O ano de 2019 se despediu sob o estigma das “fake news”. Comandado pelo presidente da maior potência econômica do mundo, o termo “fake news” foi vulgarizado, sob o argumento de que tudo que não for “bom para mim” ou para “meu governo”, trata-se de "fake news". Com isso, confundindo a cabeça dos leitores, até a mídia começou a entrar em parafuso. E chegamos a 2020, um ano de eleição no Brasil, desconfiados de que isso vai piorar. Vai ficar difícil distinguir o que é verdade e o que é notícia falsa? Dependerá muito de quem produz a notícia e de quem a dissemina.
O tema foi objeto de um instigante artigo no jornal The Times, de Londres, assinado pelo colunista Daniel Finkelstein. A linha do autor é que terminamos a década ameaçados por mentiras travestidas de notícias. Mas que nem tudo está perdido.
“Ignore os pessimistas que dizem que estamos presos em uma névoa de mentiras e distorções - nossa sede por fatos nunca foi tão forte. Esta foi a década da pós-verdade. A década de teorias de conspiração nas redes sociais, de Donald Trump e do ônibus do Brexit (1), dos envenenamentos da família Skripal (2) e dos russos na eleição de Hillary Clinton; de anúncios publicitários no Facebook e das “fake news”.”
“De qualquer forma, esse é o consenso. Quem sabe mais o que é e quem se importa? Mas não é um consenso do qual eu faça parte. Não é que eu não possa ver os perigos. Eu escrevi sobre notícias falsas e como é fácil passar. Só que estou fundamentalmente mais otimista. Acho que essa foi a década da verdade e acho que a próxima década continuará esse trabalho.”
Finkelstein está otimista com a nova década e recorda que aprendemos muito nos últimos anos. “Eu acho que estamos vendo isso de maneira totalmente errada. Essa foi a década em que começamos a acordar com as mentiras, a entender como elas são difundidas, a começar a desafiá-las e a ensinar uns aos outros como identificar a falsidade. Uma década em que começamos a reconhecer coisas para as quais fechamos os olhos, uma década em que começamos a perceber e parar de fingir.”
No início do século XIX, antes de o primeiros editores o estabelecerem como o jornal de registro, o The Times, de Londres (fundado em 1785) se financiou, em parte, ameaçando publicar fofocas sem controle, a menos que o interessado concordasse em pagar uma taxa de supressão, o que significa que, pagando, a fofoca não seria publicada. Não muito diferente do que hoje, dois séculos depois, acontece com certos blogs de jornalistas ou pseudojornalistas inescrupulosos, que literalmente “vendem” notinhas positivas para políticos e empresários ou trocam dinheiro pela retirada de eventuais “fofocas” negativas, plantadas por adversários. O The Times londrino construiu sua reputação a partir de 1817, abandonando essas práticas e aderindo à verdade, enquanto outras publicações continuaram sendo menos exigentes.
Segundo o autor, “Isso, é claro, supunha que o jornal pudesse estabelecer qual era a verdade. O maior inimigo da precisão era a ignorância, e não a facada. Havia uma verdade que podia ser estabelecida, mas que permanecia fora do alcance (poderia levar semanas para que um despacho chegasse do exterior e os correios talvez precisassem ser subornados para entregá-lo) e havia uma verdade que permanecia desconhecida porque o conhecimento científico requeria revelá-lo que não existia.”
“E havia o fato de que muitas pessoas não podiam avaliar a verdade porque não sabiam ler ou que não tinham acesso aos livros ou tempo para aprender com eles.”
O que o autor tenta demonstrar é que, portanto, as "fake news" sempre existiram, facilitadas pela obsessão pelo “furo” e a incapacidade crítica da maioria dos leitores. “Não foi apenas a ignorância que desviou as pessoas da verdade. Também era convenção social. É surpreendente agora ler sobre a vida de Jimmy Savile (3), por exemplo, e apreciar o quão aberto ele era sobre seu comportamento sexual predatório e os abusos de meninas menores de idade. No entanto, sua fama e poder o protegiam das consequências. As portas dos hospitais e palácios foram abertas para ele, enquanto a polícia o investigava." Finkelstein se refere ao comediante que durante anos era recebido nos altos escalões londrinos e, descobre-se anos depois, era um contumaz abusador de crianças e mulheres.
