As cenas de selvageria, para dizer o menos, que assistimos pela televisão protagonizadas por uma horda de bárbaros destruindo prédios, instalações públicas, empresas privadas e fazendo saques a lojas no Rio de Janeiro não apenas causam revolta. Elas demonstram a que ponto chegou a ineficiência do poder público para debelar uma crise, ante os pruridos do “politicamente correto” e do “vamos esperar para ver como fica”.
Mais ou menos como o pai que não corrige ou reprime o filho, porque o Congresso Nacional acenou com a chamada Lei da Palmada ou porque ele tem medo de que o filho, revoltado, saia de casa ou vá à Delegacia denunciá-lo.
A derrocada dos valores que fundamentam um país e uma democracia começam pela leniência dos poderes públicos em cumprir seu papel. Exemplo aconteceu no México e na Colômbia com o narcotráfico. Os governos, de início complacentes, depois incompetentes para coibir, por último impotentes diante do poder das “máfias”, acabam transformando o país num território refém das gangues.
É isso que estamos esperando? A horda de selvagens que atacou prédios privados e públicos e instalou o caos nas proximidades do Leblon, no Rio de Janeiro, sentiu a fraqueza do governo do Estado em reprimi-los, a ponto de o Comandante da PM, quase chorando e num desabafo, informar, em entrevista, que havia “pacto”, no mínimo estranho, com secretaria de Direitos Humanos, OAB, Defensoria Pública, Ongs e Anistia Internacional para não usar qualquer tipo de arma, mesmo não letal ou gás lacrimongêneo, contra os chamados “manifestantes”.
Os policiais se retraíram e ficaram limitados à contenção, segundo o Comandante. Um disparate, como se depreendeu das cenas no Rio de Janeiro. Não há como combinar um protocolo, nem pactos, se o outro lado não reconhece sua existência. Como fazer pacto com líderes invisíveis?
O que se viu foi um grupo organizado de bandidos, cobrindo os rostos para não serem identificados, portando coquetéis molotov, explosivos, estilingues, pedras para atacar a polícia ou quem cruzasse o caminho, dispostos a quebrar e roubar. Como nas guerras, o pretexto foi protestar contra o governador ou se infiltrar no grupo. Mas o motivo estava claro: saquear, roubar.
O grupo de arruaceiros não estava lá por acaso. Nem, no caso, dá para culpar a polícia de tê-los provocado. Eles não saíram de casa ou das cavernas em vão. Eles vieram organizados. As declarações de Sérgio Cabral e secretários, além do Comandante da PM, com semblantes circunspectos e até certo ponto atônitos, falando palavras bonitas para justificarem a omissão da polícia, não justificam a inação do poder público diante da crise instalada no Estado do Rio de Janeiro.
Impressiona também o Secretário de Segurança do Estado reconhecer que as forças estaduais não sabem como atuar com grupos de manifestantes que vem entrando em confronto com a polícia e promovendo depredações. “Ainda estamos aprendendo como atuar em cada manifestação. Estamos aprendendo nesse processo com coisas que não conhecemos...” Como é? O Secretário de Segurança de uma das maiores metrópoles do mundo diz em uma coletiva de imprensa que não sabe como lidar com os manifestantes? Então a crise é muito pior do que imaginamos.
A polícia admite que há cinco anos a disciplina Controle de Distúrbios Civis foi retirada do currículo. Ela pensou que o Brasil ou o Rio haviam se transformado, de repente, num mosteiro, com voto de silêncio?
O próprio Comandante da PM, constrangido numa entrevista à Globo News, disse que a Polícia está limitada nas ações, pela recomendação de não fazer qualquer ação para reprimir a baderna. Ou seja, os policiais estão lá apenas como figura decorativa, se entendemos bem? Dependem de “autorização” dos órgãos que se dizem “defensores dos direitos humanos” para agir e cumprir seu papel? “Nós estamos acuados também”, diz o Comandante da PM do Rio.
