Quando Bento XVI renunciou, em 2013, numa decisão que surpreendeu o mundo, já que não havia renúncia espontânea de um Papa há mais de 700 anos, especulou-se que uma das causas era a pressão da cúria romana, a burocracia do Vaticano e a incapacidade do frágil Pontífice de enfrentar as denúncias de abusos sexuais que apareciam em vários países. Não esquecer que a Igreja Católica vem enfrentando essa crise há pelo menos 16 anos, quando se agravaram as denúncias de abuso nos Estados Unidos. A renúncia pode ter sido causada por muitos outros fatores, entre eles a inaptidão de Bento XVI, um intelectual e teólogo de renome, pela gestão da Igreja e seus inúmeros problemas.
Francisco assume com outra visão, emblemática até no nome do humilde São Francisco. Sob esse cenário de incerteza e pressão dos conservadores, que querem manter o poder e as tradições; e, do outro lado, daqueles que querem mudar, enfrentar os problemas sob a ótica do século XXI, seja o dos abusos, quanto os dos homossexuais, dos divorciados, das mulheres na Igreja, do celibato dos padres, enfim, um Papa eleito num vendaval de crises.
Em artigo publicado em 26 de julho último, no jornal britânico The Guardian, a historiadora Catherine Pepinster* analisa como o Papa Francisco também está sofrendo pressão, admitindo que os esforços do pontífice para lidar com a crise estagnaram, após tantas denúncias. Ela admite que o Papa deve agir decisivamente ou muitos mais católicos perderão sua fé.
A autora do artigo lembra que, ao rodar pelas redes sociais, descobriu uma foto recente do Papa Francisco caminhando sozinho, sem pessoas da segurança ou secretário particular, do outro lado do pátio do Vaticano. "Nos primeiros dias de seu pontificado, essa imagem teria sido vista como Francisco rompendo as convenções tradicionais do Vaticano: o Papa sendo ele mesmo. Cinco anos depois, a imagem pode ser vista como símbolo da solidão de Francisco. Aqui está um homem lutando para encontrar aliados ou apoio dos fiéis católicos em seus esforços para reformar a igreja e não fracassar nas tentativas de enfrentar a crise dos abusos.”
Embora controversa, a versão de que Bento XVI não soube enfrentar essa crise, nem mesmo quando era Cardeal na Alemanha, onde houve vários padres acusados de abusos, não importa, agora, quando o fato é que Francisco herdou essa mancha na história da Igreja. E não basta dizer que foram algumas frutas podres que contaminaram a cesta. A quantidade de denúncias que começaram a pipocar, há cerca de 20 anos, se multiplicou. Só nos Estados Unidos, há escândalos de abusos em várias cidades, tendo começado nas dioceses de Boston, como bem retratou o filme Spotlight – Segredos Revelados, de 2016, e surgido também na Pensilvânia, em Pittsburgh e Baltimore, outras cidades onde milhares de alunos e alunas foram abusados sexualmente ou pelo menos assediados por centenas de padres, freiras e outros religiosos, como se comprovam as acusações, que anos depois vieram à tona.
No caso da Pensilvânia, um dos últimos escândalos revelados nos EUA, segundo o procurador-geral da cidade, Josh Shapiro, a investigação, que durou 18 meses, revelou um "acobertamento sistemático" dos abusos por parte de funcionários eclesiásticos na Pensilvânia e no Vaticano. "Os padres estavam violentando meninos e meninas, e os 'homens de Deus' que eram responsáveis por eles não fizeram nada além de acobertar tudo, durante décadas", destaca o relatório. Shapiro lamentou que a maioria dos casos é antiga demais para se apresentar acusações. Mas, "para muitas vítimas, o relatório fez justiça" ao revelar os culpados, declarou Shapiro aos jornalistas.