“Da mesma forma, um olho cego se voltou para o assédio sexual no local de trabalho, como ficou demonstrado a partir de 2017, pelo movimento Me Too, mesmo que tenha sido a experiência (traumatizante) de milhões de mulheres.”
A década da mudança
“Esta foi a década em que começamos a abrir os olhos para a verdade. Somos menos ignorantes, menos respeitosos, mais céticos. Apreciamos melhor como é fácil dizer algo falso na política e fugir impune, uma apreciação que é em si uma parte da verdade que surgiu da ciência política. Somos menos capazes e menos dispostos a varrer a verdade desconfortável para debaixo do tapete. Desafiamos mais”, diz o autor.
“Sim, Donald Trump é notavelmente descuidado com os fatos. Mas ele dificilmente é o primeiro presidente de quem isso pode ser dito. Ler as transcrições das fitas Watergate do presidente Nixon deve nos deixar de boca aberta na escala e extensão da mentira. A mesma atitude ocorre na conduta de Lyndon Johnson, na Guerra do Vietnã. Ou as façanhas de Bob Kennedy", completa o autor.
“Algumas pessoas se convencem de que as mentiras de Trump não importam ou que suas mentiras são realmente a verdade. Mas não é verdade dizer que suas mentiras não têm consequências para ele. Seus índices de aprovação pessoal estão muito aquém dos créditos que os eleitores lhe dão por administrar a economia, o que o faz se destacar entre seus antecessores. Também vale ressaltar que, quando Trump nega a mudança climática e milhões concordam, houve décadas em que a verdade sobre a mudança climática foi ignorada por todos, porque simplesmente não sabíamos disso.”
“O ônibus famoso no referendo do Brexit (que circulava com informação falsa, como se descobriu depois) pode ter usado números duvidosos, mas isso é verdade para todas as eleições em que eu lutei. Dados dúbios sobre possíveis aumentos de impostos trabalhistas, números dúbios sobre cortes de gastos dos conservadores. O que mudou é que esses números e reivindicações políticas estão sendo contestados, verificados e refutados com mais vigor do que nunca.”
Diríamos que hoje está mais difícil mentir. E o exemplo pode ser tirado do novo governo brasileiro, no ano que passou. Quanta informação foi tentada ser passada como verdade e imediatamente contestada por formadores de opinião ou mesmo pelo público, fazendo o governo recuar? Pode-se até admitir que está muito fácil emplacar “fake news” com números ou informações que poucos irão checar. Mas também está muito fácil conferir e verificar se o que foi publicado é verdadeiro. Espalha “fake news” quem quer.
“É claro que existem mentiras e mentirosos, preconceitos e distorções, escândalos que não podemos ver, comportamento pessoal inaceitável que ainda temos que desafiar, partes do nosso passado que ainda não enfrentamos. Mas foi nessa década que começamos a ver como a verdade central é para uma sociedade civil em funcionamento e uma democracia liberal ativa. Foi a década em que, com hesitação e com toda a falibilidade que temos, renovamos a luta em direção à luz.
Aqui está uma nova década da verdade.”
Notas
(1) Onibus do Brexit. Esse ônibus ficou famoso, por ter circulado ostensivamente durante a campanha pelo Brexit com a informação de que o Reino Unido enviava por semana para a União Europeia 350 milhões de libras (R$ 1.820 milhões), como transferência de renda, sendo que o sistema de saúde britânico era deficitário. A informação, como se comprovou depois e foi desmentida, era falsa. Mas, o estrago já havia sido feito.
(2) O caso do envenenamento do ex-agente russo Sergei Skripal e de sua filha Yulia é uma tentativa de assassinato, através de um ataque químico, ocorrida às 16:15, em 4/02/2018, em Salisbury, Inglaterra, Reino Unido. A suspeita sempre foi de que os russos tentaram assassiná-los.
(3) O escândalo do comediante Jymmy Saville, um famoso comediante que se apresentava na TV e em teatros, na Grã-Bretanha, apareceu em 2012, quase um ano após seu falecimento, quando centenas de vítimas de abusos sexuais começaram a denunciá-lo, apesar do prestígio que desfrutava na mídia (era contratado da BBC) e outras instituições. Crianças e mulheres vulneráveis e doentes foram abusados. Os britânicos se perguntaram como foi possível durante anos o comediante abusar de crianças e mulheres, inclusive na BBC, aproveitando sua popularidade, e ninguém ter descoberto ou denunciado?
Tradução e notas: João José Forni.
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