O acidente que matou 18 pessoas, a maioria estudantes, e feriu outras 28 pessoas (algumas em estado grave) na noite de quarta-feira (8), na Rodovia Mogi-Bertioga, próximo ao litoral de São Paulo, é mais um capítulo na tragédia diária de nosso trânsito. O acidente mais uma vez expõe com toda a crueza e dor a incompetência das empresas rodoviárias, dos sindicatos de motoristas, das polícias e das autoridades para fiscalizar e disciplinar viagens de coletivos pelas estradas do país.
Um país que priorizou, erradamente, o transporte no modal rodoviário, na contramão dos países desenvolvidos, que optaram pelo trem e pelas hidrovias, deveria pelo menos ter mecanismos de fiscalização ágeis e repressivos para evitar a repetição sistemática dessas tragédias. Na história de cada acidente, inevitavelmente, aparecem o relaxamento na fiscalização e a ganância dos empresários.
As 18 pessoas que morreram, a maioria na faixa dos 20 a 30 anos, que viajavam todas as noites do litoral, para estudar em universidades de Mogi das Cruzes, são vítimas dessa guerra que o Brasil não consegue vencer. Ônibus e caminhões se envolvem direta ou indiretamente na maioria dos acidentes rodoviários no País, quase sempre por culpa das empresas e dos motoristas.
O trânsito brasileiro mata em média 130 pessoas por dia. É como se um Boeing lotado caísse todos os dias no Brasil. O país só perde em número de mortes anuais no trânsito, no critério mortes por cada milhão de veículos, para China, Índia e Rússia. Excesso de velocidade, ultrapassagens perigosas e falhas mecânicas são as maiores causas de acidentes, diz a Polícia Rodoviária Federal. Acidentes com ônibus, que geralmente matam várias pessoas, acontecem por imprudência ou falha dos motoristas, que cometem os mesmos erros da maioria dos motoristas amadores, agravados, no caso, pelo número de ônibus piratas e a falta de fiscalização. A educação dos motoristas brasileiros é falha. Amadores pegam o volante com a maior facilidade e vão para a estrada. O cansaço e a má conservação das estradas responderiam pelo restante.
No caso das estradas, a Confederação Nacional dos Transportes-CNT fez um levantamento e constatou que 60% das rodovias brasileiras têm problemas graves de engenharia ou conservação. Muitos acidentes acontecem por causa das estradas e ninguém fica sabendo.
O mais grave dessa estatística macabra é que nós não estamos reduzindo os acidentes. Pelo contrário. A cada ano, a cada feriado o país registra mais mortes. Campanhas não têm sido eficazes. Aumento das multas foi uma alternativa que o governo adotou, mas mesmo assim não parece incomodar a maioria dos motoristas que trafegam de forma imprudente, em estradas cheias de defeitos. Ou em vias que circundam as capitais brasileiras, quase sempre congestionadas. O prejuízo que esses acidentes causam ao país é de bilhões de reais.
Em 2014, para se ter uma ideia, foram pagos no Brasil uma média de 57 mil DPVATs por morte, ou seja 156 casos por dia, em média. E 214 mil indenizações por invalidez é a média anual dos últimos 10 anos, segundo levantamento do DPVAT. São 588 inválidos por dia no país, que precisaram recorrer a hospitais por ferimentos graves. Quanto custa isso para o sistema de saúde? Quantas vidas preciosas, na idade mais produtiva, o país perde por ano?
Pedido de socorro, em abaixo-assinado
A morte dos jovens no acidente de ônibus se torna mais dramática, quando se descobriu na bagagem de uma das estudantes mortas um abaixo-assinado, sem assinaturas e sem o nome do motorista, que pedia providências contra um motorista da empresa de fretados União Litoral. O documento, endereçado à secretária de Educação de São Sebastião, Maria Zeneide Nunes da Silva Moraes, relata supostas "manobras ilegais" realizadas por um condutor "em tempo chuvoso e com neblina". Não se sabe se a reclamação apontava para o motorista que dirigia o ônibus no momento do acidente, que havia assumido aquela linha há pouco tempo.
O documento, testemunho lamentável do pedido de socorro dos jovens, possivelmente foi antecedido de reclamações verbais que acabaram sendo esquecidas na burocracia dos guichês das empresas ou das faculdades. O Brasil está se consagrando como o país que joga os problemas para baixo do tapete. Quando se descobrem os erros, os desvios de conduta, as falcatruas já é tarde. Está muito perigoso viver no Brasil com o descaso pela vida.
"Houve algumas atitudes do respectivo funcionário que coloca em risco a integridade física dos estudantes que utilizam o transporte", relata trecho do texto do abaixo-assinado. Pais de vítimas afirmam que os filhos costumavam reclamar do condutor. A polícia, porém, afirmou que ainda é prematuro relacionar as críticas ao motorista, que também morreu no acidente. Como se vê, o excesso de velocidade e imprudência parecem ser uma constante nos motoristas de ônibus brasileiros.