Para Catherine, essa crise agora ameaça engolir o papado de Francisco e causar danos permanentes à reputação do Papa e à Igreja. “O escândalo deixou de ser, como a igreja certa vez alegou, sobre algumas maçãs podres, para um desastre global, revelando não só encobrir o comportamento dos padres, mas acusações contra arcebispos e cardeais, os príncipes da igreja. Tão ruim é a situação que se aproxima cada vez mais do próprio papa, com dois dos membros de seu grupo de Cardeais conselheiros, agora contaminados por escândalos de abuso.”
Efeitos da crise
Nos últimos dias, a Igreja Católica também foi abalada por acusações contra um dos mais respeitados cardeais dos últimos tempos, o arcebispo aposentado de Washington, Theodore McCarrick. Esse Cardeal, de, 88 anos, foi “convidado” a se afastar das funções, eufemismo para explicar um tipo de “suspensão”, pelo fato de ele ter se omitido em relação a padres e até bispos que praticaram ou não tomaram providências pelos abusos.
Esse Cardeal é pivô de outra crise para Francisco. Enquanto o Papa estava na Irlanda, o arcebispo italiano Carlos Viganó, ex-diplomata do Vaticano nos EUA, acusou o Papa, num relatório de 11 páginas, vazado para a imprensa, de ter acobertado denúncias contra McCarrick. Viganó afirmou que o Papa o destituiu e, anos depois, o reabilitou, nomeando-o seu conselheiro. Como agora apareceram denúncias mais graves nos EUA, o Cardeal teria sido suspenso. O Papa não quis responder às acusações. Não esquecer que Viganó pertence à ala conservadora da Igreja, que tem feito "oposição" aos avanços preconizados por Francisco.
Os escândalos agora têm incomodado o Vaticano, porque, além de frequentes, cada revelação escancara uma realidade que talvez seja o maior erro da Igreja nessa crise: a falta de providências, as tentativas de acobertamento, mediante a transferência ou sumiço dos acusados. Não há registro, tanto no passado, quanto nas últimas denúncias, que a Igreja Católica tenha procurado autoridades, a polícia e denunciado os abusadores. Na ausência de uma ação mais rigorosa das vítimas, muitas que omitiram os abusos, por vergonha, medo, ou até mesmo por não perceber que os atos significassem um abuso, o que houve foi um pacto de silêncio, sem dúvida, extremamente pernicioso para a reputação da Igreja. Há casos estarrecedores, como o revelado na série The Keepers, da Netflix, contando como o assassinato da freira Cathy Cesnik, na década de 1970, está ligado a graves denúncias de abuso contra meninas, num tradicional colégio de Baltimore.
A freira, professora da tradicional escola Seton Keough High School (fechada em 2017), de Baltimore, teria descoberto que o padre Joseph Meskell tinha um esquema perverso e sistemático de abuso das alunas da escola, quando as levava para sua sala, com o apoio de outras pessoas e até de policiais da cidade, mediante chantagem e ameaças para que não o denunciassem. Ele escolhia as vítimas entre as mais vulneráveis psicologicamente. O caso só veio à tona há poucos anos, quando duas alunas na faixa dos 50/60 anos resolveram contar o que aconteceu, inclusive detalhes do assassinato da irmã Cathy Cesnik. O enredo da série, baseada toda em depoimentos e no processo policial dos abusos, é estarrecedor.
Admitir que os crimes aconteceram, pedir desculpas, indenizar financeiramente as vítimas (somente a Igreja nos EUA gastou até agora 3 bilhões de dólares em acordos judiciais), nada disso vai apagar essa mancha e amenizar o sofrimento de quem foi abusado, homens e mulheres, quando crianças, e suas famílias. Vítimas, leigos católicos, com também os milhares de padres e clérigos inocentes, vistos como possíveis criminosos por um público desconfiado e, pior, decepcionado, precisam de ação a ser tomada para, por fim, identificar e processar os abusadores, descobrir as causas e implementar reformas, que, apesar das promessas, não aconteceram.
