O Brasil e, por extensão, governo, autoridades, políticos, não param de nos surpreender. A cada semana, tem-se a esperança de que pior que está, não poderá ficar. Mas a chamada “elite” que comanda o país e tem a chave do cofre e da sala da diretoria consegue piorar aquilo que já está ruim. Seja por atos ou declarações, os quais, em lugar de tranquilizar o país, deixam todos à beira de um ataque de nervos.
O Palácio do Planalto, na pessoa do presidente, alguns ministros e seus áulicos, não consegue passar uma semana sem provocações a respeito da maior crise sanitária da história do país. Esse diversionismo afronta médicos, enfermeiros, infectologistas e quantos trabalham na saúde, arriscando a própria vida. Mas também toda a população que se isola, usa máscaras e se cuida, limitando o trabalho, as visitas, ida a restaurantes, shoppings, com os filhos sem escolas, tudo para não disseminar o vírus.
E o qual o disparate que emana de Brasília? Quando todo o mundo da ciência e até os governantes, nos 215 países onde o coronavírus deu o ar de sua desgraça, recomendam o uso permanente de máscaras, pra prevenir a disseminação do vírus, no Brasil ecoa essa mensagem: “Tem algum médico aí? A eficácia dessa máscara é quase nula".
A sabedoria popular diz que “O nível mais alto da ignorância é quando rechaças algo sobre o qual tu nadas sabes”, numa máxima do escritor americano Wayne Dyer. Cai como uma luva para autoridades e governantes que todos os dias dão palpites sobre a saúde sem serem médicos, apenas por interesse político e eleitoreiro, de que é exemplo emblemático o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Governadores inimigos
No momento em que governadores e prefeitos sofrem uma pressão compreensível de empresários e da população para “abrir tudo”, em vez de o governo federal apoiar os governadores, que objetivam conter a disseminação da Covid (ou alguém acredita que os governadores estão satisfeitos e felizes com o comércio, a indústria e os serviços parados? É óbvio que não), o presidente da República solta evasivas e opiniões irônicas, fazendo carga sobre eles pela abertura total. Como se isso não fosse o objetivo e o desejo de todos.
Ninguém quer a economia parada. Se não abriram, é porque ouviram a ciência e não querem colocar a vida das pessoas em risco. Num momento em que todo o país deveria estar unido, como acontece na Alemanha, França, Itália, Coreia do Sul, Japão, apenas para citar alguns, aqui no Brasil acirra-se o divisionismo, como se a crise da pandemia fosse um Fla-Flu com duas torcidas. Não devemos nos surpreender se em alguns palácios de Brasília haja muita gente torcendo para que em alguns estados, governados pelos chamados “opositores”, a pandemia continue piorando e matando mais gente, apenas para que suas teses negacionistas se comprovem.
Chegamos a esse ponto que parece uma aberração. Mas no Brasil de 2020, quem não estivesse acompanhando, desde o início do ano, as batalhas retóricas e inconsequentes do governo federal, de governadores, da mídia e de formadores de opinião, iria levar um susto com o surrealismo dos argumentos dos especialistas em saúde rebatidos pelo presidente e seguidores. Sempre na linha do confronto. Nunca para contribuir para a saúde da população.
Os guardiões de Crivella
O país parece que anda na contramão. Na mesma semana, descobre-se que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, libera leões de chácara para impedir que jornalistas façam a cobertura do péssimo atendimento da saúde do Rio de Janeiro (que não é de hoje), além de assediarem até fisicamente os pacientes entrevistados, na frente dos hospitais. Denunciado o absurdo, com o uso do dinheiro público, para constranger a imprensa e os pacientes mal atendidos, a Polícia Civil e o MP entraram na história para apurar o que, convenhamos, se caracteriza num crime. Só autorizado por alguém que perdeu a dimensão do dever de prestar contas à sociedade.
Ao dar sinal verde para esses “aspones” constrangerem jornalistas e pacientes, o prefeito viola a Constituição (que garante a liberdade de imprensa) e tripudia sobre os doentes mal atendidos. A desculpa do prefeito, nessa escala de ilegalidades, é que estaria ajudando a esclarecer os pacientes na porta dos hospitais. Bulshitt! Os argumentos da Prefeitura do Rio para se defender significam um atentado ao bom senso. Precisou a mídia denunciá-los, porque no governo local ou estadual, e nos próprios hospitais, não apareceu ninguém para revelar o abuso. Como se fosse um silêncio consentido. Nessa marcha da insensatez, só falta a milícia, que já domina grande parte das favelas do Rio, assumir o controle dos hospitais.
