Ainda é cedo para uma análise mais cuidadosa. A morte de 235 pessoas, em boate em Santa Maria-RS, em incêndio na madrugada de domingo (27), mostra novamente uma combinação de erros, em que ninguém se salva: governos, empresários, autoridades policiais e fiscalização. Já é o segundo maior incêndio da história do país.
A morte de tantas pessoas, grande parte jovens, choca porque, numa análise ainda superficial das causas da tragédia, pode-se depreender que, com um mínimo de responsabilidade e respeito às normas de segurança, poderia ser evitada. Isso causa indignação a toda a população, mas principalmente aos parentes das vítimas.
Para ter uma ideia da magnitude da tragédia, o incêndio teria começado às 2h da madrugada e só foi controlado às 5h. Cerca de 2 mil pessoas estavam no local. Mais de 10% foram vítimas fatais. Segundo especialistas, esse é um índice de mortalidade muito acima do aceitável. Evidencia, nesse caso, uma falha grave nos sistemas de saídas de emergência e de evacuação do local. Resumo: a boate não tinha estrutura para evacuar os frequentadores, no caso de uma tragédia. Todas as vítimas fatais morreram por inalação de fumaça, nenhuma por queimaduras, segundo o Coronel do Corpo de Bombeiros. Isso caracteriza uma falha lamentável na evacuação. Como não conseguiram sair, foram intoxicadas.
Pode-se concluir que a segurança da boate era despreparada. Estava lá para prender e garantir o pagamento da conta e não a proteção dos participantes. Mais grave ainda é a informação do Corpo de Bombeiros de que os proprietários fecharam a saída, no início do incêndio, para evitar a fuga sem pagar a conta. Portas de emergência também estavam trancadas. O Comandante do Corpo de Bombeiros confirma que vários corpos foram encontrados na saída e nos banheiros, por terem confundido como saída de emergência.
Mas a responsabilidade, como sempre, não é só dos empresários. Deve ser compartilhada com o poder público, que não fiscaliza, não cumpre seu dever e só tem olhos para os impostos que arrecada. O Corpo de Bombeiros também falhou, porque deveria interditar liminarmente um local sem saídas de incêndio adequadas e com licença vencida. Há, neste caso, uma mistura de irresponsabilidade com falta de moral e ética para colocar 2 mil pessoas num ambiente que mais parece uma ratoeira.
Tragédias idênticas, ocorridas em no Reino Unido, em 2003, Buenos Aires, em 2004, e Madrid, no ano passado, mostram o erro de sempre: empresários gananciosos e poder público complacente. Como sempre, após a tragédia, só resta descobrir o óbvio. Não havia saídas de incêndio suficientes; erros dos seguranças, que fechavam as portas; falta de fiscalização e, como nesse caso, licença vencida para funcionar. A rotina de sempre.
Especialistas em gerenciamento de riscos dizem que casas de diversões, como boates e outros locais de shows, não têm qualquer orientação ou treinamento para gerenciar evacuações de emergência; não sabem nada sobre risco, sequer informações sobre como proceder em situações de pânico, como a acontecida em Santa Maria. O gerenciamento de risco não recomendaria abrir um show ou espetáculo com a capacidade total, como aconteceu nesse caso.
Essa tragédia deve servir de exemplo para que o poder público mude tudo em relação a prevenções nessas verdadeiras ratoeiras, em que se transformaram essas casas de espetáculos. Mas, como aconteceu no incêndio do Edifício Joelma, em São Paulo, e outras tragédias semelhantes, nos primeiros dias, a comoção faz autoridades e políticos irem à mídia anunciar medidas rigorosas e investigação. Passados alguns dias, as ações de prevenção só ficam nos projetos, engavetados após o tema esfriar na mídia.
Vamos passar vários dias agora, como aconteceu na tragédia com as chuvas e deslizamentos no Rio de Janeiro, e em outras tantas no país, discutindo e ouvindo comentários sobre erros e o que deveria ser feito. Não adianta. Um país que pretende ser desenvolvido deve amadurecer; parar de administrar o negócio, em qualquer ramo, como uma casa da mãe joana, em que o empresário faz o que quer e o poder público se omite. Só resta rezar pelos mortos e os famíliares, como sempre as maiores vítimas da irresponsabilidade.
As falhas em cadeia da tragédia de Santa Maria
• A boate não tinha capacidade para abrigar 1,5 mil pessoas, num ambiente sem segurança; a capacidade do local era para mil pessoas;
• Não havia plano de contingência. As saídas de emergência da boate estavam fechadas ou eram inexistentes
• Não havia rota de fuga, para casos de evacuação rápida; a única saída da boate era obstruídas ;
• Os seguranças não tinham treinamento e experiência para gerenciar um tumulto, na dimensão do acontecido; por isso, impediram a saída, em segundos cruciais;
• A saída principal foi bloqueada, num momento crucial para evacuação do público;
• Não havia treinamento para evacuação rápida de tanta gente;
• A boate não tinha plano de emergência e nem de comunicação. No dia da tragédia, o site estava aberto como se nada tivesse acontecido;
• O alvará de funcionamento estava vencido;
• Corpo de Bombeiros em não interditou a boate e permitiu seu funcionamento durante três anos sem as mínimas condições de segurança;
• Empresários colocaram em risco a vida de tantas pessoas, ao instalar boate sem as mínimas condições de segurança;
• Empresários sumiram, não publicaram qualquer esclarecimento ou Nota de pesar. Só o fizeram por meio de advogado e o conteúdo foi equivocado, procurando se eximir de culpa;
• A banda, que utilizou sinalizador, com poder incandescente, num ambiente com amplo material de fácil combustão, sem levar em conta o risco de incêndio;
• Os governos municipal e estadual não exigiram o cumprimento das normas de segurança e não fiscalizaram ambiente liberado para grandes aglomerações;
• A polícia interditou a rua, permitindo tumulto na hora do resgate;
• As autoridades locais divulgaram número errado de vítimas, durante o primeiro dia, ainda sem confirmação.