança dos empresários no governo acabou”, seria a mídia culpada pelas manchetes negativas que inundam os meios de comunicação, sites online e redes sociais?
Essa discussão passa até pela seleção que governistas e simpatizantes fazem dos grupos de mídia nacionais, entre a “imprensa golpista”, que maximiza fatos negativos, e aqueles “confiáveis”, rápidos a reproduzir as “boas” notícias que o governo todo dia apregoa, na “Voz do Brasil” e Blogs amigos. Até porque muitos veículos de comunicação, principalmente os de menor porte, também dependem das benesses publicitárias do governo. Em época de vacas magras, é melhor estar de bem com o governo do que ignorado por ele.
Mas falamos da média da imprensa. De certo modo, a mídia reflete o sentimento da sociedade. Nenhuma empresa de comunicação séria vai atrás de pautas que não tenham audiência ou, intencionalmente, estejam desconectadas dos anseios da sociedade. E não adianta os governos reclamarem da indisposição da imprensa para se equilibrar entre o verdadeiro jornalismo ou fazer o que todos eles gostariam, propaganda, marketing. Por que até a mídia internacional perdeu a confiança no Brasil, há pouco tempo tão badalado nas páginas do Financial Times?
A própria presidente da República admitiu, ano passado, que a liberdade de imprensa no Brasil "é um valor inequívoco"conquistado e que transforma o Brasil. "Tem excessos, não tenho dúvida. Os excessos temos de discutir, debater, criticar", completou ao falar sobre a imprensa.
Não é necessário um exercício intelectual muito profundo para ter um retrato do que aconteceu no país pelo menos de outubro para cá. Como ficar otimista com fatos – refletidos pela mídia, naturalmente – que envergonham qualquer país ou deixam a população irritada. Como reverter uma pauta negativa, quando muito pouca coisa positiva há para destacar, já que não é da vocação da imprensa dar manchetes para ações que os governos têm obrigação de fazer. O desemprego é baixo? Sim. Melhorou o número de universitários de classes mais pobres? Sim. Mais brasileiros deixaram de passar fome? Sim. Mas não seria essa a obrigação de todo o governo?
A mídia não é a crise mas a crise está na mídia
A mídia não é o único canal para colocar as mazelas do país na rua. Contribuintes e empregados descontentes, executivos, competidores, o povo que utiliza os serviços públicos, somado aos cientistas sociais, jornalistas e professores internacionais todos podem ser fontes de notícias. À mídia cabe analisar e reverberar esses discursos e cotejá-lo com a voz rouca e barulhenta das ruas.
Alguém duvida da força de uma mãe, operária, numa parada de ônibus em Porto Alegre, ao sol, sem cobertura, com 41 graus de temperatura, em plena greve dos rodoviários, na semana passada, reclamando que as autoridades não agem, os empresários do transporte a desrespeitam e que o país não tem comando? Que veículo de imprensa deixaria de cobrir esse depoimento franco, realista e triste? Que fonte do governo, por mais credenciada, poderia se contrapor a esse discurso autêntico?
Quem não compreende os bastidores da mídia ou não tem cultura de comunicação acredita que a imprensa só se interessa por notícia ruim, principalmente quando o governo gasta milhões de reais em publicidade e os fatos negativos são expostos com toda a sua crueza na primeira página dos jornais ou nas manchetes da tevê e nas redes sociais. Ou, como o ministro Gilberto Carvalho, pode achar que a mídia contribui para o povo não ter “sentimento de gratidão” com tanto que esse governo fez pelos pobres.
Notícia “boa” não existe. Até porque, pelo próprio conceito de notícia, a palavra não precisaria ser adjetivada. Notícia é ou deveria ser o relato fiel, verdadeiro de fatos sociais, de interesse público, seja ele muito positivo para o país; ou as nossas mazelas diárias. Se a mídia brasileira reflete um cenário negativo, que acaba interferindo até no humor e nos investimentos dos empresários, na produtividade dos empregados e na natural inquietação dos jovens, a culpa não é da mídia.
Os fatos são subversivos
Imaginemos os ideólogos do governo lendo os jornais que chegam de manhã nas residências do Lago Sul, em Brasília, ou a repercussão nas redes sociais com manchetes mais ou menos assim: “Apagão atinge 11 Estados e 6 milhões ficam sem luz”; “DF registra 70 mortes violentas em janeiro”; “Protestos desafiam Planalto”; “Vídeo mostra tortura e presos decapitados em presídio no MA”; “Rompimento de adutora deixa um morto, quatro feridos e 120 mil sem água no DF"; “Indústria faz aumentar o pessimismo”, “Máfia dos fiscais desviou milhões do IPTU” e assim por diante.
O que a imprensa pode fazer para reverter essas notícias? Omiti-las, quando as próprias fontes, algumas até do próprio governo, não são nada otimistas com o que acontece no país, neste momento. Em Brasília, de outubro a janeiro, cinco restaurantes em apenas uma quadra, fecharam. Não aguentaram a insegurança, falta de estacionamento, elevada carga tributária e o preço dos aluguéis. Mais dois foram postos à venda na mesma quadra. Os clientes, assustados com os preços altos e a violência, também sumiram. A mídia seria culpada de mais esse drama em apenas um único segmento da economia do DF?
