O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensy conseguiu em 60 dias, após a invasão do seu país, aglutinar a admiração da opinião pública, o apoio de líderes ocidentais, dos Estados Unidos à Alemanha, incluindo aqueles de tendência tanto à esquerda quanto à direita, numa dimensão que não ocorria no mundo, desde a II Guerra Mundial. Conseguiu até mesmo balançar a neutralidade da Suécia e da Finlândia, países que resistiram aos assédios do nazismo e às investidas autoritárias do período comunista da União Soviética. De um humorista de televisão, Zelensky pode sair dessa guerra, ainda que derrotado, como um dos líderes jovens que despontam no contexto de uma catástrofe. O humorista amadurece como estadista, num cenário que seria muito difícil de administrar para qualquer governante do mundo.
Certamente, tudo isso tem ajudado seu país a resistir aos constantes bombardeios, destruição da infraestrutura e invasão de território por parte de Putin e seus generais. A Rússia pode não reconhecer, mas esse conflito passa dos 60 dias sem que as tropas russas tenham chegado a Kiev, capital da Ucrânia. Apenas isso, já significa uma vitória para Zelensky e um fracasso para Putin.
A admiração pelo folclórico presidente da Ucrânia, que ganhou a eleição em 2019, após grandes manifestações populares que derrubaram o presidente anterior, alinhado com Moscou, veio com sua atitude corajosa e incansável, a partir da invasão do país em 24 de fevereiro de 2022. Profusão de análises de especialistas, artigos de colunistas e editorialistas tentam fazer uma leitura do que foi decisivo para o sucesso de comunicação de Zelensky. Assim escreveu o colunista de opinião do New York Times, Bret Stephens, na semana passada, procurando deciifrar o fenômeno de liderança em tempos tão difíceis e nos ajudar a entender “Por que admiramos Zelensky”. Seria de forma simplista uma questão de tomar partido entre o mocinho e o bandido? Isso significa que a priori endossamos todas as ações do presidente da Ucrânia? Ele estaria totalmente certo em resistir ao ataque dos russos, ainda que com sacrifício do seu povo? Não é tão simples assim. Vejamos o artigo de Stephens.
Por que nós admiramos Zelensky? A pergunta quase se responde sozinha**
*Bret Stephens
“Nós o admiramos porque, diante de probabilidades desiguais, o presidente da Ucrânia se mantém firme. Porque ele prova a verdade do ditado de que um homem com coragem faz a maioria. Porque ele mostra que a honra e o amor à pátria são virtudes que abandonamos por nossa conta e risco. Porque ele entende o poder do exemplo pessoal e da presença física. Porque ele sabe como as palavras podem inspirar ações – dar forma e propósito a elas – para que as ações possam, por sua vez, reivindicar o significado das palavras.
"Admiramos Zelensky porque ele nos lembra como esses traços se tornaram raros entre nossos próprios políticos. Zelensky era um ator que usou sua celebridade para se tornar um estadista. A política ocidental é invadida por pessoas que agem como estadistas para que possam finalmente se tornar celebridades. Zelensky fez questão de dizer aos ucranianos a dura verdade de que a guerra provavelmente vai piorar – e de dizer aos supostos simpatizantes que suas palavras são vazias e seu apoio insuficiente. Nossos líderes se especializam principalmente em dizer às pessoas o que elas querem ouvir.
"Admiramos Zelensky por quem e o que ele enfrenta. Vladimir Putin não representa nem uma nação nem uma causa, apenas um ethos totalitário. O ditador russo defende a ideia de que a verdade existe para servir ao poder, e não o contrário, e que a política está no negócio de fabricar propaganda para aqueles que a engolirão e impor terror àqueles que não o fizerem. Em última análise, o objetivo dessa ideia não é a mera aquisição de poder ou território. É a erradicação da consciência.
"Admiramos Zelensky porque ele restaurou a ideia do mundo livre em seu devido lugar. O mundo livre não é uma expressão cultural, como no “ocidente”; ou um conceito de segurança, como na OTAN; ou uma descrição econômica, como no “mundo desenvolvido”. A participação no mundo livre pertence a qualquer país que subscreva a noção de que o poder do Estado existe antes de tudo para proteger os direitos do indivíduo. E a responsabilidade do mundo livre é ajudar e defender qualquer um de seus membros ameaçados por invasão e tirania. Assim como acontece com a Ucrânia, eventualmente, acontecerá com o resto de nós.
"Admiramos Zelensky porque ele encarna dois grandes arquétipos judaicos: Davi na face de Golias e Moisés na face do Faraó. Ele é o azarão astuto que, com habilidade e inteligência, compensa o que lhe falta em medo e força. E ele é o profeta que se revolta contra a diminuição e aprisionamento de seu povo – e determina liderá-los através de provações em direção a uma cultura política baseada na autodeterminação, liberdade e ética.
"Admiramos Zelensky porque ele luta. Lutar não deveria ser uma virtude em sociedades civilizadas que valorizam o diálogo, a diplomacia e o compromisso. Mas o mundo nem sempre é civilizado: há coisas pelas quais as pessoas e nações civilizadas devem estar preparadas para lutar se não quiserem perecer. Zelensky e o povo ucraniano lembraram ao resto do mundo livre que uma herança liberal e democrática que é tida como certa por seus cidadãos corre o risco de ser tomada à vontade por seus inimigos.
"Admiramos Zelensky porque ele desperta os melhores anjos de nossa natureza. Sua liderança fez de Joe Biden um presidente melhor, a Alemanha um país melhor, a OTAN uma aliança melhor. Ele tirou grande parte dos Estados Unidos do estupor isolacionista em que estava caindo gradualmente. Ele forçou as classes políticas e mercantis da Europa a parar de olhar para longe da descida da Rússia ao fascismo. Ele lembra às sociedades livres que ainda pode haver um centro vital na política, pelo menos quando se trata de coisas que importam.
"Admiramos Zelensky porque ele mantém um senso de proporção humana condizente com um líder democraticamente eleito. Observe o contraste entre seus encontros públicos com jornalistas, membros do gabinete, líderes estrangeiros e cidadãos comuns e as palhaçadas stalinistas da corte de Putin. Na ostentação do poder russo, vemos a pequenez do homem que o empunha: a paranoia e a insegurança de um déspota que sabe que um dia poderá ter que vender seu reino por um cavalo.
"Admiramos Zelensky porque ele modela o que um homem deve ser: impressionante sem ser imponente; confiante sem ser convencido; inteligente sem fingir ser infalível; sincero em vez de cínico; corajoso não porque é destemido, mas porque avança com a consciência limpa. Meninos americanos em particular, criados com noções absurdas do que a masculinidade implica, devem ser orientados para o exemplo dele.
"Admiramos Zelensky porque ele mantém a esperança de que nossas próprias democracias problemáticas ainda possam eleger líderes que possam nos inspirar, enobrecer e até nos salvar. Talvez possamos fazê-lo quando a hora não for tão tarde quanto agora para o povo da Ucrânia e seu líder indomável."
*Bret Stephens é colunista de opinião do New York Times, desde abril de 2017. Ele ganhou um Prêmio Pulitzer por comentários no The Wall Street Journal, em 2013, e foi anteriormente editor-chefe do The Jerusalem Po.
** Artigo original publicado no New York Times, de 19/04/2022.