Na semana em que apareceu uma das mais graves denúncias contra a Samarco, quando o Ministério Público de MG revelou, com farta documentação, que a empresa sabia dos riscos de rompimento da barragem de Fundão, ainda em 2013, continuamos a ouvir quase todos os dias muitas explicações, anúncios de multas, promessas e poucas soluções. Segundo o MP-MG, apesar de alertada sobre o risco que problemas de engenharia representavam para a segurança da barragem, não há registro das correções. A empresa teve dois anos para corrigi-los e os órgãos de fiscalização para notificá-la, até novembro de 2015, quando a barragem se rompeu. Nada disso aconteceu. A empresa contesta as acusações.
A investigação mostra que vários fatores contribuíram para o rompimento. Cada um deles por si só já representavam um risco para a segurança da barragem. A tragédia poderia ter sido evitada, pelo menos na dimensão em que aconteceu, se a empresa tivesse sido rigorosa nas correções recomendadas e os órgãos de fiscalização cumprido a missão de monitorar com mais rigor não apenas essa, mas todas as barragens das mineradoras que operam no país.
Segundo o MP-MG, o problema começou em 2007, quando a Samarco pediu autorização para construir a barragem, a licença prévia. Faltou um documento essencial: o projeto executivo (plano de voo) com todos os detalhes técnicos sobre a construção. A Samarco entregou às autoridades somente os dados básicos do projeto e a Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais os considerou falhos, mas os aceitou. O que se constitui numa falha grave, segundo o MP e de acordo com o atual subsecretário do Meio Ambiente de MG, Geraldo Abreu.
Tragédias como essa ocorrem porque a burocracia é muito “eficiente” quando se trata de cobrar uma interminável lista de documentos e alvarás para os brasileiros abrirem negócios; mas “ineficiente” quando deve fiscalizar o que está errado, porque acaba vítima da própria ineficiência. O que resulta de tudo isso é que, no início de 2007, a empresa recebeu uma licença para instalar uma barragem numa altitude bem acima dos vilarejos que foram atingidos, para represar 30 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério pesados e tóxicos, além de água, sem a licença definitiva. Foi essa mistura de resíduos, barro, lixo e água que despencou sobre as 200 casas dos vilarejos de Mariana.
Essa não foi a única irregularidade apontada pelo MP nas investigações. Denuncia que outro elemento não resolvido pela empresa foi a existência de uma pilha de rejeitos da mineradora Vale perto da área da barragem de Fundão. A Vale é controladora da Samarco, junto com a australiana BHP Billiton. Há oito anos, portanto, já havia a preocupação de que a água que escorria dos rejeitos pudesse influenciar o desempenho da barragem da Samarco. O que realmente pode ter acontecido. E mais: um relatório feito a pedido da Samarco pela empresa VOGBR, em 2007, dizia que “a água junto a pilha de Estéril da Vale pode comprometer a segurança operacional da Barragem de Fundão”. Em resumo, o MP-MG diz que todo o processo de licenciamento dessa barragem “foi uma colcha de retalhos, cheia de inconsistências, omissões e graves equívocos”. não se levando em conta o interesse da sociedade.
Em setembro de 2014 (um ano antes do rompimento), a Samarco foi alertada por outro documento apresentado pela Polícia Federal, onde um engenheiro que prestava consultoria para a Samarco alertava que “diversas trincas caracterizam um início de movimento de escorregamento do maciço de pilha”, ou seja, ameaça de ruptura. Para o MP, diante dessas evidências e irregularidades, esse foi um rompimento anunciado.
Muitas reuniões e cifras que não dizem nada
Uma semana depois do rompimento da barragem, quando ficou evidente a extensão da tragédia, com 19 desaparecidos (17 mortos), e se percebeu que a lama se transformou numa enorme ameaça ao meio ambiente e à vida da população ribeirinha, a presidente Dilma foi a BH, para uma reunião com o governador mineiro. No início, o governo não dimensionou corretamente essa crise. Cobrada, a presidente deve ter sido pautada na última hora e disse sem muita convicção que o Ibama iria multar a Samarco em R$ 250 milhões. De onde saiu esse valor, ninguém explicou. Assim como surgiu do nada, os R$ 250 milhões escoaram pelo Rio Doce, como a lama despejada pela Samarco. Não se falou mais nesse valor.
