O Comitê do Senado americano, criado após a invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, fez a primeira audiência pública em 9 de junho. E o que emergiu dos relatórios, depoimentos e inquéritos é de envergonhar a chamada maior democracia do mundo e chocar, quem imaginava que os EUA eram imunizados a espasmos golpistas à la América Latina. O Comitê deu ao episódio o nome correto: tratou-se de uma tentativa de golpe.
“Não se pode relativizar o que houve naquele tenebroso episódio. É preciso que haja punição exemplar para os que, a pretexto de defender a democracia, violentam justamente as instituições que a sustentam, como foi o caso da turba de vândalos que, sob o comando incontestável de seu líder Trump, inconformado com a derrota eleitoral, tentou reverter na marra o resultado das urnas.”, diz o jornal “O Estado de São Paulo”, em editorial.
Mas talvez a declaração mais constrangedora para Donald Trump, a família e os fantoches que invadiram o Capitólio, além da legião de fãs espalhados pelo Brasil, foi dada pela deputada Republicana Liz Cheney, uma das presidentes do Comitê, junto com o deputado democrata Bennie Thompson: “Aos meus colegas republicanos que tentam defender o indefensável, um dia Trump não estará mais aqui, mas sua desonra permanecerá...”
“As cenas de militantes pró-Trump enfrentando a polícia e adentrando a sede do Congresso dos EUA, até o plenário, no momento em que os congressistas se reuniam para confirmar a vitória de Joe Biden, evidenciaram as ameaças que pairam sobre as instituições democráticas − mesmo na maior potência econômica do planeta.”
Segundo o jornal britânico The Guardian, “Apesar do nome, o comitê de 6 de janeiro não está apenas investigando a invasão do Capitólio dos EUA em 2021. Está examinando com razão a campanha mais ampla para negar a vontade do povo. Sua primeira audiência pública na quinta-feira destacou o terror de um dia que levou à morte de pelo menos sete pessoas e viu 140 policiais feridos enquanto uma multidão, armada com braçadeiras e armas de choque, empunhava mastros de bandeira como porretes. Imagens gráficas e depoimentos vívidos de um policial do Capitólio – “Eu estava escorregando no sangue das pessoas… Foi uma carnificina” – lembraram aos telespectadores do horário nobre o quão chocantes e assustadores esses eventos foram.”
‘Todos nós temos o dever de garantir que o que aconteceu em 6 de janeiro nunca aconteça novamente’ (Editorial New York Times)
“A importância das audiências não é simplesmente responsabilizar Trump, seus aliados e os bandidos envoltos em bandeiras que invadem os corredores. As audiências desafiam todos os americanos a se comprometerem novamente com os princípios da democracia, perguntarem a importância desses valores para nós e enfrentarem as ameaças que representam ao nosso modo de vida democrático.”, diz o New York Times, em Editorial.
E mais: a ameaça, o perigo, não passou. Os golpistas, que tinham o bufão e burlesco político como ídolo e mentor, se espalham hoje por vários países, da Europa à América, principalmente no Brasil. Aqui, com legionários que torceram pela eleição do golpista, que se negou desde o primeiro dia de apuração a reconhecer que o adversário vencia. Essa militância trumpista iludiu ou decepcionou o próprio presidente do Brasil, um dos últimos chefes de governo a cumprimentar Joe Biden pela vitória. A aposta era para o empresário de fancaria continuar se achando ‘dono da América” e cometendo desatinos, como recomendar desinfetante, no início da pandemia, para evitar o contágio por Covid; cortar a contribuição para a Organização Mundial da Saúde, em plena pandemia.
Não fosse o Senado americano assumir a apuração daquele desatino de 6 de janeiro de 2021, e certamente o mundo veria de novo o burlesco candidato atacando adversários com golpes baixos e fazendo a claque rir com suas manobras de malabarista dissimulado.
Ainda como diz o New York Times: “Essas ameaças são reais e presentes, enquanto Trump se prepara para possivelmente buscar novamente o cargo que já profanou uma vez. O comitê está cumprindo seu dever de se defender contra essas ameaças apresentando evidências de que o ataque ao Capitólio não foi um evento isolado, que foi um ataque coordenado e que continua até hoje. Nosso dever, como cidadãos americanos, é participar plenamente desse processo, observando e absorvendo as evidências do comitê e considerando o que significaria para nossa democracia se Trump voltasse a concorrer à presidência.”
