Quem conhece um pouco de história, basta mencionar um ano marcante que a pessoa tenha vivenciado e, como um clique, o acontecimento vem à mente. 1918, 1929, 1945, 1989, 2001. São anos inesquecíveis na história. Gripe Espanhola; quebra da Bolsa de Nova York; fim da II Guerra Mundial; queda do Muro de Berlim; e atentado do 11 de setembro, nos EUA. Daqui a 20 ou 30 anos, quando se falar 2020, quem tiver vivido este período terá muito o que contar e lamentar. O ano que terminou em março (ou começou em março?), quando a pandemia chegou ao Brasil. Ou o ano que não irá terminar, enquanto os efeitos maléficos da pandemia persistirem. Todos que vivemos este tempo meio estranho, tão cedo não apagaremos esse estigma.
Nenhum de nós, quando pela primeira vez ouviu falar num vírus perigoso, que teria saído de um mercado de animais de Wuhan, na China, imaginou chegar ao fim de 2020 sem saber, ainda, quando o pesadelo iria acabar. Não será uma boa lembrança, certamente. As novas gerações podem até admitir que foi muito azar ter acontecido uma pandemia global, exatamente quando eram crianças e precisaram ficar confinadas, sem poder sequer frequentar a escola e conviver com os amigos.
O tempo e a vida
Os jovens dirão que perderam um ano da juventude, confinados em ambientes fechados e isolados, sem conviverem com os parentes mais velhos, com os amigos, colegas, sem viagens, passeios ou aventuras. Mas e os idosos? O que restou para eles, além de confinamentos domésticos, asilos, leitos hospitalares e UTIs? Em algumas casas de repouso para idosos, nos EUA e na Itália, mais da metade dos hóspedes acabou morrendo pela Covid. Na Bélgica, na cidade de Mol, 121 idosos e 36 funcionários de um asilo foram contaminados com Covid, após visita de um Papai Noel, no dia 4 de dezembro. 23 destes idosos morreram. Se os mais jovens perderam tempo e oportunidade, muitos idosos, como também pobres e negros, principalmente na América, perderam a vida.
Nos EUA, um quarto das mortes por coronavírus ocorreram em pessoas entre 65 e 75 anos. Metade tinha mais de 75 anos. Quase 25% eram hispânicos. Quase 20% eram negros. Não faltaram declarações e insinuações de que era preciso se conformar com a desgraça, “porque todo mundo morre, um dia”. “Eles eram velhos; eles iam morrer de qualquer maneira...”
Para milhares de famílias, ficará a eterna lembrança do parente que contraiu o vírus, precisou ser entubado e não aguentou. Que, talvez, não precisasse ter morrido tão cedo, não fosse a praga que veio da China. Simplificar a morte por Covid, com o argumento de que milhares de pessoas morrem de câncer, de infarto ou acidentes de carro, durante o ano, não ajuda no combate à pandemia. Muito menos consola, quem perdeu. É argumento falacioso e perverso. Em todo o mundo, até 31 de dezembro, 1 milhão 780 mil pessoas morreram pelo coronavírus. No Brasil, foram 193 mil até 30 de dezembro. E temos 7,5 milhões de infectados. Essas pessoas que morreram tinham pais, irmãos, filhos, netos e amigos. Não são números.
Tríplice crise
Desde o início de 2020, o surgimento da pandemia expôs o mundo a três tipos de crise: econômica, política e sanitária. Todas imbricadas, porque as medidas de isolamento, a sobrecarga nos sistemas de saúde e a forma de gestão dessa tragédia acabou confundindo governos, técnicos e até o pessoal da Saúde. Nesse cenário, tivemos líderes que cresceram, como a primeira ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, e aqueles que, ao não admitirem a gravidade da crise, fracassaram.
No Brasil, além da crise sanitária, a pandemia agravou a crise econômica, com recrudescimento do desemprego, a volta da inflação e o aumento da desigualdade. O auxílio emergencial foi um paliativo que ajudou a muitas famílias sobreviver até o fim do ano. E segurou a atividade econômica. Mas, a partir de 2021 não haverá mais esse auxílio.
“De todas as lições que aprendemos com esta pandemia, a mais significativa é o quão desiguais seus efeitos têm sido. A riqueza, ao que parece, é a melhor estratégia de proteção contra a Covid-19. Enquanto as pessoas mais pobres se amontoavam em favelas, moradias apertadas e transportes urbanos, os ricos fugiam para seus refúgios no campo.” Ou ficavam em confortáveis casas ou apartamentos, com ar refrigerado, Internet e delivery, com o salário garantido. Não precisavam sair de casa para garantir o pão na mesa, no dia seguinte. “Se você quiser fazer um experimento na Terra para entender o comportamento humano, a pandemia seria a oportunidade perfeita, diz Devi Sridar, presidente de saúde pública global da Universidade de Edimburgo, Escócia. (1)
A consequência dessa desigualdade ficará escancarada agora, quando as vacinas começam a ser distribuídas. Os países mais pobres serão os últimos, certamente, porque não tinham recursos para antecipar as compras. E, certamente, não haverá vacina para todos em 2021. O Brasil, por incompetência do governo federal, que administrou essa crise na contramão da maioria de outros países, acabou perdendo essa corrida por vacinas. Quando acordou, pelo menos 40 países já tinham saído na frente.