O Secretário de Segurança diz que aquelas ações “por vezes colocam a polícia entre a prevaricação e o abuso de autoridade”. O que há nessa incógnita, como diz O Estado de S. Paulo, em editorial, é que essa falsa opção entre dois extremos inconvenientes transformou as manifestações em permanente risco às instituições e à democracia: “...perdeu-se o indispensável ponto de equilíbrio entre a garantia do direito democrático às manifestações e o combate aos grupos violentos que delas se apropriam”.
Rafael Cortez, cientista político e professor da PUC-SP, diz que a surpresa desses grupos que pegam carona nas manifestações para extravasar ódio e vandalismo não foi só para as polícias. Mas também para a sociedade civil, que não consegue separar onde está a verdadeira manifestação, que realmente quer pressionar os governos por melhorias, e os aproveitadores e marginais. Até porque a manifestação é espontânea e não tem uma liderança caracterizada.
Quem são os culpados
O governador do estado brincou durante o primeiro mandato e parte do atual com a paciência do povo. Fugiu para Paris, durante pelo menos duas grandes tragédias nos meses de janeiro, quando desde Estácio de Sá o carioca está caduco de saber que janeiro sempre foi o mês das enxurradas, no Estado, quando não de tragédias.
As relações com empreiteiros investigados e suspeitos, donos da maioria das licitações no Rio, além do uso de helicópteros públicos para viagens particulares, são demonstrações de que os governantes têm extrema dificuldade de separar o múnus público das relações privadas, sob o risco de transformar o mandato numa ação entre amigos.
Nele, alguns poucos privilegiados e amigos do rei enriquecem rápido e a população, em geral, que precisa de transporte decente e eficiente, hospitais com atendimento mínimo e repartições públicas honestas, cansou. O governador pensa estar na Ilha da Fantasia, desde o dia em que o Rio de Janeiro foi escolhido para sede das Olimpíadas e o Brasil para a Copa do Mundo. Como se o Rio pudesse ser governado pelo marketing e promessas. Mais ou menos o que está acontecendo com o Brasil. Em algum momento iria chegar a cobrança da conta.
O movimento em frente à residência do governador, pretexto para que os marginais saíssem dos esconderijos e viessem atormentar a vida do contribuinte, dos empresários e moradores que pagam impostos caros, é apenas a ponta do iceberg. Não há de se admirar que alguns segmentos até apoiem o vandalismo, como forma de desafiar o governo e, assim, desestabilizá-lo. O estado e a cidade têm uma crise grave para enfrentar. E o que fez o governador nos dias que antecederam a baderna? Nada.
Ele resolveu convocar uma “reunião urgente para debater segurança” apenas na hora em que a multidão se aproximou da Bastilha de forma perigosa e desafiadora, na última quinta-feira. Uma cidade em que um cidadão não pode errar o caminho para o aeroporto, onde ia buscar a esposa, e cai numa viela de território dominado pelo tráfico, leva um tiro na cabeça e morre dias depois, não é uma cidade. Me desculpem os cariocas. É um território sem lei.
A propaganda das “unidades pacificadoras”, nome bonito para uma política de ocupação parecida com a dos territórios em guerra, que precisavam de forças de segurança para garantir a paz, não basta. Há uma pouco de segurança pública e muito de marketing nessas unidades “pacificadoras”.
Pouca gente se detém para analisar o que significa e quanto custa o cartão postal com que o governo do Rio, mais especificamente o sr.Sérgio Cabral, conseguiu se reeleger sob o manto protetor de Lula, e mantém seu marketing. Para garantir um mínimo de segurança numa favela pacificada são mobilizados milhares de soldados. 1.500, por exemplo, para aglomerados de 150 mil, 200 mil pessoas. Qual a cidade de 150 mil habitantes no país que tem efetivo de 700 ou mil policiais?
Após a ocupação de três favelas perto do Corcovado, Cerro-Corá, Guararapes e Vila Cândido, no Cosme Velho, em abril deste ano, para uma população de 2.800 moradores, 190 soldados do Bope fazem a segurança. Que cidade de 2.800 habitantes, no interior, tem o privilégio de manter 190 policiais de elite treinados?
