15 de setembro de 2008. Ninguém, pelo menos do mundo financeiro, esquece essa data. No calendário gregoriano sinaliza a quebra do banco americano Lehman Brothers. Mas tem outros significados. Simboliza o sinal para o mundo de uma crise grave que vinha amadurecendo e se agravou a partir daquele mês. Essa concordata acabou disparando a sirene que anunciava uma crise de uma dimensão verdadeiramente global.
Pior ainda. A lembrança da data, cinco anos depois, não é apenas o registro histórico do início da crise. Ela se perpetua, continuando presente numa crise global que atinge todas as economias. E não tem uma perspectiva clara para acabar. Talvez o efeito mais perverso dessa crise tenha sido o número de empregos que ela ceifou. Alguns economistas falam de 20 milhões de postos de trabalho perdidos no mundo.
A crise vinha de 2007, com os problemas no mercado de hipotecas de alto risco, o chamado subprime, nos Estados Unidos. Com o estouro da bolha imobiliária americana, o mundo começou a entender que não era uma “marolinha”, como Lula desdenhou na época, em relação ao Brasil.
A magnitude e o alcance dessa crise passaram batidos pelos analistas financeiros. Apenas um punhado de políticos e banqueiros de bancos controladores sentiram que algo pior poderia vir. E pareciam entender. Aumento e queda de cooperação global, a resposta política sem precedentes, quando ninguém se entendia, com ainda desconhecidos efeitos colaterais, a transformação de uma crise de dívida privada em uma crise da dívida soberana, a pressão sobre os padrões de vida, e a mudança na economia global que, de início, não poupou o mundo ocidental desenvolvido e, logo depois, caminhou em direção aos mercados emergentes. Enfim, era como se um tsunami devastador se aproximasse e nenhum serviço de alerta tivesse avisado os governos e a população.
Segundo o ex-vice-presidente do Federal Reserve Alan Blinder, no livro “After the Musit Stopped”, citado pelo jornal Valor Econômico, “virtualmente, toda a discussão sobre a crise financeira divide a história em duas épocas? “Antes do Lehman” e “depois do Lehman”. O Lehman era a quarta maior instituição financeira dos EUA, com longa tradição em Nova York, e no mercado financeiro. Esse banco era o exemplo do que outros tantos faziam, brincando em altas apostas com o dinheiro alheio.
Por trás dessa crise, de executivos premiados e beneficiados com bônus milionários, houve erros básicos de gestão que até agora não foram punidos ou apurados. O historiador britânico Nial Ferguson disse, em 2009: “Está muito claro que a crise financeira foi causada por um grosseiro erro de administração pelas pessoas que geriam os bancos. E o fato de que muitos deles continuam a comandá-los é profundamente irritante”.
Para entender melhor como se chegou ao 15 de setembro, nada melhor do que uma imersão no documentário “Inside Job” (Trabalho interno, na versão em português), que colheu depoimentos de agentes - tanto mocinhos, quanto bandidos - de todo o imbróglio que levou à derrocada da economia. Mais do que instigante, essa história de não ficção é espantosa e inacreditável.
Segundo reportagem publicada no The New York Times, em 15/09/13, “numa reunião a portas fechadas no começo de 2011, agentes reguladores de Wall Street estavam próximos a jogar a toalha sobre o maior de todos dos casos. Os oito membros da equipe da Comissão de Valores Mobiliários (SEC, na sigla em inglês) responsável pelo Lehman Brothers , após dois anos enfrentando uma sinuca atrás da outra, concluíram que processar os executivos do banco seria algo legalmente injustificável."
"O grupo, lembrando que promotores e agentes do Escritório Federal de Investigações (FBI, na sigla em inglês) já tinham desistido de um caso criminal semelhante, decidiu por unanimidade fechar a mais proeminente investigação decorrente da crise financeira, segundo oficiais que participaram da reunião. É algo que permanecia inédito até hoje."
"Mary L. Schapiro, a presidente-executiva da SEC, discordou. Ela pressionou George S. Canellos, que supervisionava a investigação sobre o Lehman como chefe do escritório novaiorquino da SEC, a explicar como executivos que estavam no comando durante a maior quebra da história dos Estados Unidos poderiam escapar sem sequer um processo civil.”
Ainda segundo o NYT, “Ela estava certa. Cinco anos depois do colapso do Lehman Brothers promover um pânico econômico mundial, o governo enfrenta questões pendentes sobre a decisão de livrar executivos como Richard S. Fuld Jr., que dirigiu o Lehman por 14 anos até o banco acabar. Nem um único alto executivo de qualquer banco de Wall Street enfrentou uma ação criminal decorrente da crise. E o prazo para o governo ajuizar a maioria das acusações termina neste mês, o mês de aniversário do colapso do Lehman, trazendo à luz uma lembrança do caso e de seu resultado impopular.”
Sinais de recuperação
Após cinco anos, os Estados Unidos começam a se recuperar e tentam fugir do princípio de recessão que assustou os americanos nesse período. Cenas de pobres acampados em parques, sem moradia, e recebendo ajuda dos governos pareciam remontar às décadas de 1960 e 1970 nos países pobres da África e da América Latina. Mas eram na poderosa América. “As pessoas ficaram perdidas” diz um imigrante brasileiro nos EUA.