Para o escritor americano Andrew Solomon, autor de “O Demônio do Meio-Dia” (2), especialista em depressão, “Alguns sairão mais fortes e outros mais machucados – mas ninguém sairá ileso”, dessa pandemia. “Para alguns, o lado positivo vai superar o negativo. Mas o dano ainda estará lá. O dano está afetando absolutamente todos.”
O governo e a crise
Mas os brasileiros terão razões de sobra pra lembrar ainda mais de 2020, pela atuação desastrada e negativista do governo, sob a ótica do presidente da República, alguns ministros e seguidores, minimizando sempre os efeitos da tragédia; boicotando o trabalho dos cientistas e médicos, ao compará-la, irresponsavelmente, a uma “gripezinha; ao fazer aglomerações desnecessárias; e se negar a usar máscaras.
Não sabemos o que foi pior, se a falta de gestão do governo, que nos primeiros meses da doença demitiu dois ministros da Saúde, por querer impor-lhes a indicação de medicamentos de eficácia não comprovada e até condenada, ou a falta de sensibilidade, “compassion” ou empatia do presidente para com os milhares de brasileiros contaminados pela doença ou que vieram a morrer, em consequência dela. Como disse um líder comunitário, o que tem minimizado o impacto da pandemia no Brasil são as pessoas da sociedade, as organizações sociais e humanitárias, não os governos. “Foi a mobilização das pessoas que evitou o pior”, constata.
Nem só vilões, mas heróis
Mas toda a tragédia tem o condão de também produzir heróis. E a pandemia tem milhares. Os profissionais de saúde no mundo todo são lembrados como os “salvadores da Pátria”, porque, além de arriscarem a própria vida, ao contrair o vírus, se dedicam a atender aos doentes dia e noite, nos lugares mais inóspitos do planeta e em condições, muitas vezes, precárias. Na Itália, desde março, 260 médicos morreram na linha de frente, ao contrair Covid-19, o maior número de profissionais de qualquer país da Europa e certamente o maior golpe na área da saúde, desde a II Guerra.
No Brasil, estimativa do Observatório de Recursos Humanos da Escola Nacional de Saúde Pública, vinculada à Fiocruz, aponta uma marca triste: mil profissionais de saúde mortos pela Covid-19, até outubro. As equipes de enfermagem - entre enfermeiros, técnicos e auxiliares - são as principais vítimas, com mais de 400 óbitos. Já entre médicos, as mortes chegam a quase 200. No Reino Unido, considera-se 2020 o pior ano da história para os profissionais de saúde. E estamos falando de um país que passou por duas guerras mundiais.
Descobrimos da pior maneira que, “embora as instituições tenham evoluído, a ciência médica tenha melhorado e a Internet tenha mudado fundamentalmente a maneira como nos comunicamos, nossas respostas centrais às restrições agudas, às crises que tocam no lado humano da civilização, permanecem inconfundivelmente familiares”, diz o professor de economia Utteeyo Dasgupta, do Wagner College, de Nova York. (3)
Ao descartar o calendário de 2020, será que estaremos encerrando um pesadelo? Fechando um ciclo? Para selar o ano de 2020, vale lembrar o que o colunista Neil Steinberg do jornal Chicago Sun Times, disse ao concluir artigo publicado em 28 dez 2020: “Mantenha os cintos de segurança bem apertados.” Apesar de tudo, “Dito isto, ainda devemos comemorar. Diga adeus a 2020 (todos juntos agora, “Um ano como nenhum OUTRO!”). Sele-o em um caixão forrado de chumbo e enterre-o, bem fundo, em um local solitário. Pelo menos nós sabemos, ao contrário dos filmes de terror padrão, que ele não vai explodir do chão.”
Devemos sair de 2020 não com medo do futuro, mas com orgulho por termos enfrentado a pior pandemia em 100 anos. E sobrevivido ao longo do ano passado. E estarmos prontos, resilientes e esperançosos que 2021 seja um pouco melhor do que este.
(1) “Covid-19 has shown us that good health is not just down to biology”, publicado no jornal The Guardian, de 25 dez 2020.
(2) Entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, 19 dez 2020.
(3) History tells how people act in pandemics – selfishly, but also with surprising altruism, publicado no jornal The Guardian, de 20 dez 2020
Outros artigos sobre o tema
Como frear o coronavírus nas festas do fim do ano
Com vacina, britânicos perguntam: quando a vida será normal?
Coronavírus: falta de liderança agrava a crise no Brasil
Goodbye 2020: A year like... well, you know
History tells how people act in pandemics – selfishly, but also with surprising altruism
Covid-19 has shown us that good health is not just down to biology
Baby Boomers: a geração que não merecia o coronavírus
A pandemia nos leva a encarar como enfrentar a última crise da vida
Veja o que Bolsonaro fez para minar medidas de combate ao coronavírus