É um luxo que nem as mais seguras e ricas cidades do mundo possuem. A grande Londres, por exemplo, uma das metrópoles mais seguras do mundo, possui 600 policiais para cada 100 mil habitantes. A média de algumas UPPS é muito superior a de Londres e Nova York. Uma loucura. Qual o custo dessa pseudosegurança para manter o Sr. Sérgio Cabral no poder?
Naturalmente, que com tantos policiais concentrados em algumas favelas ou bairros, que não são mais favelas, transformadas em atração turística, as demais são comandadas por bandidos que se dão ao direito de escolher quem pode entrar ou sair. Mais ou menos como no velho oeste, onde havia cidades comandadas por bandoleiros.
As cenas de quarta-feira, 17, à noite, são apenas a primeira demonstração do que os bandidos podem fazer, se a polícia não agir como agem as polícias dos países desenvolvidos. Tolerância zero foi o que transformou Nova Iorque numa cidade segura.
Quebrou uma vitrine, lixeira, invadiu loja, botou fogo na rua, com barricadas, como aconteceu em Londres, em 2011, a polícia espalha imagens em telões pela rua e pede-se que os marginais, não importa a idade, se maior de idade ou menor, sejam denunciados. E a população denunciou.
Onde estão os jovens formalmente acusados de quebrar e incendiar prédios e lojas em Londres em agosto de 2011? Na cadeia. Não importa se filhos de classe pobre, média ou abastada. Comprovada a participação, não há advogado para tirá-los da cadeia. O que aconteceu no Rio? Nove foram presos, por formação de quadrilha e outros crimes. Oito pagaram fiança e já estão nas ruas. Eram pobrezinhos? Naturalmente que não.
O “choque de ordem” prometido pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes, quando assumiu, de fato nunca aconteceu. Agora sim a cidade e o estado estão precisando de um “choque de ordem”. Ah, mas a polícia, como aconteceu em S. Paulo, foi violenta com os manifestantes. E não é com violência que o Rio vai encontrar a paz. Perguntem para o proprietário da loja saqueada no Rio, de onde levaram absolutamente tudo, se ele concorda com essa política de deixar os manifestantes fazerem o que bem entendem.
Crise demanda ações imediatas
É hora de os manifestantes pacíficos se perguntarem se vale a pena continuar, disse Artur Xexéo, na Rádio CBN. Segundo ele, há várias semanas o Rio deveria ter instalado full time um Gabinete de Crise; não apenas depois que o circo pegou fogo. “Há na cidade uma crise de organização, uma crise de segurança. A cidade não está sabendo reagir às manifestações populares que estão acontecendo”, diz o jornalista.
A princípio, talvez o governador tenha achado que aquele acampamento e protestos posteriores eram um convescote de colegiais em férias, sem nada para fazer. Até pode ser. Mas aquele protesto foi o embrião do que viria a se tornar o desfile do bloco dos bandidos da quarta-feira. E a origem tem muito a ver com as atitudes do governador.
“Me surpreende que o governador tenha demorado tanto para fazer reunião com todas as secretarias”, diz Artur Xexéo. Ou será que ele não sabe avaliar a gravidade do momento e acha que tudo vai acabar numa festa com bandana, em algum restaurante de Paris, rodeado por empresários amigos que pagam a conta com o nosso dinheiro?
A demonstração mais cabal de que o Rio de Janeiro estava despreparado para enfrentar manifestações, sejam pacíficas ou violentas, é a declaração do Comandante da PM à Globo News de que “hoje (18)”, portanto, 24 horas após os distúrbios mais violentos, estaria “se constituindo uma força-tarefa multidisciplinar para estudar aqueles movimentos”.
