Semana passada, em S. Paulo, uma mãe esqueceu a filha de cinco meses no carro, às 9h da manhã, quando estacionou para trabalhar. Lembrou somente às 15h, quando saiu do trabalho para buscá-la na creche. A criança não resistiu à falta de ar e ao calor e foi encontrada morta.
Não foi a primeira tragédia desse tipo com crianças. No mesmo dia, no outro lado da cidade, um pai inconformado com o fim do casamento, subiu no último andar de um prédio de 18 andares e, segundo as primeiras conclusões da polícia, depois de ter arremessado o filho de dois anos do terraço, suicidou-se no mesmo local.
O que está acontecendo na cidade grande para uma mãe esquecer a filha de cinco meses dentro do carro? Que desilusão emocional levaria um pai, inconformado pela separação, arremessar-se de um prédio junto com o filho? Os psicólogos diriam que são resultados da pressão e dos desencontros da sociedade moderna.
Nada é mais importante para uma criança do que o carinho de uma mãe. A maioria das mães arrisca a saúde e a vida para proteger os filhos. Mas como é possível a própria mãe, a melhor pessoa do mundo para cuidar da sua filha, poder esquecê-la num carro, como se fosse um objeto? Podem existir várias respostas. Mas na roda-viva em que o profissional moderno vive hoje, cuidar e proteger os filhos, missão tão cara e nobre no passado, virou “commodity”. Entrou no rol das rotinas diárias, como se fosse ir ao supermercado ou ao cabeleireiro.
Será que o stress e as cobranças da vida moderna está nos transformando em robôs competitivos, a ponto de, distraídos ou não, estarmos trocando o que há de mais precioso na vida por reuniões improdutivas, viagens ou longas jornadas de trabalho? Ou, para não perdermos a corrida do prestígio, da promoção e de melhores salários, estamos abdicando das relações humanas?
A tragédia do pai e do filho é o desenlace cruel de desilusões, casamentos desfeitos, amores obsessivos, que atingem pessoas que não conseguem conciliar as perdas de modo racional, nem lidar com a rejeição, levando-as a cometer desatinos. Mas a competição também não estaria na raiz desse caso, por fragilizar o casamento, por faltar ao pai o apoio necessário no momento em que mais precisava? Quantos colegas e parentes conheciam o drama desse pai? Ele morreu e matou talvez por amor. Sem poder refazer o casamento, optou pelo gesto extremo, e não teve coragem de deixar o filho naquele momento de fragilidade.
A falta de racionalidade nos dois episódios, que culminaram em tragédias, embora diferentes na forma, mas semelhantes no resultado, talvez só os psicólogos e psiquiatras possam explicar. Mas não há dúvida de que os dois acontecimentos têm a ver com a extrema dificuldade de enfrentarmos crises pessoais, num mundo extremamente competitivo. No primeiro, a inserção cada vez maior da mulher no mercado de trabalho acaba criando conflitos para administrar o duplo papel de mãe e profissional. Além de competir no mercado e ainda disputar espaço com os homens, as mulheres incorporaram a própria renda ao orçamento familiar ou são cabeça do casal ou arrimos de família, não tendo como abrir mão do trabalho e, por consequência, assumir na plenitude o papel de mãe.
Assim, a busca da eficiência, cumprimento de metas, cargos e promoções tornam-se uma obsessão, a ponto de fazer pais e mães descuidarem da família. O resultado está em que os casais estão terceirizando a paternidade, entregando a educação e a criação dos filhos para creches, titias, escolas, babás e empregadas domésticas, abrindo mão de conviver e crescer com eles, numa das fases mais bonitas da vida. Ou seja, abdicam daquilo que mais importa na vida: a família, o futuro dos filhos.
Nessa pressão maluca da vida moderna, na corrida para suprir a necessidade de competir e trabalhar, uma mãe perde a noção do tempo. Deixar a filha na creche era apenas um ato automático, como ir ao supermercado, tomar banho ou pagar contas no banco. No dia em que, inadvertidamente, alterou essa rotina, entrou em pane. Deixou a criança, talvez a principal razão da sua dedicação obstinada ao trabalho, indefesa e sozinha dentro do carro, causando sua morte.
Embora chocante, esquecer o filho no carro não é tão inusitado. Nos EUA, 443 crianças morreram dentro de veículos desde 1998, média de 37 bebês por ano. Na maioria dos casos (51%), as crianças foram esquecidas pelo adulto responsável, mas também ocorreram 30% de casos em que elas entraram no carro sem que ninguém percebesse. A sobrecarga de trabalho, mudança de rotina e excesso de responsabilidades são sempre apontados como causa.
Estamos tão preparados para enfrentar crises profissionais, nos precavemos tanto para ter segurança, presente e futura, com planos de saúde, previdência, poupança e seguros. No entanto, a rotina da cidade grande nos engole. A missão principal e nobre de pais e educadores é substituída pela de se tornar profissionais brilhantes, reconhecidos e competentes. Será que está valendo a pena? A tragédia dessa mãe acende em todos os pais um sinal amarelo. Esquecer no carro é apenas o ápice de uma tragédia que se desenha todo dia, ao não ter tempo de adotar gestos simples, como conversar, acompanhar os deveres escolares, estudar, brincar, levar ao colégio, contar histórias, fazer dormir, abraçar, beijar e conviver com os filhos algumas horas por dia. São os pais de fim-de-semana, porque, de segunda a sexta, dormem, acordam e saem sem ver os filhos.
O “esquecimento” dessa mãe e o desespero desse pai, que não devem, a priori, ser condenados, alertam como nós, tão certinhos no trabalho, estamos despreparados para administrar as próprias limitações e nossas crises pessoais. Talvez porque, ao despender oito, nove, dez ou mais horas no trabalho, estejamos nos transformando em estranhos na própria casa, até mesmo para nossos filhos. Não seria a hora de repensar essa prioridade, enquanto é tempo?
Para as duas mães, não existe pena maior do que a perda dos filhos. Por isso a Justiça tem encerrado esses inquéritos, sem penalizar ainda mais os responsáveis. Não seria o caso de pensar se vale a pena essa corrida desenfreada por valores calcados apenas no sucesso e no dinheiro? Corrida que é filha do consumismo, dos apelos publicitários, da necessidade de poder. Quem sabe, está na hora de pesar quais valores realmente importam na vida. Mesmo sem querer, o mercado e a sociedade acabam impelindo pais e mães a entrar nessa competição, não importa o preço, enquanto o principal valor pode estar esquecido no colégio, na creche, em casa, sozinho na internet ou abandonado à própria sorte, dentro do carro, no estacionamento.