Francisco Viana*
... E uma das coisas que o príncipe deve evitar é ser odioso. (Maquiavel, O príncipe[1]).
Cassio: Reputação, Reputação, perdi minha reputação. Perdi a parte imortal, senhor, de mim mesmo – e o que resta é animal. Reputação, Reputação, perdi minha reputação.
Iago: Honestamente, pensei que havia recebido algum ferimento no corpo, que é bem mais grave do que na reputação. Reputação é uma invenção inútil e fabricada, muitas vezes conseguida sem mérito e perdida sem merecimento. Ninguém perde nada de reputação a não ser que se repute um perdedor. (Shakespeare, Otelo [2]).
Brasília se tornou a capital das reputações destruídas. As delações premiadas têm o condão de não poupar ninguém, nem mesmo ex-presidentes da República ou o presidente em exercício. Grassa a perda de legitimidade na representação e, consequentemente, desconfiança. Políticos a empreiteiros, marqueteiros a ministros, estão com as reputações manchadas ou no mínimo ameaçadas porque estão envolvidos com denúncias de recebimento de propinas, contas não declaradas no exterior, tráfico de influência e há até denúncias, envolvendo uma outrora poderosa empreiteira, de comprar um banco para fazer operações ilícitas.
Tudo isso com direito a manchete nos jornais, noticiário nos jornais de televisão e vasta repercussão na mídia. É um ritmo avassalador com noticiário que não poupa ninguém e tira os véus que cobriam o rosto das mais reluzentes cabeças coroadas da república. Por que as crises de reputação continuam se sucedendo, apesar de já ter feito tantas vítimas?
Se deixarmos de lado Maquiavel e Shakespeare, precursores, em tempos modernos do conceito de reputação, e voltarmos à Antiguidade grega, veremos que a reputação está associada à vida boa. Nasce de uma limitação humana, a necessidade de ser respeitado. O voo da reputação nesse rumo, talvez se explique pelo fato do respeito ser fonte de poder, ser o desejo de ter genuína honra, a vontade de construir uma identidade. Como simbolizava Eucleia, a deusa grega da boa reputação, o homem associava a ideia da reputação à confiança que podia inspirar, ao viver bem e à glória. No espírito que presidia a reputação contracenavam a simplicidade, a austeridade e a originalidade. A ética, pilar essencial da boa reputação, estava acondicionada em uma forma dominante de governo, a democracia.
A história da reputação, do latim "reputatio, reputationis", tem pelo menos 2.700 anos. Começa com os antigos mitos gregos e pode ser encontrada em Zeus, Atenas, Hermes, enfim, os deuses do Olimpo, e, entre os mortais, em Péricles, Alexandre e Sócrates. No Olimpo, Hesíodo modelou a reputação de Zeus, que condenara seu pai Crono ao cativeiro, contando como ele venceu a batalha como os Titãs numa época, segundo a mitologia, em que os deuses viviam guerreando entre si.
Tudo isso é passado e a nova realidade da reputação data do século XVIII, época em que o interesse dos homens ditos importantes começou a declinar e o poder, o dinheiro, digo as grandes quantias, e a imagem, passaram a ser mais importante que a reputação. No século XX, com o surgimento do cinema, passou-se a pensar que a imagem era mais importante que a reputação porque podia ser controlada e editada como se bem desejassem. Esse foi o erro. Reputação não se controla. Depende da opinião dos outros. Do que os outros pensam. Pode ser modelada com intenso trabalho de formação de opinião, baseado em fatos, não em ficções.
Hoje, tudo ocorre na velocidade de luz. Com as mídias sociais, a imagem – a musa do marketing político - tornou-se ainda mais vulnerável e as reputações deveriam voltar ao primeiro plano das preocupações daqueles que se propõem a exercer cargos públicos ou serem empresários. Não voltou. A opção pelo imediatismo tornou-se a doença da linguagem e das pessoas. Sentem-se impunes. Acreditam poder mandar e desmandar na realidade concreta das coisas. O país, assim, transformou-se numa vasta guilhotina de reputações. O presidente afastado da Câmara que o diga.
Reputações são construídas no dia a dia, não com palavras; são como diz Cassio em Otelo de Shakespeare “a parte imortal” do ser. Não são uma “invenção inútil e fabricada”, como imaginava Iago que sentiu na carne o que é perder a boa reputação, desde que suas intrigas causaram mortes e dores como as vistas em Otelo. São metáforas e soam como advertências sobre a realidade. Mas é muito difícil fazer as pessoas, sobretudo aquelas muito ricas ou consideradas influentes, poderosas, perceber a perda de reputação. E o cortejo de riscos que a acompanha. São piores que a morte. Representam a morte em vida. A perda de respeito e dignidade, sem os quais o homem não tem voz.
O sentimento de reputação tende a ser mais forte em meio a grupo de pessoas que precisam umas das outras e estão mais ou menos no mesmo nível. Há o temor do descrito. Da simbologia do Olho de Hórus, deus egípcio da antiguidade que tudo via, tudo sabia. Isso provavelmente explica como as pequenas coisas vão se acumulando até explodirem em grandes crises ou revoluções sociais. É o que acontece hoje em Brasília. Vive-se o ocaso de uma era de impunidade. Há uma inexorável purificação em curso.
A reputação esteve anos e anos ausente das decisões. Foi esquecida. Virou discurso. Hoje, ressurge de forma avassaladora. É a vitória da realidade sobre o puro marketing. Onde não há ética, base da boa reputação, vale repetir, não pode existir governabilidade, nem confiança. Cabe ao comunicador repensar essas questões – reputação e confiança. Caso contrário, cabeças coroadas continuarão a rolar sempre que houve confronto com a realidade. Porque, como ensina Maquiavel, no mundo moderno apesar das aparências em contrário, o príncipe não pode ser odioso. E perder a legitimidade.
*Francisco Viana é doutor em Filosofia Política e jornalista.
[1] MAQUIAVEL, 1984, p. 88.
[2] SHAKESPEARE, ato II cena II (255-260).