Na sexta-feira, o governador do Rio tirou da cartola um outro culpado para a crise: “Você tem nesses atos de vandalismo a presença de organizações internacionais... A gente sabe que há organizações estimulando o vandalismo, o quebra-quebra.” Se sabe, denuncie. São declarações evasivas. Nas crises, quando o responsável não assume o comando, ou está perdido, ele procura dividir a culpa com terceiros. O que não resolve a crise.
O povo carioca e fluminense quer segurança. Os empresários querem garantia de que seu patrimônio não vai ser destruído. Pelo jeito nem o Papa pode fazer o milagre de apaziguar a horda de vândalos que se diverte quebrando vidraças. A polícia militar e civil, dentro dos limites da lei, precisa assumir seu papel: reprimir e prender os desordeiros, sem passar a mão na cabeça; sem equipes de advogados apressados em “dar assistência” para libertar os "pobres" jovens que fizeram as arruaças. O Comandante da PM pergunta: “por que 20 ou 30 advogados estão na Delegacia na hora em que se prende o pessoal que vandalizou?” Boa pergunta.
Manifestação pacífica defendida por todos que estão a favor da livre manifestação corre o risco de se transformar num eufemismo para minimizar o desrespeito ao direito de ir e vir, que começa a ser afrontado no país. Você sai de casa hoje e não sabe mais se chega ao trabalho, se pega o avião, se toma um táxi, porque todos os dias nas grandes cidades alguém resolveu protestar contra o aumento da passagem, contra a insegurança, contra a Copa e até contra o tempero da comida no restaurante universitário; e descobriu que interromper ruas ou estradas de rodagem dá ibope e alguns minutos de glória na tevê.
Virou moda estudantes, MST, organizações de toda a estirpe invadirem prédios públicos e até posar nus, como aconteceu na Câmara de Vereadores de Porto Alegre.
É ainda Artur Xexéo, que concluiu sua intervenção na CBN: não dá mais para classificar de manifestação pacífica, porque todas elas acabam em saques e baderna, depredação, incêndios”. O que aconteceu na madrugada no Rio foi o total descontrole da segurança e a ausência completa do poder público.
Parecia aqueles filmes de violência, em cidades abandonadas, em que as gangues tomam conta e deixam a população acuada. Mais ou menos como no filme “Nova Iorque sitiada”. As cenas se repetiram em Vitória, na última sexta-feira, quando o prédio histórico da sede do governo foi atacado violentamente por gangues mascaradas.
Teve alguma ordem para a polícia não intervir? Sérgio Cabral também culpa outros políticos por comandar os protestos... Alguns analistas asseguram que a atuação do governador nessa crise tem deixado a desejar. Não é à toa que escolheram sua casa para protestar e não a do prefeito do Rio. Talvez porque Cabral se negou a dialogar com os manifestantes. O argumento do governador de que foi eleito com 67% das preferências, no Estado, não lhe dá o direito de se omitir num momento desses.
Pode haver várias teorias conspiratórias para explicar o desenlace das manifestações no Rio de Janeiro. Mas não há dúvida de que o comportamento do governador tem contribuído para o descrédito nos governantes e nas instituições. O Rio não resolveu o problema da violência. Pode ter diminuído em alguns bairros mais policiados. Mas o domínio do tráfico em vastas regiões da cidade e do estado mostram que construir teleféricos pode ser muito bonito como peça promocional para os turistas. Mas a população quer soluções mais simples, como disse aquela moradora da Rocinha, mostrando vala com água e esgoto próxima à sua casa.
Existe hoje no Brasil uma crise real, que o governo teima em atribuir aos “pessimistas” e “aves agourentas”. O pior cego é aquele que não quer ver. Iludidos pela fartura do crédito nos últimos anos, as classes mais pobres percebem a crise quando vão no supermercado, nos hospitais ou precisam de uma repartição pública.
Daí, o convite para as passeatas mobiliza rapidamente pessoas que está cansadas de esperar por soluções. As redes sociais podem realmente ajudar, mas não é só a força das redes que leva as pessoas para as ruas. É o sentimento de que os governos, mais preocupados com a próximo eleição, não estão sendo capazes de atender às suas demandas.