Lições de crise
Que lições de gestão de crises podemos tirar, para as empresas de transporte, de acidentes desse porte, que acabam em tragédias para várias famílias e ajudam a tornar mais letal nossa estatística no trânsito?
Primeiro, as empresas de transportes urbanos e intermuncipais ou interestaduais precisam aprimorar os treinamentos dos profissionais, criando uma cultura de gestão de riscos. Não há programas de gerenciamento de riscos que contemplem as principais crises que ameaçam as empresas, dos financeiras às operacionais. É inconcebível que crianças ou jovens se queixem de motoristas irresponsáveis que transformam os ônibus lotados em válvula de escape para suas frustrações ou procurem reduzir horário na mesma velocidade com que põem em risco a vida de milhares de pessoas.
O Ministério dos Transportes precisa equipar e aparelhar a PRF para que a fiscalização fique mais rigorosa. É muito comum motoristas trafegarem vários dias pelas estradas brasileiras, por vários estados, sem que sejam interpelados uma vez sequer pela Polícia Rodoviária. Ou seja, a impunidade é um incentivo à transgressão. Outro agravante é a pena imposta ao motorista infrator. Ele dirige bêbado, atropela, mata, paga fiança e sai livre. São raros os casos de motoristas culpados por acidente sofrerem os rigores da lei, muito menos a prisão. Em casos de morte com flagrante violação das normas de trânsito, o processo é tão lento que ajuda o culpado a sair impune.
A empresa de transportes coletivos envolvida em acidente grave deveria ser suspensa de operar até que se esclareçam as causas do acidente. Com isso, haveria pressa pelo fim do processo, reduzindo as protelações desses culpados, e antecipadamente a empresa seria punida pelo acidente, até que fosse julgado o processo. Além disso, maior rigor na fiscalização de treinamento de motoristas, com testes de surpresa, além do estado de conservação e dos trâmites legais de circulação dos ônibus, principalmente os intermunicipais e interestaduais; e fiscalização rigorosa sobre os processos de manutenção das empresas.
Uma tragédia anunciada e 51 mortos
Em março de 2015, um ônibus pirata, transportando fiéis de uma igreja evangélica, que saiu de União da Vitória-PR, para Guaratuba-PR, capotou numa ribanceira de uma estrada de Santa Catarina matando 51 pessoas e ferindo outras sete. Ou seja, quase todos os passageiros morreram.
Esse acidente poderia ser considerado uma crise anunciada, uma bomba ambulante, pela quantidade de falhas mecânicas, erros e também da falta de fiscalização. O ônibus não tinha licença para viagens interestaduais. A ANTT declarou que a licença era só para operar no Paraná. O veículo, no momento do acidente, estava em velocidade excessiva, numa estrada perigosa e cheia de curvas. Segundo relato de testemunhas e conclusões da perícia, a cerca de 100 quilômetros do destino, o motorista perdeu o controle em uma curva e o ônibus, possivelmente por ter perdido os freios, caiu em uma ribanceira. A velocidade era tanta, que o ônibus ganhou impulso para cima e depois caiu como um dardo de uma altura de cerca de 50 metros, até cravar a dianteira em um barranco.
E tem mais: por se tratar de um ônibus clandestino e, além disso, velho - foi fabricado nos anos 80 e não foi regularizado para os parâmetros atuais, considerada infração grave - não havia cinto de segurança para a maioria dos passageiros. O ônibus recolheu passageiros de outro veículo, da mesma empresa, que pifou na viagem, aceitando dois passageiros em pé, o que contribuiu para a quantidade de vítimas fatais. Dois meses após a tragédia, foi divulgado o laudo da perícia.
O motorista Cergio da Costa teria causado o acidente por exaustão física, pressão psicológica e consumo de bebida alcóolica, atesta laudo da polícia civil. "A imprudência dele causou o acidente. Por estar conduzindo sobre o efeito de bebida alcóolica e não acionar os equipamentos de segurança necessários, ele pode sim ser considerado o culpado do acidente", afirmou o delegado de União da Vitória. Na maioria das vezes, acidentes graves não acontecem por uma única causa. Nesse caso, foram tantas as irregularidades que transformam essa tragédia numa crise anunciada e, lamentavelmente, uma crise que poderia ser evitada.
Esse é o retrato do trânsito brasileiro. Se os usuários não criarem a cultura da fiscalização, não aceitando viajar em ônibus sem documentação regular e em empresas com histórico impecável, acidentes como esse continuarão acontecendo. A vida de quem viaja pelas nossas cidades ou estradas, como aconteceu com os jovens de São Sebastião, vai continuar dependendo da sorte ou, para quem tem fé, de Deus. Não espere muito dos governos nem dos empresáros.
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