Rodrigo e Guedes brigados
Há coisas que só acontecem no Brasil. O presidente da Câmara dos Deputados, terceira pessoa na linha da sucessão presidencial, confessou que não fala com o ministro da Fazenda. Cortaram as relações? No surrealismo em que vive o Brasil, só pode acontecer isso justo na semana em que o governo entrega ao Legislativo um projeto meio capenga de reforma administrativa. Não esquecer que o governo tem muitos outros projetos sob exame naquela Casa e é difícil aceitar que a autoridade máxima da Fazenda não converse ou não se entenda com o presidente da Câmara. Amuos à parte, quem perde é a sociedade, porque nessa querela política o maior perdedor será o contribuinte brasileiro, que engole sapos vindos dos poderes da República todos os dias.
Os fantasmas de Flávio
Para culminar a semana, a Justiça do Rio de Janeiro, atropelando a Constituição e o direito dos cidadãos de serem informados, proíbe a TV Globo de exibir documentos de investigações sobre a tal da “rachadinha” de Flávio Bolsonaro. A pedido do senador, claro. O medo de os bastidores da chamada “rachadinha” expor um esquema ilegal é tão grande, que foi preciso um Juiz carioca atropelar a Constituição, cerceando o direito à informação, numa indigitada volta aos anos 1960 e 1970, quando o Brasil viveu uma lamentável época de censura à imprensa.
Por que o Senador, para acabar com essa novela, que toma desafia a paciência do brasileiro, não esclarece tudo sobre as suspeitas de “rachadinha”, no seu gabinete, no Rio de Janeiro? E, com isso, faria com a mídia esquecesse o problema. A vacina contra o noticiário negativo é a transparência total. Algo que não parece ser um comportamento nesse processo. Quando se tenta barrar o direito à informação, é porque não se quer que a verdade venha à tona, não importam as circunstâncias. Desde o ano passado, a investigação do MP do Rio de Janeiro cutuca fantasmas que podem sair do armário em direção ao político carioca.
A Saúde tentando saquear os cofres da Saúde
A pandemia da corrupção contaminou também a Secretaria de Saúde do DF. Em 25 de agosto, o secretário de Saúde do DF foi preso em operação sobre irregularidades na compra de testes para Covid-19. Foram expedidos 44 mandados de busca e apreensão e sete de prisão. Entre detidos, estavam integrantes da cúpula da pasta; o subsecretário da Saúde, também procurado, é considerado foragido. Dessa operação, vislumbra-se uma quadrilha “cuidando” da Saúde do brasiliense, na maior crise sanitária da história do DF.
O que passa na cabeça dessas pessoas acusadas de desviar cerca de R$ 18 milhões de uma área que deveria ser intocável? Eles sabem que não há recursos suficientes para assistência a todos os pacientes. Muitos deles morreram em casa ou na porta dos hospitais por falta de leitos de UTI. O que falta para esse crime ser considerado hediondo, como ocorre em outros países, principalmente numa época de emergência na saúde? Ou não é revoltante uma autoridade pública, mancomunada com empresários, agir como uma quadrilha, que desvia verbas destinadas à salvação das pessoas?
Naturalmente, esses fatos se repetem, porque persiste no país a cultura da impunidade. O governador do DF ficou num silêncio ensurdecedor, após as denúncias, sendo que a responsabilidade pela nomeação do secretário é exclusiva do governador. Por que o secretário ainda não foi demitido, mesmo estando preso? O que o sistema de auditoria e de compliance do GDF tem a dizer sobre as suspeitas de desvios dessa quadrilha?
Se a pandemia está deixando a população à beira de um ataque de nervos, não relevando sequer as crianças, também estressadas, junto com pais e avós, por ficarem em casa e terem medo do vírus, as ações e atitudes dos governantes completam o quadro de anomia em que vive o país nesse início do segundo semestre. Há uma tensão permanente, alimentada pelas chamadas “autoridades” que protagonizam o combate ao vírus. No século passado e início deste, vivemos momentos conturbados de tensão política, social e econômica: guerras, golpes militares, suicídio de presidente, impeachment, abertura política, eleições, planos econômicos, tensões sociais e crises cambiais. Mas, jamais imaginamos que iríamos chegar tão longe num estado de crise – sanitária, econômica e política – como atualmente estamos vivenciando. O Brasil precisa reduzir as tensões. E propiciar um pouco de paz aos seus habitantes.