Os governantes, quando ocorrem tragédias dessa dimensão, gostam muito de anunciar multas milionárias para parecer que estão agindo. Assim como fazem as agências reguladoras. Nunca se sabe se essas multas são pagas. A maioria delas não é, proteladas por sucessivos recursos. As empresas recorrem e o processo acaba se enredando nos escaninhos da Justiça por anos e anos. E ninguém mais lembra.
Em 27/11/2015, pouco mais de 20 dias do rompimento, o governo federal e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo criaram outro factoide. Anunciaram que iriam entrar na Justiça com uma ação de R$ 20 bilhões contra as mineradoras (incluindo Vale e BHP). Em entrevista, em Brasília, autoridades disseram que a ação visava a criação de um fundo com recursos depositados pelas empresas, para ser empregado com os seguintes objetivos: conter a expansão dos impactos da enxurrada de lama que avançou pelo rio Doce e atingiu as praias do Espírito Santo, executar projetos de revitalização da bacia do rio e pagar indenizações à população afetada.
Tudo isso dá manchete, comentários, soa muito bonito para ser divulgado na “Voz do Brasil” e dá algum alento às pessoas prejudicadas. Mas fica só nisso. Reuniões intermináveis, a vida de pelo menos 200 famílias destroçada, muitas delas chorando parentes mortos, e nenhum sinal objetivo sobre como resolver a situação delas.
Dois meses e meio depois do rompimento, diante da lentidão das ações de reparação, as autoridades voltaram a Minas Gerais para discutir termos de um acordo que, na época, nem existia. Ou pelo menos tentar fazer realmente um acordo. As cifras e promessas anunciadas antes eram factoides. Na falta de algo concreto para anunciar, já que após as reuniões a mídia sempre quer saber alguma coisa, por que não pegar um número bombástico – como foram os R$ 20 bilhões – e jogá-lo no ar. Acaba até dando repercussão internacional. A única coisa que se abalou com esse número foi o valor das ações da Vale e da BHP, nas Bolsas de São Paulo e Londres.
Talvez a quantia de R$ 20 bilhões tenha sido meramente uma tentativa canhestra de copiar uma ação que o governo americano moveu contra a petroleira BP – British Petroleum, em 2010, quando da explosão de uma plataforma a 1,5 km de profundidade, que vazou 800 milhões de litros de petróleo no Golfo do México. O depósito exigido como “caução” para pagar futuras ações foi de US$ 20 bilhões. Essa foi a penalidade inicial do governo americano e os valores realmente foram depositados. Desde então, a BP se desdobra há cinco anos para limpar o mar de cinco estados; pagar indenizações, inclusive às famílias dos 11 trabalhadores que desapareceram; e demais passivos da tragédia.
Na reunião realizada no dia 19 de janeiro, entre o advogado-geral da União, diretores da Samarco, Vale, BHP, pessoal do meio ambiente e dos governos de Minas e ES, além de haver mais coerência nas propostas, anunciou-se que um grupo irá discutir as ações que serão desenvolvidas pelas mineradoras que causaram a tragédia de Mariana. Pretende-se fechar um acordo, inclusive com valores reais sendo fixados depois e não agora. O que deveria ter sido feito desde o início, antes de se falar em cifras bilionárias. Só o MP-MG apresentou 19 questionamentos ao governo. E critica o fato de até agora todos os valores citados serem apenas referências, estimativas, não havendo nada de concreto quanto à solução dos problemas mais emergentes. Por exemplo, agricultores que plantavam, tiveram as lavouras destruídas; pequenos proprietários, que criavam gado e vendiam leite; pescadores que viviam da pesca do Rio Doce; artesãos que vendiam seus produtos na cidade; comerciantes que vivam do turismo, também às margens do rio, todos querem saber: para onde nós vamos, o que faremos, qual vai ser nosso futuro, já que tivemos o passado apagado?