O sonho da casa própria faz parte da cultura americana. E de repente, milhares de famílias perderam suas casas, hipotecadas e levadas pelos bancos ou abandonadas por falta de pagamento. As casas perderam o valor e muita gente devia mais ao banco do que valia o imóvel. A ex-capital do automóvel Detroit talvez seja o ícone mais perfeito da crise americana. Mais de 10 mil imóveis desocupados e abandonados. 25% da população da cidade migrou ou está migrando em busca de emprego em centros com economia mais pujante. A cidade outrora tão pujante quebrou, como quebraram outras tantas cidades na California.
Na semana passada, a Europa comemorou a saída da recessão. Cinco anos depois do colapso do Lehman Brothers, que gerou a pior crise financeira desde 1929 e arrastou também o continente europeu para o buraco, o grupo de países que adotou a moeda única voltou a crescer: 0,3% no segundo trimestre, frente ao trimestre anterior. Pouco para os padrões dos anos anteriores, mas uma luz no fim do escuro túnel dos últimos cinco anos.
O PIB do segundo trimestre foi positivo para grande parte dos países da zona do Euro. O Reino Unido nos últimos meses tem também mostrado uma tímida recuperação. Pelo menos é um sinal positivo num cenário que vinha apontando para a recessão. A Grã-Bretanha não padece dos males crônicas de outros países, como Portugal, Grécia e Itália, o desemprego. Por isso, o país continuou atraindo imigrantes, o que fez o governo apertar cada vez mais a triagem nos pontos de entrada. Embora a Inglaterra não consiga sobreviver sem os imigrantes, esse movimento de rejeição acentuou-se com a crise econômica.
Se os Estados Unidos e o mundo se ressente ainda dos efeitos da crise, vários países da a Europa não conseguiram cicatrizar as feridas. A mais longa recessão no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial, deixou sequelas. A taxa de desemprego ainda está em patamar recorde, de 12,1% em julho. Quase um quarto (24%) dos jovens abaixo de 25 anos estão sem emprego na região.
Em países como a Espanha e Grécia, o desemprego juvenil chega a 56,1% e 62,9%, respectivamente. Nesses países, fala-se numa geração perdida, que apesar de ter concluído o curso superior, estudado em boas escolas, não tem perspectiva de encontrar um emprego que garanta o futuro. Frustrados, vão para o exterior, em busca de oportunidade, ou voltam para a casa dos pais.
Mar de tranquilidade
A Alemanha foi o país que conseguiu enfrentar a borrasca pelo menos com mais tranquilidade, mas os efeitos da crise cortaram ou degradaram milhões de empregos. Não há como ter uma economia forte, imune, num mundo interconectado como o atual. Respingaram na Alemanha os problemas graves da Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda, Itália e Chipre, para citar alguns.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que, no mundo inteiro, ainda será necessária a abertura de 30,7 milhões de vagas para que o emprego retome o nível pré-crise. A melhora recente ainda é tímida. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE, que reúne sobretudo países ricos) informou nesta semana que a taxa de desemprego dos 33 países membros recuou de 8% em junho para 7,9% em julho. Não dá para grandes comemorações ainda.
Embora haja sinais de recuperação nos EUA, ainda há milhões de pessoas sem emprego, sem casa e que tiveram que largar a faculdade, porque não podem pagar os cursos, dizem especialistas. Em janeiro de 2008, os EUA tinham pouco mais de 138 milhões de empregos, excluído o setor rural. Em fevereiro de 2010, o número era 129,3 milhões, no auge da crise. O crescimento do emprego teria elevado esse número para 136 milhões, faltando repor ainda dois milhões de vagas. O ideal para uma economia vigorosa como a americana seria criar mais 7,5 milhões de empregos. A taxa de desemprego nos EUA está em 7,5%, índice considerado alto para os padrões americanos.
Crise financeira
Segundo Mike Konczal, em artigo para o Washington Post, analisando a crise financeira pelo menos sob o foco dos Estados Unidos, falar na falência do Lehman Brothers como o início da crise é errado ou terrivelmente incompleto. O foco no Lehman obscurece o fato de que havia realmente três crises. “Seguramente havia a crise dos mercados financeiros no final de 2008. Mas havia uma crise financeira que teria acontecido ainda que a falência do banco Lehman Brothers não tivesse acontecido. E, por terceiro, há ainda uma crise de confiança sobre a capacidade de nossos mercados financeiros estarem atualmente beneficiando a economia como um todo.”
Artigo publicado na revista The Economist, esta semana, diz também que as crises financeiras têm enormes efeitos sobre o crescimento global. Jim Reid, do Deutsche Bank, calcula que a média de crescimento do PIB nominal a cinco anos está em seu nível mais baixo desde 1930. Este é um cálculo global, contemplando os mercados emergentes.
Nos últimos dias, jornais, revistas, canais de tv de todo o mundo produziram reportagens, artigos e comentários sobre o que representou os últimos cinco anos na história da economia mundial. Talvez nenhum período, desde a segunda metade do século XX, foi tão difícil quanto este. Nem as ameaças da III Guerra Mundial, no auge da Guerra Fria, ou a crise do Petróleo dos anos 70, tampouco a crise dos mísseis, em 1962, tiveram efeito tão perverso para milhões de pessoas, independentemente de Continente, ideologia ou etnia.
A conclusão de um artigo na revista The Economist desta semana parece resumir o cenário atual. “Assim, cinco anos depois do colapso do Lehman nós podemos ter evitado outra Grande Depressão, mas há ainda problemas reais para serem enfrentados.”
Os efeitos da crise econômica no Brasil serão analisados em outro post.
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