Como virar a pauta para positiva quando São Paulo teve 40 ônibus incendiados nos primeiros dias do ano? Quando o metrô de S. Paulo e os trens do Rio de Janeiro dão pane, em pleno verão escaldante do país, deixando milhares de pessoas reféns da incompetência? Quando, a quatro meses da Copa do Mundo, as obras de mobilidade urbana prometidas nas capitais-sede em sua maioria não ficarão prontas?
Os estádios, vários atrasados, estarão prontos a toque de caixa à custa de bilhões de reais do contribuinte. Esses bilhões poderiam ter sido usados para resolver pelo menos parte dos problemas do transporte, da saúde, da educação, queiram ou não os defensores dos grandes eventos. Por que não?
Talvez fosse conveniente olhar para a Grécia. Vendeu a alma ao diabo dos interesses da União Europeia para se endividar e construir elefantes brancos para as Olimpíadas de 2004, hoje abandonados. Resultado: a sociedade grega está à beira do colapso. Jovens sem emprego deixam-se contaminar com HIV, no desespero de fazer jus a um salário de 700 Euros por mês, que os contaminados recebem. Como a imprensa vai ignorar esse dilema?
No Brasil, a mídia poderia ignorar a “acomodação e a inércia da máquina pública”, expressão usada pela ex-ministra da Casa Civil do atual governo em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”..
Em meio à omissão dos governantes e políticos, além da lentidão do Judiciário, acompanhamos, como se fossem novelas, as histórias nada edificantes dos desvios de dinheiro público por meio de combinação de preços em S. Paulo; a interminável novela do “mensalão”, agora com enredo internacional; os eternos congestionamentos de caminhões nos portos, enquanto o BNDES financia porto em Cuba; e hospitais públicos, onde os médicos vêm-se no triste dilema de decidir quem vai morrer, por falta de equipamentos. Não vai ser um programa eleitoreiro como o Mais Médicos, ressalvado no que ele tem de positivo, que vai resolver o problema da saúde no Brasil. Enfim.
Império do caos
Não bastasse tudo isso, desde o ano passado o Brasil assiste às manifestações de rua, transformadas em ágora preferida para a população gritar, pela inoperância do legislativo e a incapacidade dos governos em resolver os problemas diários. Elas nasceram como uma esperança e podem sumir como uma miragem. Os mentores dos protestos se recolheram tão logo o movimento foi apropriado por grupos políticos radicais, os famigerados black-blocs, arruaceiros e até mesmo pelos meliantes do PCC. Contaminado o movimento, virou baderna. A polícia, criticada pela violência, se recolheu e deve ter pensado. Deixa quebrar, não vamos arriscar a pele e ainda levar paulada dos grupos que defendem os arruaceiros, incluindo advogados de plantão nas delegacias, para libertá-los rapidamente. Diante da pressão, prometeu-se um elefante e pariu-se um rato.
O império do caos nas ruas do Brasil, com interrupções diárias de pistas e avenidas; ônibus e instalações depredados e incendiados, além de greves, acompanhadas de desordens por todas as principais cidades, é apenas o resultado da fraqueza das instituições nacionais. A revolta e dezenas de mortes no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, (resultado da riqueza no Estado, na infeliz interferência da governadora Roseana Sarney) merecia uma explicação melhor do Ministério da Justiça. O que faz a Guarda Nacional lá em São Luís, desde outubro do ano passado, às custas do dinheiro do contribuinte? Entrevistas com semblantes contritos, apenas para atender à pauta da mídia, não convencem o povo nas ruas.
A crise das instituições nacionais e a crise econômica, queira ou não o ministro da Fazenda, vai continuar aparecendo na mídia. O cenário pessimista de 2014, com todo o oba-oba de uma Copa do Mundo, não vai ser revertido pela imprensa. Talvez possamos buscar alguma lição nos Estados Unidos e na Europa. Após cinco anos de agruras, com índice de desemprego recorde, aquelas economias aos poucos dão sinal de recuperação. Nos vangloriávamos de vivermos numa “ilha”, em meio à tempestade internacional. Chegou, quem sabe, o momento de se molhar e pegar algum resfriado para tentar salvar a nossa casa.
Talvez seja a hora de autoridades, políticos, governos de modo geral começarem a ler e ouvir com mais atenção o que diz a imprensa. Ela pode até ter lá seus defeitos, simpatias, interesses ou restrições a pessoas ou governos. Mas na média, a mídia, aqui ou fora do país, tenta interpretar os anseios e dilemas das sociedades. E não há registro de que se a imprensa, em qualquer lugar do mundo, omitisse os fatos negativos ou passasse só a dar versões cor-de-rosa dos feitos dos governos, contribuísse para resolver crises. Quem não concordar, talvez não conheça a História.
Como diz Timothy Garton Ash (1): “O primeiro dever do historiador e do jornalista é descobrir os fatos. Não é o único dever, talvez não seja o mais importante, mas é o primeiro. Os fatos são as pedras a partir das quais construímos caminhos de análise, os ladrilhos de um mosaico que encaixamos para compor imagens do passado e do presente. Haverá desacordos sobre para onde a estrada leva e qual é a realidade ou verdade revelada pela imagem do mosaico. Os próprios fatos precisam ser apurados contra todas as provas disponíveis. Mas alguns são redondos e duros – e os líderes mais poderosos do mundo podem pisoteá-los. O mesmo podem fazer escritores, dissidentes e santos”.
(1) Os fatos são subversivos – Escritos políticos de uma década sem nome (Garton, Timothy Ash, São Paulo: Companhia das Letras, 2011).