A investigação da Pensilvânia, que relata os abusos sexuais a mais de mil menores de idade por mais de 300 religiosos durante sete décadas, revelada recentemente, demonstra que pelo menos desde 1963 o Vaticano conhecia alguns desses casos e se mostrou tolerante, mas é impossível saber se tinha conhecimento de todos os detalhes. Após dois dias de silêncio, quando a notícia foi divulgada, a Santa Sé mostrou “sua vergonha” pelos abusos “criminosos” nos Estados Unidos e afirmou que “responsabilidades deveriam ser assumidas”.
Catherine afirma, no artigo, que “este não é, evidentemente, um problema contemporâneo, que apareceu agora na gestão de Francisco. A grande maioria dos casos que vem à tona é histórica. O papa herdou não apenas um atraso, mas uma igreja que durante décadas relutou em atuar - e muitas vezes pertencia a uma hierarquia interessada em esconder escândalos, como a série The Keepers, do Netflix, e o filme Spotlight deixam bem claro”.
Segundo Catherine, “a eleição de Francisco em 2013 gerou esperanças de uma mudança muito necessária na cultura. Ele logo criou uma comissão consultiva sobre proteção de menores, nomeando leigos como a psiquiatra britânica Lady Sheila Hollins e também representante das vítimas. Mas a comissão afundou e as vítimas desistiram, frustradas com a falta de progresso nas investigações. Na série The Keepers, como no filme Spotlight, ficam bem claras as dificuldades das vítimas para serem ouvidas e até mesmo para se acreditar no que diziam; falta de colaboração da Igreja e descrédito por parte do Judiciário e do Ministério Público americano conduziram o processo de forma lenta, burocrática, sem empenho em levar as denúncias para frente, devido à força e tradição da Igreja em Baltimore. Demoraram tanto a formalizar as denúncias que o principal acusado, Padre Joseph Meskell, morreu antes de ser processado. Ele foi transferido para vários lugares, quando os acusadores descobriam seu paradeiro.
“O papa tem enfrentado uma burocracia intransigente da igreja, que não quer ver essa chaga exposta. As autoridades do Vaticano mostraram-se pouco dispostas a cooperar com a comissão; nem foram fornecidos recursos suficientes. Mas acima de tudo, tem havido resistência cultural dentro da igreja sobre o abuso. A casta clerical é moldada pela obediência e pelo profundo temor de contaminar a reputação da igreja. A relação do bispo e do padre é paterna; se o padre erra, o bispo pode se concentrar no perdão dos malfeitores, em vez de punir um abusador, enquanto seu maior foco é evitar a publicidade”, diz Catherine no artigo publicado no The Guardian.
“Mas a igreja agora está colhendo o que semeou: como úlceras feridas, os escândalos reprimidos estão surgindo em toda parte. Os maiores envolvem acusações sobre membros da hierarquia como abusadores. Alguns permaneceram escondidos até agora porque os padres temerosos têm relutado em “rifar” seus bispos, mesmo quando eles próprios foram abusados como jovens coroinhas e seminaristas”, diz Catherine. Ou seja, as vítimas perderam o medo. E o mito de acusar a Igreja Católica acabou.
Muitos críticos também afirmam que o celibato seria uma das causas dos abusos na Igreja Católica. Mas por que acontecem abusos em outras instituições, religiosas ou não, onde o celibato não é uma exigência. A BBC britânica esteve envolvida num desses casos, em 2012, quando um dos comediantes, Jimmy Saville, que por anos trabalhou na rede, foi acusado por centenas de pessoas, de abuso sexual, inclusive de crianças doentes. Ele era um famoso e excêntrico comediante da BBC e o escândalo só veio à tona quase um ano após sua morte.
No Brasil, da mesma forma, recentemente o ex-técnico da seleção de ginástica artística do Brasil, Fernando de Carvalho Lopes, foi acusado por vários atletas, tanto meninas quanto meninos, de abusos durante anos. Ele foi afastado e responde a processos. O celibato não seria, portanto, um fator decisivo para explicar a crise dos abusos na Igreja Católica. Houve uma cultura de permissividade que fechou os olhos para esses abusos, quase sempre com a complacência dos superiores religiosos e, pior, de civis e da polícia, em alguns casos. O celibato não seria, portanto, um álibi para o que aconteceu em Baltimore, por exemplo.