Agora, após os encontros da semana passada, podemos inferir que aquela cifra misteriosa de R$ 20 bilhões talvez não passasse de uma jogada de marketing, apenas para dizer que os governos estavam agindo. “Está difícil dizer onde os governos federal e mineiro erraram mais no caso do rompimento das barragens da Samarco, o maior desastre ambiental do país”, diz a Folha de S.Paulo, em Editorial. Critica exatamente o estardalhaço do anúncio feito pelo governo de processar a mineradora, sem que houvesse uma base concreta sobre o que eles iriam buscar na Justiça.
Afinal, a Samarco iria fazer o quê? A falta de coerência nas ações de responsabilização contra a mineradora acaba favorecendo a impunidade. Em meio a esse bate-cabeças, houve até uma ação do MP que bloqueou todos os valores da Samarco nos bancos. No fim de novembro, descobriram que o bloqueio impediria a empresa de pagar os salários dos empregados e o custeio das despesas das pessoas atingidas. Verdadeira trapalhada. No caso da multa bilionária, eram R$ 2 bilhões anuais para serem depositados por uma década, para custear saneamento do meio ambiente e remediação dos prejuízos a moradores e ribeirinhos nos dois estados, Minas Gerais e Espírito Santo.
Nas entrevistas dos representantes da Samarco, incluindo o bem preparado presidente Ricardo Vescovi (que se licenciou na última sexta-feira, para preparar a defesa do indiciamento solicitado à Justiça pelo MP) sempre parece que tudo está correndo na normalidade; que a empresa é inocente, quando não também vítima dessa terrível tragédia. Que não cometeu nenhuma irregularidade. Só faltou o presidente da Samarco dizer “estou cansado, gostaria de voltar para casa”; ou “a quantidade de detritos despejados é pequena, quando comparamos as 450 barragens existentes apenas no estado de Minas Gerais”, como fez o CEO da BP, Tom Hayward*, duas semanas após o vazamento, em 2010. Do lado dos moradores atingidos, muitas queixas. Aquelas que qualquer um de nós, se estivéssemos na mesma situação, teríamos. Eles não querem ficar em hotéis ou casas alugadas na cidade. Querem um lugar para recomeçar.
Estamos longe de saber quanto será o passivo da Samarco. Apenas para ter uma ideia, no início da tragédia do Golfo do México, em maio de 2010, analistas fizeram uma estimativa de que a British Petroleum teria um passivo de US$ 23 bilhões com o vazamento. Sem contar a caução. Em 2013, os gastos da BP com limpeza, indenizações e ações judiciais já estavam em US$ 54 bilhões. Por isso, no caso da Samarco, é prematuro falar em cifras.
O que as “vítimas” dessa tragédia, Minas Gerais, Espírito Santo e o Brasil esperam da Samarco, da Vale e da BHP Billiton são ações concretas, efetivas de que estão dispostas a assumir e pagar pela tragédia que causaram. Sem jogo de empurra, sem tergiversações, sem desculpas esfarrapadas. O desastre é muito grande para ser tratado como outros que acontecem aqui no Brasil. Ganham as manchetes nos primeiros dias, todo mundo opina, se apavora, aparecem especialistas de todo lado, o governo faz que vai cobrar e fica por isso mesmo. A partir de agora, chegou a hora de menos discurso e explicações e mais ações definitivas e conclusivas para amenizar e corrigir os efeitos perversos do maior desastre ambiental do Brasil e cujos efeitos, certamente, irão perdurar pelos próximos 15 a 20 anos.
*Tom Hayward, CEO da British Petroleum, nos EUA, quando do vazamento de petróleo no Golfo do México, disse em maio de 2010, 15 dias após a tragédia, que ele "estava cansado e queria ter sua vida de volta", além de falar bobagens como a de que "o vazamento da BP era muito pequeno, se comparado com o tamanho do Oceano Atlântico". Ele foi demitido em junho de 2010.
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