“A contenção eloquente dos líderes do comitê foi igual à gravidade da tarefa diante deles. Na liderança, Bennie Thompson, um ex-professor negro de Bolton, Mississippi, chamou de volta à história. Ele invocou as palavras de Abraham Lincoln, que escreveu, antes da eleição crítica de 1864: “Esta manhã, como nos dias anteriores, parece extremamente provável que este governo não seja reeleito. Então será meu dever cooperar com o presidente eleito”, assumindo o compromisso solene de aceitar os resultados, mesmo que uma perda possa significar o fim de nossa União.”
“Os vídeos e entrevistas arrepiantes exibidos nas duas horas da audiência fizeram muito mais do que repetir os horrores familiares. Eles foram reveladores e dramáticos, mostrando como Trump incitou seus seguidores a violar a Constituição e se recusou a controlá-los mesmo quando seus assessores mais leais imploraram para que o fizesse.”
O depoimento da deputada Liz Cheney sobre como eles encaravam o Vice-Presidente Mike Pence, naquele momento dando posse a Biden, é de envergonhar qualquer país ou político. Eles gritavam palavras de ordem como “enforque (pendure) Pence!”. Sim. Os esforços exaustivos do comitê estabeleceram revelações genuinamente chocantes: quando Donald Trump soube que os apoiadores estavam gritando “Hang Mike Pence”, ele teria observado que seu vice-presidente poderia “merecer” mesmo. É estarrecedor.
E o que vai acontecer com Trump e mais 700 pessoas que estão sendo processadas, por participação ou organização do levante? Segundo o The Guardian, “Estabelecer que Trump sabia muito bem que Joe Biden havia vencido pode, potencialmente, ajudar a construir um processo legal contra ele. Essa tarefa, por mais difícil que seja, parece simples em comparação com o desafio de mudar a mentalidade dos eleitores, já amplamente inventado. Muitos dos piores aspectos ocorreram à vista de todos. Trump mentiu repetidamente que a eleição havia sido roubada. Ele exortou seus apoiadores a “lutar como o inferno”. Ele se recusou a cancelá-los quando implorado pelos principais republicanos. Como disse um manifestante: “Atendi ao chamado do meu presidente”.
Segundo o jornal New York Times, “esses políticos sabem que algo realmente terrível aconteceu em 6 de janeiro, e enfrentá-lo é essencial para curar nossa nação dividida. Pelo menos 20 milhões de pessoas assistiram à sessão de abertura das audiências na quinta-feira; nossa democracia será fortalecida se eles forem seguidos e vivenciados por todos, da mesma forma que as audiências de Watergate no Senado sobre os crimes de um presidente anterior paralisaram a nação em 1973.”
E os americanos, como veem esse absurdo? Segundo o The Guardian, a maioria dos americanos – 70% – acredita que descobrir o que aconteceu naquele dia é importante, mas 52% dos republicanos julgam pouco ou nada importante. Em um mundo de “fatos alternativos”, a verdade pode simplesmente ser ignorada. Afinal, apesar de uma democracia consolidada, os EUA foram um dos países que teve extrema dificuldade de fazer uma gestão decente na pandemia. Isso explica o recorde de mortes por Covid, no mundo, mais de 1 milhão de pessoas. Apesar de ter vacinas suficientes, 80% da população tomou a primeira dose; 66% completaram o ciclo de duas doses. 31% da população recebeu dose de reforço. É pouco para quem tinha cacife econômico para sair na frente dos demais países e salvar vidas.
Finaliza o jornal de Nova Yorque: "A insurreição e as mentiras que levaram a ela, como disse Thompson, “colocaram em risco dois séculos e meio de democracia constitucional”. O perigo permanecerá até que os americanos enfrentem plenamente o que aconteceu naquele dia. O comitê nos deu essa chance."
O negacionismo inicial de Trump e seus seguidores pelo mundo, como aqui, fez muito mal aos americanos e aos contaminados pela Covid. Trump, pelo menos mais tarde reconheceu que a vacina seria a salvação e investiu na produção, inclusive para uso próprio. Mas o patrocínio e incentivo de um ato tão desesperado para se manter no poder vai marcar para sempre o lamentável ocaso de um ilusionista que passou pela presidência dos Estados Unidos, não honrou o cargo e a história americana de sucessões sem crise. A máscara que usou durante quatro anos, finalmente caiu.
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