O que precisa ser feito
Para Catherine, “se o Papa Francisco quer enfrentar esse escândalo, ele deve agir rápido. Um tribunal precisa ser estabelecido em Roma para lidar apenas com casos de abuso, dirigidos por investigadores especializados, e os testemunhos precisam ser ouvidos. Isso é algo que a comissão aconselhou em 2015, mas até hoje ainda não se concretizou”.
Para concluir, a autora diz que “Francisco também precisa elaborar um documento - chamado de constituição apostólica - sobre os abusos. Esse documento irá delinear o problema, examinar as causas e indicar claramente como a Igreja em quatro partes do mundo lidará com o problema. Deve haver alguma margem de manobra; a igreja opera em todo o mundo, inclusive em estados totalitários, onde um julgamento criminal justo é improvável para o acusado. Mas algumas normas relativas a indagações e tratamento de vítimas devem certamente ser possíveis, assim como uma orientação clara sobre a avaliação de aspirantes ao sacerdócio. E a porta de saída para os bispos precisa mudar: a lei canônica da igreja diz que eles só podem se aposentar quando chegarem a 75 anos ou por motivos de problemas de saúde. Se eles são culpados de irregularidades, não precisamos de um eufemismo para eles ficarem impunes na enfermaria”, conclui a articulista.
O Papa na Irlanda
Na semana passada o Papa Francisco visitou a Irlanda, onde não pôde fugir do espinhoso tema. Ele chegou ao país sob intensas críticas dos católicos sobre a cultura dos abusos (e da impunidade) de alunos naquele país. Em 2009, foram revelados abusos em varias instituições católicas, sem distinção de sexo, inclusive com violência física e assassinatos, que causaram uma comoção no país. Segundo as denúncias, foram 40 anos em que esses abusos foram esquecidos ou abafados. Na época, o governo irlandês pediu desculpas por seu “fracasso” em proteger as crianças e afirmou que “isso não voltará nunca a acontecer”.
O Papa Francisco, por sua vez, na recente visita à Irlanda, afirmou que autoridades eclesiásticas irlandesas "fracassaram” em enfrentar "crimes repugnantes”, e pediu desculpas ao povo irlandês. Das crises recentes sobre esse tema na Igreja, a Irlanda foi onde os mais católicos reagiram negativamente. Em maio, ele escreveu uma carta para o povo do Chile, onde pipocou outra crise, condenando uma cultura de abuso e encobrimento naquele país, onde também aconteceram abusos de alunos. Lá, 34 bispos foram constrangidos a renunciar, em várias dioceses onde fatos graves aconteceram e não foram apurados. Essa posição de Francisco, pelo menos reconhecendo os erros, pode até ajudar seu pontificado, mas não absolve a Igreja dos pecados cometidos em vários países, como Holanda, Portugal, Austrália, Reino Unido, Canadá, Alemanha, Bélgica, Argentina, como também no Brasil, por membros da Igreja que se serviram da posição de líder religioso para abusar de crianças, estudantes e freiras, como recentemente foi revelado.
Uma investigação da Associated Press francesa descobriu que casos de abusos contra freiras surgiram na Europa, na África, na América do Sul e na Ásia, o que mostra que o problema é global e extenso, em grande parte devido a uma tradição em que as mulheres são vistas como pessoas de segunda categoria e à subordinação perante os homens que as chefiam. Este era um dos "pecados" da Igreja que permanecia oculto, apesar de sua gravidade.
Ao finalizar o artigo, Catherine diz que “agora ele (o Papa) precisa fazer o mesmo pela Irlanda e depois voltar a Roma para finalmente dominar o escândalo. Nós, católicos, merecemos isso. Especialmente as crianças que a igreja não conseguiu proteger.”
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